Transição Socialista

Uma polêmica de décadas (PSTU)

Resposta ao texto assinado por Murillo Magalhães (PSTU)

O Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) publicou no dia 10/05/13 um texto assinado por Murillo Magalhães, ex-militante do Movimento Negação da Negação (MNN) que ingressou naquele partido.

Murillo militou no MNN pouco mais de quatro anos.  Ao sair do Movimento, em maio de 2012, enviou uma pequena carta à direção do grupo, onde afirmava: “em linhas gerais, não possuo divergência teórica (…) Meu afastamento se deve, sobretudo, a minha incompreensão teórica”. Surpreendentemente, depois de ingressar no PSTU, Murillo assina este texto indicando diversas divergências teóricas com o MNN que nunca, ao longo dos quatro anos, sequer mencionou. Curioso é que estas divergências não são nada novas, mas datam da  virada dos anos 70 para os 80, quando nossa organização engatinhava e o PSTU não existia senão enquanto Convergência Socialista.

Continuemos, então, esta longa discussão de décadas com o PSTU/Convergência. Comecemos pela forma de interpretar o Programa de Transição, documento de fundação da IV Internacional.

O texto afirma que “para o MNN, em qualquer conjuntura da luta de classes, em qualquer conflito sindical, o programa deve se hierarquizar pelas demandas de “Escala móvel de salários” e a “Escola móvel das horas de trabalho”, como se o MNN desprezasse todas as outras reivindicações levantadas pelos trabalhadores. Nada mais falso. Seguindo as indicações de Trotsky no Programa de Transição, o MNN sempre reconheceu “as diversas reivindicações que surgem, a cada momento, de circunstâncias concretas, nacionais, locais e profissionais”. No entanto, apesar de reconhecer a pertinência de reivindicações parciais, Trotsky e o MNN defendem duas reivindicações comuns a todo o proletariado, reivindicações que, ao lado das inúmeras reivindicações particulares que podem vir a ser levantadas pelos trabalhadores, tenham a potencialidade de unificar a luta do proletariado.

Além de serem reivindicações comuns a todo o proletariado, as escalas móveis têm um caráter transitório. É isso o que Trotsky argumenta, numa discussão com membros do Socialist Workers Party (SWP). Perguntava, então, Trotsky, o que era, no fundo, esta reivindicação da escala móvel dos salários e de horas de trabalho. E ele próprio respondia: “Na realidade, é a descrição do sistema de organização do trabalho na sociedade socialista. O número total das horas necessárias, dividido pelo número total de trabalhadores. (…) este é o próprio programa socialista, na sua forma mais simples, e a mais próxima das massas”.

Isso significa dizer que as escalas móveis são, ao mesmo tempo, reivindicações econômicas e políticas, são reivindicações que aparecem como mínimas (meramente econômicas) para os trabalhadores comuns, mas que na realidade são reivindicações máximas, socialistas, pois os capitalistas, em conjunto, não são capazes de atendê-las, e, justamente, por isso, são reivindicações transitórias. Não compreender isso significa retirar o caráter transitório do Programa de Transição, ou seja, significa retirar todo o seu conteúdo revolucionário.

Mas como realizar a transição do momento atual até o momento da tomada do poder? Teriam as escalas móveis uma espécie de poder mágico, transcendente, capaz de conduzir o proletariado nesse caminho, como ironizam aqueles que não compreendem a dialética do Programa? Evidentemente que não se trata disso. O Sistema de Reivindicações Transitórias do Programa de Transição, do qual as escalas móveis são apenas o primeiro elemento impulsionador, tem como eixo a construção pela classe trabalhadora de uma dualidade de poder em relação ao poder burguês. Este poder dual do proletariado inicia-se, como defende Trotsky no Programa, nos locais de trabalho, por meio dos comitês de fábrica construídos de forma totalmente independente dos patrões e da burocracia sindical. Estes servirão de base para uma dualidade de poder regional e setorial através dos organismos de controle operário. A construção da dualidade de poder só se efetivará quando todas estas estruturas locais, regionais e setoriais ganharem uma unidade superior por meio dos conselhos (sovietes), organismos que terão como tarefa dirigir todos os trabalhadores à conquista do poder, a tarefa denominada por Marx no final do Livro I de O capital de “expropriação dos expropriadores”.

Num sentido contrário a essa herança deixada por Marx em O capital, essa herança da via soviética deixada pela história da Revolução Russa e sintetizada por Trotsky no Programa de Transição, o texto assinado por Murillo defende que “os revolucionários devem levantar as mais variadas demandas, num sistema de palavras-de-ordem que politize as mobilizações e as levem à questão do poder”. Vê-se aqui, depois de mais de um século, repetir-se a antiga polêmica denunciada e superada pelo Programa de Transição, aquela polêmica própria da II Internacional entre um programa mínimo com caráter meramente econômico e um programa máximo, político, que deveria, como propõe o texto assinado por Murillo, “politizar as mobilizações”.

Para o PSTU, a luta política ou a luta pelo poder é inserida de fora para dentro daquilo que eles chamam de lutas econômicas da classe trabalhadora. N’O capital e n’o Programa de Transição, as condições da luta política ou a “expropriação dos expropriadores” são produzidas de maneira imanente a partir das lutas aparentemente econômicas, se forem conduzidas de maneira transitória, sem concessões à burguesia.

Não se trata, como afirma-se no texto assinado por Murillo, de uma mera questão de “hierarquização das palavras de ordem”. Trata-se de defender o único caminho que o proletariado poderá traçar para conquistar o poder, aquele caminho traçado pelo proletariado russo dirigido pelos bolcheviques, o caminho da construção de uma dualidade de poder por meio de seus comitês e conselhos independentes como embriões de um novo Estado operário, com o objetivo de conquistar, no momento da insurreição, a propriedade dos meios de produção. Sem a construção destas organizações duais, gérmens do futuro Estado operário, sem a construção de uma dualidade de poder, a revolução não passa de retórica vazia, não passa de uma palavra lançada e perdida ao vento, ou, como diz Trotsky, utilizada nos dias de festa.

Outra questão levantada no texto assinado por Murillo é a caracterização do Brasil. Perguntamos, inicialmente, se as particularidades históricas de cada país e a maneira como se formaram as classes sociais em seu interior exerceriam alguma influência nas particularidades do programa revolucionário a ser conduzido em cada um deles. Pensamos que estas particularidades não podem ser desprezadas.

Nesse sentido, se é verdade que a América Latina possui certa identidade comum, há, no entanto, diferenças essenciais entre alguns de seus países. Por exemplo, sabemos que em O capital, Marx caracteriza a região onde atualmente se localiza o Peru como tendo sido uma região habitada por uma civilização do tipo asiática, a civilização Inca, na qual a terra era propriedade estatal, em torno da qual se organizavam comunidades mais ou menos autônomas, formando uma estrutura social baseada em castas. Nos Grundrisse, Marx observa que estas sociedades caracterizam-se por sua profunda imutabilidade, ou seja, mesmo que a produção seja predominantemente capitalista, subsistem nestas regiões heranças pré-capitalistas que criam características sociais e culturais milenares dificilmente destruídas pelo capitalismo.

Seguindo as concepções de Marx, Trotsky considera, no início do item do Programa de Transição intitulado “os países atrasados e o programa de reivindicações transitórias”, os países coloniais e semi-coloniais como sendo, “por sua própria natureza, países atrasados”, cujo desenvolvimento tem “um caráter combinado: reúne em si as formas econômicas mais primitivas e a última palavra da técnica e da civilização capitalista”. Fica claro nessa passagem que para Trotsky a noção de atraso está ligada à permanência de relações pré-capitalistas. Para estes países atrasados, coloniais ou semi-coloniais Trotsky propõe combinar “a luta pelas tarefas mais elementares da independência nacional e da democracia burguesa com a luta socialista contra o imperialismo mundial”. A identidade civilizatória anterior à invasão dos europeus confere, nestas regiões, uma consistência e um apelo popular às lutas pela defesa da independência nacional, pela defesa de seus recursos naturais, em suma, às lutas anti-imperialistas.

As regiões nas quais atualmente localizam-se o Brasil, a Argentina e o Uruguai, são caracterizadas pela ausência histórica de civilizações pré-capitalistas. Como se sabe, os europeus encontraram nessas regiões apenas comunidades primitivas totalmente isoladas entre si, sem qualquer forma de apropriação estatal da natureza. Nestas regiões, a luta de classes estaria, por isso, segundo Marx e Trotsky, livre de qualquer herança pré-capitalista que pudesse mascarar e dificultar a manifestação aberta do antagonismo entre as duas classes fundamentais do modo de produção capitalista, a burguesia e o proletariado. Nessas regiões o caminho para a construção da dualidade de poder contido no Sistema de Reivindicações Transitórias do Programa de Transição poderia ser realizada, segundo Trotsky, sem mediações de lutas democrático-burguesas e de independência nacional.

Do ponto de vista das condições objetivas para a revolução socialista, o Brasil, a Argentina e o Uruguai estariam além daqueles países localizados em regiões que haviam sido habitadas por civilizações pré-colombianas. Entre estes três países há, no entanto, enormes diferenças. O Brasil é o que possui as forças produtivas mais desenvolvidas, o que lhe confere uma importância decisiva no continente. Em função da pujança de suas forças produtivas, uma revolução socialista no Brasil teria a capacidade de arrastar atrás de si os demais países da América Latina, podendo se transformar, num prazo mais ou menos curto, numa revolução continental e, consequentemente, num importante elo na cadeia da revolução socialista mundial. É esse o papel que o Brasil pode desempenhar na revolução mundial, se contiver em seu interior, uma direção revolucionária que compreenda a teoria da história de Marx e tenha suficiente inserção nos principais setores do proletariado brasileiro.

Outro ponto a ser esclarecido é aquele da caracterização dos governos Lula e Dilma. Um governo bonapartista expressa uma situação na qual, por um lado, a burguesia não tem mais legitimidade para governar, necessitando, por isso, de um representante cuja origem é estranha a sua própria classe e que se apoie nos setores improdutivos mais atrasados da sociedade, se colocando como se estivesse acima dos interesses das classes e, por outro lado, uma situação na qual o proletariado ainda não construiu uma organização revolucionária suficientemente forte para derrubar o Estado burguês. Lula, Dilma e o PT cumprem exatamente este papel.

A caracterização feita pelo PSTU de que os governos Lula e Dilma seriam de Frente Popular baseia-se na definição do PT como um partido operário que governa em aliança com setores da burguesia. Ou seja, o governo do PT estaria em disputa entre a classe operária e a classe burguesa. A caracterização feita pelo PSTU concede excessivamente ao PT, conferindo-lhe um caráter operário o qual ele não possui.

Quanto aos levantes no Oriente Médio e no Norte da África, apenas algumas palavras, para finalizar. Perguntamos aos camaradas do PSTU o que existe hoje da primavera árabe, tão alardeada por boa parte da esquerda, em uníssono com a imprensa burguesa mundial? Na Tunísia, berço da chamada primavera, a “revolução” impõe às mulheres o uso do véu e tantas outras medidas reacionárias. E o que dizer da Síria? Este país, mergulhado numa sangrenta guerra sem fim, arrasta tal conflito para uma guerra de proporções regionais, sob os olhares coniventes das grandes potências capitalistas.

Sem nos estendermos, terminamos aqui mais esse capítulo de nossa discussão teórico-programática de várias décadas. Esperamos que este texto contribua para esclarecer os companheiros. Queremos ressaltar que consideramos os militantes do PSTU companheiros na luta cotidiana, para quem temos feito sempre chamados de unidade na ação e para a conformação de chapas sindicais (chamados, em geral, ignorados). Temos no capitalismo e nos seus representantes, certamente, um poderoso inimigo comum, diante do qual devemos cerrar fileiras na luta, sem sectarismos ou ultraesquerdismos.