Transição Socialista

De Davos a La Paz: para onde aponta o governo Dilma?

A presidente reeleita, Dilma Roussef, não compareceu neste ano ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça, preferindo acompanhar deste lado do Atlântico a cerimônia de posse de Evo Morales, em seu terceiro mandato à frente da Bolívia. Ora, a escolha sinaliza que aos banqueiros e grandes figuras do cenário econômico mundial, Dilma prefere o “socialismo andino” de Morales?

É o que, à primeira vista, parece decantar de sua decisão. Uma “opção”, por assim dizer, que rende matérias elogiosas de veículos de comunicação ligados ao PT, cujas manchetes e notícias prontamente comemoram sua “agenda” combativa, anti-americana; que se confirmou, também, pelo gesto do punho levantado, protagonizado por ela ao seguir seus colegas, os presidentes Nicolás Maduro e Rafael Correa, durante a posse de Morales. Diante da cena, poderíamos ainda perguntar: será que gradualmente, na toada de seu slogan de “mais mudanças”, Dilma caminhará rumo à esquerda, em um processo de auto- crítica sem precedentes?

Nada mais falso, porém. Cabe aqui lembrar o que Marx escreveu sobre Luís XVIII: “a sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer- Collards, Benjamin Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política” (O 18 de Brumário de Luis Bonaparte). Em outras palavras, Marx comentava, não sem ironia, como à burguesia o que interessava é quem eram seus porta-vozes, seus chefes-militarese seus intérpretes, isto é, quem dirigia seus negócios “atrás das mesas de trabalho”, podendo deixar a um “cérebro de toucinho” a política, um campo da retórica, bastante distante das reais decisões relevantes ao processo produtivo.

Sem exageros, podemos dizer o mesmo de Dilma. Que vista-se com um manto bolivariano, erga seu punho ou aplauda um discurso enervado de Morales contra a “filosofia da morte” do capitalismo, nada disso altera os rumos da economia brasileira e sua simpatia por Morales em nada influi nos interesses da burguesia de nosso país. Evidente que despertará a ira deste ou daquele cronista da Veja que encontrará traços de um bolchevismo adormecido da ex-guerrilheira. Tudo bobagem. Enquanto Dilma faz as vezes de Luis XVIII, quem senta à mesa e dirige o Estado, ou ainda, administra-o segundo os interesses da burguesia, são seus ministros Joaquim Levy e Alexandre Tombini, este à frente do Banco Central e aquele do Ministério da Economia. Não por acaso, são eles que representam a presidente em Davos este ano.

Levy é o caso mais emblemático. Armínio Fraga, quadro tucano desde os governos FHC, e braço-direito de Aécio Neves na campanha de 2014, classifica Levy como “uma ilha em um mar de mediocridade” do atual governo. E a escalação de Levy para ir a Davos não poderia ser mais direta: se o governo precisa tranquilizar os investidores, que deixem os técnicos falar e não a política. Assim, Levy fez bem o serviço: com um discurso de cortes e ajustes criticou o dito desenvolvimentismo de seu antecessor, Guido Mantega, alegando que mesmo as políticas anti-cíclicas chegavam ao fim e era hora de ajustes mais severos. E quem paga a conta de tais ajustes? Os trabalhadores. Em outro momento, declarou que suas medidas iniciais, tomadas no apagar das luzes de 2014, não eram “um saco de maldades”, mas em sua entrevista ao Financial Times, em Davos, foi bastante direto ao comentar o “atraso” que representavam os direitos concedidos aos trabalhadores, por exemplo: “o modelo do seguro-desemprego no Brasil está completamente ultrapassado”.

Segundo cálculos do próprio governo, o novo modelo proposto por Levy restringirá o acesso de mais de 2 milhões de trabalhadores ao benefício, redução que corresponde a 26% do total de solicitações/ano. Além deste corte, o seu pacote avança sobre outros benefícios sociais como auxílio-doença, abono salarial e pensão por morte. “Foi uma punhalada nas costas”, resumiu Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores. Com tais “ajustes”, espera-se uma economia inicial na casa de 20 bilhões R$ — pagos pelos trabalhadores.

Como se vê, Levy não está interessado no “socialismo” de Morales, de modo que suas propostas não tocam nos lucros dos bancos — recorde no ano de 2014 —, no agronegócio, e muito menos na corrupção — ainda que se estime em 20 bilhões o gasto excedente na construção da refinaria de Abreu e Lima, um dos pontos críticos da investigação da Polícia Federal na operação Lava-jato.

Mas nada disso interessa a Levy, ele está onde está para administrar os negócios da burguesia, como bem anotou o enviado da Folha sobre o êxito de Levy: “‘Chicago boy’, titular da Fazenda se torna queridinho em Davos”. A expressão ‘Chicago boy’ se aplica aos economistas ultraliberais, oriundos da Universidade de Chicago, onde Levy estudou. Na América Latina, esta escola notabilizou-se, nos anos 70 e 80, em especial, pela direção da economia chilena durante os anos da ditadura Pinochet, uma das mais terríveis do continente. A lembrança sobre os ‘chicago boys’ é tanta e tão traumática no continente latino-americano que Morales, em seu discurso de posse — talvez por ironia, talvez não — também fez menção a eles: “na Bolívia, não mandam os Chicago boys, mas sim os Chuquiago boys, (…) aqui não mandam os gringos, mandam os índios”.