Na segunda metade dos anos 90, o MST alçou o seu momento de maior prestígio e visibilidade. Era raro quem não se deixasse impressionar pela força daquele movimento a ponto de alguns setores levantarem o nome de João Pedro Stedile a vice de Lula em 1998 – era a forma de pressionar à esquerda o ex-metalúrgico. Era difícil também refutar o “nó” que o MST dava na teoria clássica de Marx sobre o anacronismo da pauta da reforma agrária num país que já convivia há décadas com altos índices de industrialização e urbanização.
O temor difundido na burguesia parecia se confirmar, ao menos em parte, pelo aparecimento do livro “A opção brasileira”, de César Benjamin. Nesta espécie de cartilha política do MST rezava-se o caminho de um projeto de revolução popular para o país num prazo de cerca de dez anos, como insistia Benjamin naqueles anos. A proximidade de João Pedro Stédile e César Benjamin não podia ser maior, a “Consulta Popular” despontava como o braço político-partidário do MST; em seus cursos de formação, trocavam elogios e até criticavam o reformismo do PT.
Foi nesse período que o então presidente Fernando Henrique Cardoso atravessou a maior turbulência de seus oito anos no poder. Pressionado pela crise dos mercados asiáticos e pelas denúncias sobre corrupção nas privatizações das Teles, FHC viu sua popularidade despencar e o fantasma do impeachment passou a rondar o Alvorada. Assim, uma grande frente de oposição organizou para o dia 26 de agosto de 1999 a “marcha dos 100 mil” em Brasília. Eram vários os partidos e movimentos que integravam essa frente, mas era inequívoca a força política do PT e do MST.
A História não permite “e se…”, mas o distanciamento de 16 anos nos permite, por outro lado, jogar luz sobre as recentes manifestações contra Dilma, a crescente pressão contra o seu governo e a posição de alinhamento incondicional do MST ao PT. Em entrevista recente ao TVFolha da Folha de S.Paulo, João Pedro Stedile afirmou que o MST não saiu às ruas no último dia 13 de março para defender o governo como “insinuou a grande mídia”, mas sim para protestar contra a corrupção e “os ajustes de Levy”. No entanto, fez questão de frisar que era contra “pregar o golpe na rua” como fizeram alguns setores do protesto do dia 15. Para o líder do MST, “se tivéssemos uma Polícia Federal republicana, ela ia lá prender” quem pregasse medidas golpistas. Questionado, então, se mudara de posição sobre o instrumento do impeachment desde a marcha de 1999, Stedile parou um instante e, como se fizesse uma pequena confissão, disse que naquela época o MST não defendera o impeachment, que isso era “coisa de uma minoria radical, do pessoal da Conlutas” e que se em algum momento o MST flertou com o “Fora FHC”, fazia isso dentro de um sentido muito particular, próprio das “liturgias do movimento social”, tratava-se, na verdade, de “fora a política que ele está fazendo”, arrematou.
A marcha de 1999 não reuniu 100 mil, mas fez Brasília tremer. Os jornais da época registram a expectativa que se formou ao seu redor. Havia temor de violência e quebra-quebra. Tanto situação como oposição pareciam pisar em ovos. Passado o dia 26, percebia-se com clareza que a grande mensagem havia sido a palavra-de-ordem “Fora FHC. Fora FMI” – a que Stedile diz hoje nunca ter defendido. Mas então quem a defendeu? Como foi possível que ela fosse a marca principal da marcha? O que se pode perceber, na realidade, é que a indeterminação estava dada desde o início.
O PT, então maior força da oposição, seguiu dividido até a véspera do ato, a direção do partido dizia desconhecer o conteúdo da carta conjunta que formaliza os pontos da mobilização, propondo de última hora uma carta substituta que chamava o “Basta de FHC e fora FMI!”. Aí estava a primeira artimanha. Convocava-se uma marcha sem uma reivindicação determinada, a tal carta viria a circular somente no dia da manifestação de modo que cada agrupamento, partido ou movimento convocou o ato como bem quisesse. Isto revelava a segunda artimanha: a capitulação do PT.
Nos jornais da época, cada dirigente do partido colocava uma posição, sempre escorregando entre um ataque mais duro a FHC e um recuo no momento de afirmar o impeachment ou o “Fora FHC”. Dentre todos, Lula era exemplar: jogava com as palavras sem determinar uma posição. Dizia que não queria “começar a discutir pelo final” (ou seja, chamar o impeachment), ao mesmo tempo que afirmava ser insustentável a posição de FHC: “Não dá mais para aceitar esta ideia de que o presidente não sabia [dos escândalos de corrupção], de que o presidente estava desinformado”.
Se a retórica de Lula confundia a plateia, a disputa no interior do 2o. Congresso Nacional do PT em fins daquele mesmo ano não deixava dúvidas sobre qual a real posição da ala lulista, a Articulação. O cenário era de acirrada disputa interna, o grande debate centrava-se na aprovação ou não do “Fora FHC”. Zé Dirceu, candidato pela Articulação, chegou a ameaçar que renunciaria caso fosse eleito e a tese do “Fora FHC” fosse também aprovada. Como sintetizou um deputado da Articulação: “Tínhamos a pretensão de fazer um congresso para discutir o programa do PT, o plano de lutas para enfrentar a crise e o novo estatuto. Mas setores da esquerda conduziram o encontro para o esvaziamento com o “Fora FHC’”. Assim, fica claro como Lula e seu grupo dentro do PT não estava interessado em levar adiante o impeachment e que as falas vagas serviam mais para confundir e ocultar a posição conciliatória. Coincidência ou não, o candidato derrotado no congresso e defensor da tese “Fora…”, Milton Temer, hoje está no PSOL.
A situação era mais contraditória na base sindical do PT, a CUT. Ali havia a pressão do que hoje Stedile identifica como “o pessoal da Conlutas”, que ainda era uma fração da CUT. A Central pressionada internamente por parte de sua direção e pela base de seus sindicatos (diante da crise econômica) viu-se obrigada a assinar a carta-manifesto em sua versão original. No texto lê-se: “O povo brasileiro exige a investigação de prática de crime de responsabilidade e, consequentemente, o impeachment de FHC”. Entre os partidos, apenas dois, endossavam a mesma posição. O PSTU (ou também o tal pessoal da Conlutas) e o PDT, ainda sob o comando de Leonel Brizola. Aquele centrado na agitação da palavra-de-ordem, este numa visão legalista: defendia a renuncia do presidente e de seu vice e a convocação de novas eleições.
E o MST? Ainda que Stedile diga hoje que nunca chamou “Fora FHC”, o MST assinou (conforme noticiado na Folha de S.Paulo, 26/08/99) a primeira versão da carta em conjunto com o PSTU, PDT e outras organizações políticas (excerto o PT). Mas isso apenas revela a vacilação do MST. Pois como seria possível que o movimento que travava grandes embates contra o governo desde 1995 não assinasse o manifesto? Por outro lado, chama atenção o fato de que Stedile praticamente desaparece às vésperas da marcha, não dando declarações ou entrevistas. Uma notícia sobre a marcha veiculada no Correio da Cidadania do mês de agosto de 1999, demonstra essa mesma hesitação do MST. O jornal, cujas proximidades com o PT e com o MST não podiam ser maiores, apenas entrevista Arlindo Chinaglia, então secretário geral do PT, que, em sua declaração, critica o “Fora FHC”. A notícia ainda relata a posição de quem o defende, citando PDT e PSTU. Ao final, um item apenas dedicado ao MST. Nele, de forma surpreendente, o movimento não toca no “Fora FHC” e apenas propõe uma vaga agitação organizativa: “participação popular”, nas palavras de um dirigente chamado Ênio Bohnenberge.
Como se vê, o MST, ainda que pressionado, seguia mais fielmente que a CUT a linha ditada pelo PT, evitando como pode a derrubada de FHC em seu momento de maior fragilidade política. É difícil imaginar contradição maior para quem se diz defensor de uma “revolução popular” a vacilação num momento de crise. Atuando de forma dúbia, o MST abdica da palavra-de-ordem que poderia desencadear uma profunda instabilidade política que poderia desaguar num processo revolucionário. Indo além, podemos ainda refletir: qual o sentido do MST e do PT relutar na derrubada de FHC? Olhando a partir de hoje, não restam dúvidas de que estavam de olho nas eleições de 2002 e que suas metas eram estritamente eleitorais, vendo com maus olhos qualquer processo que desestabilizasse esse caminho.
Passados tantos anos, tudo isso é passado. O PDT de Brizola não existe mais. Quem no PT tinha um compromisso de luta migrou para o PSOL. A fração combativa da CUT fundou a Conlutas. O MST diminuiu, o seu exército – segundo as palavras recentes de Lula – já não tem a mesma força, nem a mesma disposição. A “revolução popular” não veio nestes anos de PT no poder, constrangendo Stedile a reivindicar a liturgia da ordem, o republicanismo da Polícia Federal e a desdizer o que, de algum modo, seu movimento um dia defendeu. César Benjamin, o ideólogo do discurso político do MST, agora marcha em outras fileiras; escreveu, nas eleições de 2014, o programa do candidato derrotado ao governo do Rio pelo PRB, o bispo licenciado da Universal, o senador Marcelo Crivella.