Um dos problemas que mais preocupava Leon Trotsky às vésperas da 2a. Guerra era a questão nacional e a política que o partido revolucionário formularia para ela em suas diversas seções; era importante se contrapor à atuação traidora estalinista que levava o proletariado a sucessivas derrotas em várias partes do mundo. Em um de seus textos sobre o assunto, Trotsky analisa a situação da África do Sul, então colônia do império britânico. Neste texto, o problema nacional e a questão racial se relacionam diretamente.
Em primeiro lugar, ele observava que a nação sul-africana tinha um duplo significado. Para a Grã-bretanha e para a minoria branca o país não passa de um “dominion”, enquanto que “do ponto de vista da maioria negra, uma colônia escrava”. Esta é a caracterização fundamental que deve embasar toda a política de intervenção do partido.
Nesse sentido, continuava Trotsky, uma revolução vitoriosa na África do Sul mudaria radicalmente as relações “não apenas entre as classes, mas também entre as raças, assegurando aos negros o lugar no Estado que corresponde ao seu número”, mas tal revolução teria ainda sim um caráter de libertação nacional. Observa também sobre a questão racial que o partido não pode “fechar os olhos sobre este aspecto da questão, ou minimizar sua importância”.
A resolução da questão racial, por outro lado, “só pode e deve ser realizada pelo partido proletário”, recusando assim uma aliança com a elite branca, como deixa clara a passagem seguinte em que diz que a emancipação nacional só pode ser conquistada por meio da luta de classes e não de uma frente anti-imperialista, a qual uniria no mesmo front a elite branca e a maioria negra sob o genérico termo de uma revolução popular.
Para não restar dúvidas, Trotsky comparava a palavra-de-ordem “República negra” com aquela da “África do Sul para os brancos”, enquanto esta expressa uma “ dominação infame”, aquela, “os primeiros passos para a sua emancipação” ainda que seja possível que “após a vitória, os negros considerem inútil a criação de um Estado negro particular”. Ainda que reconheça a questão racial no interior da luta revolucionária na África do Sul, Trotsky conclui que o essencial é a união entre todos os explorados, independente da cor e raça, como diz a título de ilustração: “a todo operário branco, o partido revolucionário deve colocar a seguinte alternativa: ou bem com o imperialismo britânico e a burguesia branca da África do Sul, ou bem com os operários e camponeses negros contra os feudais e escravistas brancos e seus agentes no seio da própria classe operária”.
Sobre o Congresso Nacional Africano, o partido que reunia desde 1912 a elite negra (profissionais liberais, intelectuais e religiosos), Trotsky considerava que a tática a ser adotada era a de defender a sua existência contra os ataques dos opressores brancos, apoiando as tendências progressistas em seu programa, desmascarando aos olhos das massas a “ incapacidade do CNA em obter a realização de suas própria reivindicações” por causa de sua política “conciliatória”. Finalmente, caberia aos bolcheviques opor à conciliação do CNA um “programa de luta revolucionário”.
O apartheid
O texto data de 1935. Em 1948, como Trotsky previa, a política conciliatória do CNA nada pode fazer diante do aumento da tensão social, com o país à beira de uma guerra civil, a segregação racial foi legalmente institucionalizada, dando início ao apartheid, levando o CNA para a ilegalidade. Enquanto a minoria branca sul-africana usufruía do mais alto padrão de vida de toda a África (comparável aos de nações de países desenvolvidos ocidentais), a maioria negra foi reprimida duramente, sendo subjugada em quase todos os aspectos, como renda, educação, habitação e expectativa de vida.
Somente em 1990, o regime do apartheid chegou ao fim. Foram 42 anos não apenas de segregação racial contra a maioria negra, mas uma violenta repressão contra qualquer movimento contrário ao regime. Diversos massacres e prisões em massa mancharam para sempre a história daquele país. Para citar aqui apenas um episódio, em 1960, 69 pessoas foram assassinadas, enquanto 180 ficaram gravemente feridas no “Massacre de Shaperville” que atingiu repercussão internacional – levando a ONU a declarar a data, 21 de março, como Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial.
O fim do apartheid não ocorreu sem grande pressão popular. Greves, manifestações de rua e ocupação de prédios públicos forçaram a minoria branca a dar início a um processo de distensão do regime. Nesse momento, o CNA e o partido Comunista (de orientação estalinista) recusaram a via revolucionária e cederam ao caminho da conciliação com a minoria branca, em um processo denominado pela imprensa burguesa do país como “o milagre”.
Mandela e a traição do CNA
Nesse processo de conciliação era necessário a figura de um grande líder capaz de convencer as massas de que era preciso recuar e aceitar dialogar com seus algozes. Nelson Mandela cumpriu esse papel. Sua liderança era praticamente inquestionável diante de seu passado de luta e resistência. Ainda que o CNA não tivesse um programa claro, como observou Trotsky em 1935, este partido mantinha-se à frente do movimento de massas em diversas ocasiões decisivas, gozando de grande credibilidade popular. Mandela era uma liderança respeitadíssima que vinha de uma espécie de braço armado do partido e que havia, em outros momentos, recusado a negociação com a elite branca mesmo que isso significasse submeter-se à prisão perpétua.
Após 27 anos preso, em 1990, finalmente Mandela aceitou encabeçar o processo de transição. Se até então o CNA e Mandela mantinham algum compromisso com a luta da maioria negra, naquele momento cediam à capitulação em favor da elite branca. O processo revolucionário foi abafado e o complicado período de transição se estendeu por 4 anos, resultando na eleição de Mandela, encabeçando uma grande frente popular com a participação entre outros do PC e da Cosatu – Congresso Sul-Africano de Sindicatos, espécie de central sindical do país.
Hoje, quando Nelson Mandela vem a falecer, seu nome é exaltado como herói por líderes das principais potências imperialistas – inclusive por governantes herdeiros diretos de políticos que atuaram ativamente para manutenção do regime até o seu fim. Entre suas características, não cessam os elogios quanto ao seu pacifismo, ao seu poder de conciliação.
Então estaria Trotsky errado ao condenar o caráter conciliador do CNA? Era possível conciliar os interesses da minoria branca com aqueles das massas? A via revolucionária era um erro? Sem dúvida, a ascensão de Mandela no início dos anos 90 o fez atingir reputação internacional. Mas sua liderança – e isto a imprensa burguesa não diz – estava, em última análise, a serviço não da grande massa da classe trabalhadora sul-africana, mas da burguesia daquele país e do grande capital internacional.
Assim como a queda do muro de Berlin – deste vergonhoso aparato do regime estalinista – alimentou o sonho de milhões de europeus do Leste com a entrada no mundo das mercadorias, o fim do ultrajante e nefasto regime do apartheid ergueu esta mesma imagem de liberdade para milhões de sul-africanos. No entanto, se antes a questão racial erguia-se como intransponível, agora, a barreira de classe se impõe de forma inexorável.
A África do Sul hoje
Quase 20 anos após o fim do apartheid, há muito pouco a que se comemorar. No poder, o CNA implementou medidas impopulares que jamais um governo de brancos seria capaz de fazer – como cortes nos gastos sociais e privatizações. Atualmente, o país tem um desemprego perto da casa dos 25% – cerca de 4,5 milhões de pessoas, a maioria delas negras – e em crescentes desigualdades social e de renda. Segundo o Fórum Econômico de Genebra, dos 144 países avaliados, a África do Sul é o pior no quesito de relações trabalhistas.
Cerca de 10 milhões de pessoas não têm moradias apropriadas, sendo que falta saneamento básico a pelo menos 2,3 milhões de casas. Segundo o censo de 2011, os cidadãos negros – 79% dos 53 milhões de habitantes do país – ganham, em média, um sexto do salário dos brancos. E outro dado assustador: 1,9 milhão de famílias não têm qualquer fonte de renda, o que se traduz em pelo menos 32% da população vivendo abaixo da linha de pobreza.
Esse abismo social é acompanhado de uma crescente insatisfação popular com o CNA, assolado por escândalos de abuso de poder e corrupção que chegam nas mais altas esferas da política nacional. O atual presidente do país, Jacob Zuma, liderança histórica do CNA, não passa de um governante populista com diversas acusações de corrupção, fraude, suborno e violência sexual.
O que se vê no horizonte?
A morte de Nelson Mandela parece encerrar um ciclo da história daquele país. Sem o seu grande líder, o CNA já não terá o mesmo prestígio e admiração de antes. Não menos importante é constatar que a primeira geração pós-apartheid, os chamados “nascidos livres” deverão formar, muito em breve, um campo de tensão crítico, pois, alheios aos encantos de Mandela, terão diante de seus olhos um país profundamente desigual, com uma burguesia muito rica e políticos insaciavelmente corruptos – sejam eles brancos ou negros.