É preciso analisar a lástima histórica chamada Golpe Militar de 1964 sob uma ótica não apenas histórica, mas também militante. Ver a realidade sob uma ótica militante significa tirar lições do passado para compreender e intervir no presente e é, em realidade, a única forma de impedir que o passado nefasto retorne.
Ao Partido dos Trabalhadores (PT), há mais de 10 anos no poder, assim como a seus braços de controle do movimento dos trabalhadores e da juventude, interessa fazer uma análise apenas histórica em repúdio aos eventos de 64, desvinculando-os do presente. Assim melhor se esconde o caráter crescentemente repressor do Estado burguês sob a direção petista.
Por meio de conceitos vagos (como “populismo”) o governo do PT é associado ao de João Goulart e, nessa unidade, Lula e Dilma posam de democratas, discursam na TV contra a ditadura e o golpe, ao mesmo tempo em que intervêm com o exército contra a população trabalhadora.
O método do PT e seus burocratas é o do oportunismo e o da confusão. Faz-se necessário, portanto, um esforço para revelar que os governos de Jango e Lula-Dilma são conceitualmente muito diferentes. Compreender essa diferença é fundamental para definir a política da classe trabalhadora diante do governo atual.
A maré crescente sob a Frente Popular de Jango
O golpe militar em 1o de abril de 1964 significou um corte profundo na história brasileira. O país entrava, naqueles anos, numa conjuntura revolucionária. A bem dizer: numa situação pré-revolucionária que poderia desembocar num processo revolucionário socialista.
Uma situação pré-revolucionária, segundo a concepção de Lenin, se dá quando a burguesia não consegue governar de forma estável/democrática como antes (está desmoralizada, impotente para dirigir o país) e a classe trabalhadora não aceita ser governada como antes. Cumpre adicionar dois elementos, apontados por Trotsky: o surgimento de organismos de poder paralelo (dual) dos trabalhadores e a existência de um partido revolucionário.
Estatísticas revelam o crescente número de greves no Brasil no início dos anos 1960, sob o governo Goulart. Sabe-se, por exemplo, que o CNG (Comando Nacional de Greve) foi fundamental para a derrubada do primeiro-ministro Tancredo Neves e a nomeação de Brochado da Rocha em 1962. No mesmo ano o CNG deu lugar ao forte CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), central sindical fundamental no plebiscito sobre o presidencialismo e que influiria grandemente na formação do gabinete de Goulart. O CGT dirigia as lutas da classe trabalhadora e aparecia, de certa forma, como um contrapeso de poder, ainda que não houvesse realmente, em larga escala, a abertura de organismos de dualidade de poder. Tal caminho era vetado pelas direções de esquerda, PTB e PCB. O que mais faltava era então, sem dúvida, um partido revolucionário que prezasse pela organização independente e autônoma da classe em relação ao governo.
A conjuntura era de grandes contradições. Cabe lembrar dois episódios muito importantes: a Revolta dos Sargentos ao final de 1963, quando 600 suboficiais armados da Marinha tomaram o Departamento Federal de Segurança Pública, o Ministério da Marinha, a Rádio Nacional e o Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos (todos em Brasília), contra a limitação de direitos democráticos ao corpo do exército; e a Revolta dos Marinheiros de 25 de março de 1964, quando 2 mil marinheiros e fuzileiros navais se rebelaram em nome do reconhecimento oficial do seu sindicato e melhores condições de vida e alimentação nos navios. Neste caso, o destacamento enviado para lhes reprimir, dirigido pelo contra-almirante Aragão, aderiu à rebelião no meio do caminho e a escaramuça, também apoiada por Jango, provocou a demissão do Ministro da Marinha, Almirante Sílvio Mota. Em seu lugar foi nomeado pelo presidente o Almirante Paulo Mário da Cunha Rodrigues, próximo ao PCB.
Por tudo isso, o governo de João Goulart pode ser caracterizado, sobretudo em sua fase final, como um governo de Frente Popular. “Frente Popular” é a caracterização de um tipo de governo específico, existente em outros momentos da história, que consiste numa coalizão de partidos representantes da classe trabalhadora com partidos representantes do capital. Mas não é apenas uma coalizão de representantes das classes (como hoje, com o PT): o governo de Frente Popular expressa os anseios de amplos setores da classe trabalhadora, então mobilizados para a própria sustentação/pressão sobre o governo.
Exemplos clássicos de governos de Frente Popular são o Governo Provisório russo entre fevereiro e outubro de 1917 — sobretudo quando os Socialistas-Revolucionários (SRs) e os mencheviques entram nesse governo —; o governo Francês de Léon Blum em 1936 (composto pelo Partido Comunista, Partido Socialista e o burguês Partido Radical); o governo de Azaña na Espanha em 1936 (ampla coalizão de esquerda com partidos burgueses, que ganhou apoio até dos anarco-sindicalistas) e o governo de Allende no Chile entre 1970 e 1973, na coalizão chamada Unidade Popular (Partido Socialista, Comunista, o burguês Partido Radical, Partido Social-Democrata, MAPU, e outros).
A diferença entre estes exemplos é que somente no primeiro caso, o caso russo, houve realmente a conformação em larga escala do poder dual, os Conselhos (Sovietes), o poder paralelo ao do Estado burguês. Isso se deveu, em grande parte, à existência de um partido revolucionário, o Partido Bolchevique, que educou por anos a vanguarda da classe trabalhadora. Nos demais países o Partido Comunista, sob orientação stalinista, impediu a criação do poder paralelo, exatamente como ocorreu no Brasil, o que inchou ainda mais a Frente Popular e manteve a classe trabalhadora de mãos atadas para o combate com a burguesia que inevitavelmente se daria.
A política da Frente Popular não é, portanto, defensável. Ao manter atadas as mãos da classe trabalhadora, desmoralizando-a, ela prepara os golpes bonapartista ou fascista que lhe sucedem. No caso brasileiro, a Frente Popular janguista foi sucedida pelo bonapartismo militar, que assumiu, em maior ou menor grau, até 1974, características fascistas. Cabe relembrar: o bonapartismo é uma forma de governo que mescla parlamentarismo e fascismo e, por isso mesmo, só pode ser transitório. Já o fascismo é uma forma de governo que suprime qualquer característica democrático-burguesa e mobiliza massas pequeno-burguesas (e até setores do proletariado) numa ditadura plena para a destruição das organizações da classe trabalhadora. Mas ela é também temporária, refluindo, em geral, para o bonapartismo.
A Maré invadida sob o semi-bonapartismo do PT
Lula e o PT têm outra gênese, muito diferente dos comunistas ou brizolistas. Lula foi fruto do cérebro da ditadura, o general Golbery do Couto e Silva. Interessava a Golbery, para o processo de distensão que garantiria a reabertura democrática, encontrar um caminho de controle sobre a classe trabalhadora que não fosse comunista ou brizolista, vez que estes não eram confiáveis para o grande capital. Para isso o grupo sindicalista pelego do ABC dominado por Lula, dirigente sindical desde a primeira metade dos anos 70, foi a melhor opção. Pelo mesmo motivo Golbery articulou, mais tarde, a passagem dos direitos da sigla PTB para o grupo de Ivete Vargas, oposto ao de Brizola, quebrando a influência dos brizolistas sobre a esquerda.
Com o controle do grupo de Lula sobre o movimento da classe trabalhadora a história do Brasil abriu um novo capítulo, desvinculando-se do brizolismo de caráter varguista. É curioso comparar, por exemplo, o Brasil com a Argentina. Lá, por não ter havido um processo semelhante de ruptura, renasce sempre o peronismo em suas variantes, alimentando uma política que pode provocar maiores choques, ainda que momentâneos e localizados, com o grande capital (veja-se o caso recente da expropriação da petroleira espanhola).
O PT, caracterizado desde a sua gênese pela ausência total de ideologia ou princípios, característica do seu próprio grupo dominante, serviu como uma luva ao grande capital. Quando no governo, o PT não somente manteve as linhas gerais do programa econômico do PSDB como foi até mais competente em exercê-lo, uma vez que mantém controlada pela máquina estatal a maior parte do movimento dos trabalhadores e da juventude. O PT, portanto, aplica claramente um política burguesa, agindo como um partido burguês e não como um partido do proletariado (o que ocorreria, relativamente, numa Frente Popular).
É por isso tudo que hoje, quando estouram, apesar do PT, as contradições de classe no Brasil, esse partido é o mais habilitado para a necessária repressão burguesa à classe trabalhadora, se aproximando da forma de governo bonapartista. Justamente para exercer essa função o PT aplica seu método mais característico: o oportunismo.
É puro oportunismo quando ele se compara ao governo de Jango e acusa, por exemplo, a juventude que sai às ruas contra a Copa do Mundo de títeres de uma direita que prepara um golpe contra Dilma. A comparação com a situação do golpe de 1964 é evidentemente falsa. O PT não é uma Frente Popular, a burguesia não quer derrubá-lo ou é forçada a aturá-lo: a burguesia está satisfeita com ele. A Marcha da Família, realizada recentemente no Brasil, aglutinou 500 desclassificados, enquanto a Marcha da Família em 1964 contou com mais de 500.000 pessoas da pequena-burguesia mobilizada pela grande burguesia. Não há risco golpista hoje no Brasil.
É puro oportunismo quando o PT inventa desculpas para legitimar o uso crescente do exército contra a população trabalhadora. Veja-se o caso recente e abominante da Favela da Maré. Sob a justificativa de acabar com o tráfico de drogas, invade-se com a elite da polícia e carros blindados do exército uma região estratégica para a locomoção de turistas na Copa do Mundo (pois liga as linhas amarela e vermelha e fica ao lado do aeroporto internacional Tom Jobim). Mas as informações sobre a premeditada invasão vazam e é dado tempo necessário aos traficantes para fugirem…
No momento em que escrevemos este texto a Justiça burguesa expediu um mandato coletivo permitindo à Polícia Civil entrar na casa de qualquer morador da Favela da Maré para “busca e apreensão”. Ou seja: “às favas com todos os direitos”, parafraseando Jarbas Passarinho no AI-5. Diversos são já os relatos de policiais ocupando casas na Maré, expulsando seus moradores, dormindo e tomando banho em suas casas. A operação já registra um jovem morto arbitrariamente e dezenas de denúncias (que só não são centenas pois a população teme as represálias).
É disso que o PT se orgulha quando escolhe esta semana maldita para o uso do exército internamente em escala não vista desde a Ditadura Militar.
É preciso que tenhamos clareza: o PT é hoje a coluna vertebral de um processo autoritário crescente, dada a sua localização privilegiada sobre setores da classe trabalhadora e no Estado. À medida que crescer o uso do exército, conduzirão o governo petista e seus aliados a transformação do Estado atual em Estado bonapartista, ou seja, um Estado que reprime a classe trabalhadora amparado em estrutura militar. É evidente que os protagonistas podem mudar no processo, mas a sua tendência se confirma a cada dia.
Em vez de silenciar sobre o PT, é hora, mais do que nunca, de denunciá-lo aberta e publicamente, enquanto única forma de paralisá-lo. Para além do saudosismo sobre a ditadura, é importante ter clareza de que combater a ditadura de 1964 passa hoje, sem dúvida, pelo combate à ditadura gestada pelo PT.