Transição Socialista

CARTA PÓSTUMA AO PROFESSOR (E AMIGO) HECTOR BENOIT

por Andre Koutchin de Almeida[1]

Professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) desde 1990, Hector Benoit participou, nessa Instituição, da fundação do Centro do Pensamento Antigo (CPA) e do Centro de Estudos Marxistas (CEMARX). Após se aposentar em 2015, continuou atuando como professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Na Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), ajudou a fundar os Grupos de Trabalho Platão e o Platonismo e Marx e a Tradição Dialética. Foi, também, um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Platonistas (SBP). Nascido em 02 de setembro de 1951, na cidade de Montevideo (Uruguai), Benoit faleceu no dia 05 de dezembro de 2022, em São Paulo (Brasil). 

Era uma tarde ensolarada. O dia estava muito quente e mesmo as diversas árvores que habitam o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) não eram capazes de amenizar o calor. Eu não conhecia o campus universitário. Sequer havia estado em Campinas anteriormente. Não era, portanto, um aluno graduado e pós-graduado na Unicamp. Por esse motivo, até chegar de ônibus ali, tive que pegar diversas informações para saber onde ocorreriam as entrevistas para concorrer a uma vaga para o Doutorado em Filosofia do IFCH-Unicamp. Após uma pequena maratona, quando cheguei à sala informada, um aluno dali, da Unicamp, estudante de Platão, aguardava por sua entrevista com o orientador indicado. Perguntei ao rapaz quem seria o seu possível orientador e descobri que era o mesmo que o meu. Eu estava acanhado, afinal, havia vindo do interior do Brasil (Campo Grande/MS) “disputar” uma vaga com pessoas que, como aquele rapaz, possuíam toda a sua formação em Campinas; pessoas que haviam tido aulas com aquele professor, inclusive. Após alguns minutos de espera, eis que o nosso possível orientador chega para nos entrevistar. Com passos vagarosos e um sorriso singelo no rosto ele logo me olhou e me perguntou: “quem é o Andre Koutchin? É você?”. Eu respondi que sim. Ele se virou ao rapaz ali sentado, que havia sido seu aluno, e pediu educadamente: “espere lá fora, por favor. Começarei as entrevistas por ele”. Percebi aquele rapaz se retirar da sala um tanto contrariado, por ter sido, em certo sentido, preterido por alguém que aquele professor nem conhecia. Essa era a primeira vez que eu me encontrava pessoalmente com Hector Benoit. Todos os meus contatos anteriores com ele haviam sido exclusivamente através de seus textos e de alguns poucos e-mails trocados para a apresentação do meu projeto de pesquisa. No entanto, esse primeiro contato pessoal e essa prioridade em me entrevistar demonstraram duas características marcantes da personalidade do professor Benoit: incialmente, um compromisso político com um trabalho militante. O meu projeto era tratar Lênin na filosofia. Em segundo lugar, o de não tratar como prioridade alguém que possuísse uma formação supostamente mais tradicional do que a minha (o que, tempos depois, descobri que aprendeu de seu falecido orientador, professor José Cavalcante de Souza). Assim como eu, boa parte – senão a maioria – de seus ex-orientandos (que ele costumava pronunciar de modo peculiar, como “eks” orientandos, ao invés de “eis”) vieram de diversos lugares do Brasil. Benoit se orgulhava de dizer que possuía vários deles atuando como professores em universidades espalhadas por todo o país. Além disso, muitos não possuíam necessariamente uma formação filosófica estrita. Para todos esses, sem dúvida, Benoit foi a única porta de entrada possível em um ambiente tão disputado e exclusivo, que, quase sempre, exige essa formação. Sem ele, todos nós dificilmente estaríamos ministrando aulas hoje em dia, também nesses ambientes. Assim, em quase duas horas de entrevista, conheci o professor Benoit. Lembro-me de ele dizer, nessa mesma entrevista, “estava curioso para conhecer quem era o sujeito disposto a tratar de Lênin na filosofia”, enquanto eu pensava ali, quase que simultaneamente, “e quem poderia me orientar em Lênin na filosofia?”. Certamente, muitos de seus orientandos devem ter se feito a mesma pergunta, tanto aqueles que abordaram o platonismo, como aqueles que se dedicaram ao marxismo (como sabemos, suas leituras e interpretações em ambas as linhas eram originais e revolucionárias). Para mim, contudo, a resposta já estava dada. Ali mesmo, Benoit me disse que seria um orgulho tratar do dirigente daquela grande obra filosófica e coletiva que havia sido a Revolução Russa. Ali, perguntou-me também sobre a origem de meu sobrenome. Apesar de ser orgulhosamente basco-uruguaio, Benoit sempre demonstrava interesse pelos meus ancestrais russos. E, até o fim, continuou admirando e elogiando o povo russo a mim. Depois de então comunicar a minha aprovação na entrevista – assim como o faria também com o rapaz que aguardava fora da sala, já claramente cansado da espera – passei a ter um contato mais próximo com o professor Benoit. Como não morava em São Paulo, muitas de nossas conversas passaram a se dar por e-mail, mas, sobretudo, por telefone. Esse era um hábito que Benoit cultivava com ardor: realizar chamadas telefônicas que duravam cerca de uma, duas horas e, em alguns casos, até mais. Ele ligava a qualquer hora do dia; às vezes, até, de madrugada. E em quase todas essas ligações, ele conduzia insistentemente a conversa, avançando e retrocedendo aos assuntos, com pequenas pausas para alguma pergunta pontual ou para identificar se o interlocutor estava atento. Com o tempo percebi que, além de exigir a consideração do ouvinte por sua incontestável e superior experiência de vida e de luta, o professor Benoit aplicava um ensinamento conferido por Parmênides de Eléia ao então jovem Sócrates, no diálogo Parmênides: era necessário se exercitar em uma “ginástica do discurso”. Antes de mais nada, atende-lo a qualquer hora do dia, disposto a ouvi-lo por horas a fio, já era um exercício de paciência e esforço que muitos de nós, tomados pelas exigências do dia a dia, não estávamos dispostos a praticar. Em uma de nossas últimas conversas, indignado com aqueles que não o atendiam (dizia-me algo assim: “isso demonstra que já estão, de certo modo, adaptados à vida burguesa”), confessou-me que o único que continuava a fazê-lo, indiscriminadamente, era o Tatu, operário e militante do ABC paulista que lutou na época da organização do jornal O Corneta, de que tanto Benoit se orgulhava. Deste modo, e desde então, foram muitas conversas, ou melhor, aulas, que tive com o professor Benoit por telefone. Com os anos, nossas ligações foram naturalmente se tornando mais íntimas e Benoit passou a ser, para mim, uma espécie de conselheiro, de mentor, que eu procurava sempre que alguma decisão importante precisava ser tomada, mesmo que muitas vezes nossas conversas enveredassem para temas mais casuais. Seja como for, em outubro deste ano, encaminhei um e-mail com diversas questões que me afligiam naquele momento (neste tipo de ocasião, eu preferia escrever para me expressar mais claramente e com mais exatidão). Nos últimos tempos, com dificuldade no manuseio de certas tecnologias, ele me respondeu dizendo: “não consigo escrever a resposta neste e-mail. Vou lhe enviar uma carta por Sedex”. A carta foi datada em 24 de outubro de 2022, chegando até mim no dia 25, dia de meu aniversário (Benoit não premeditou isso; sequer era afeito a esse tipo de coisa. Mas, hoje considero que acabou sendo uma espécie de presente seu para mim). Eram 28 páginas escritas à mão pelo professor Benoit. Ali, ao me responder, ele falava de sua vida, de suas paixões e frustrações, das traições e golpes sofridos, mas, sobretudo, de sua luta pela causa operária[2]. Benoit sempre abriu mão de tudo o que não fosse em partido da classe trabalhadora, de sua organização, movimento e luta (e isso incluía, para ele, dinheiro, propriedades e, muito sofridamente, relações). Nos dias que se seguiram, as ligações passaram a se tornar frequentes. No mês de novembro, foram mais de 15 telefonemas. Desde as últimas eleições no Brasil, em outubro e novembro de 2022, o professor Benoit estava nitidamente incomodado e, nas palavras dele próprio, “muito triste”. Para os que o conheciam, não era de estranhar que, com seu marxismo bolchevique, dialético, crítico e revolucionário, Benoit estava inconformado com a crise capitalista no Brasil e no mundo. Mais do que isso, em suas palavras, havia um sentimento de fracasso, porque a revolução socialista internacional, pela qual tanto trabalhou, não havia sido concretizada. No entanto, nessas últimas ligações, alguns elementos pessoais me chamaram muito a atenção e, agora, ecoam em mim ainda mais simbólicos. Benoit falava de seu filho mais velho, Alexandre, que na juventude teria, por influência sua, se dedicado ao judô. Falava com entusiasmo dos treinos com campeões olímpicos e de um golpe de cintura excepcional que Alexandre aplicava. Benoit adorava as artes marciais. Falava com orgulho de sua iniciação nelas através do Karatê, com um mestre de Okinawa, local em que a arte foi criada. Contudo, sua verdadeira paixão, era o Aikido. Orgulhava-se de dizer que era faixa preta nessa arte. Como dialético, apreciava o uso estratégico dos polos opostos nessa mesma arte (o que os orientais chamam de Yin e Yang). Ainda no âmbito dos esportes, comentou comigo que havia se aproximado de seu filho mais novo, também chamado Hector, através do xadrez. Chegou a me dizer: “olha, se eu não estivesse jogando pra valer com ele, eu perderia!”. Confessou ainda que, recentemente, havia descoberto que seu caçula era ambidestro – “qualidade dos gênios excepcionais, como o Messi”. Benoit também gostava de futebol. Palmeirense no Brasil, reconhecia certa admiração para com a torcida corintiana (particularmente, recordo-me de sua empolgação quando comentei-lhe sobre minhas experiências com a torcida organizada do Corinthians). Em nossas últimas ligações, era perceptível que a TV ao fundo transmitia os jogos da Copa do Mundo, no Qatar, enquanto conversávamos. Em 2014, quando o uruguaio Luiz Suárez foi banido da Copa por morder a orelha de um adversário, percebi nele, confesso, certo orgulho sarcástico (“os uruguaios são barra pesada mesmo!”). Ao lembrar ainda de sua reconciliação com seu filho mais novo, recordei-me de um fato especialmente tocante para mim. Conversava com o Hector sobre meu sobrinho de 12 anos. Dizia-lhe que estava incomodado com o fato dele estar, nos termos usuais, “postando” comentários sobre o cenário político brasileiro atual, enaltecendo um dos polos aparentes e deferindo ataques ao outro. Comentei que pretendia escrever uma carta ao meu sobrinho. E perguntei-lhe: “o que acha que devo dizer?”. O professor respirou por alguns segundos e em sequência me disse: “diga-lhe para amar, para que ele namore, ame. Que pratique esportes e leia muito. Que não acredite em notícias falsas. Que leia e chegue a suas próprias conclusões. Mas, que, sobretudo, ame. Já é uma grande coisa nesse mundo”. Logo em seguida, o professor Benoit me explicou o que, para ele, seria o verdadeiro sentido da filosofia. Dizendo-me que considerava inadequada a tradução corrente no Brasil (Benoit era fluente em grego clássico) – “amor pela sabedoria” – ele falou que, de fato, parecia-lhe que amor, mas não a forma romantizada do termo, uma forma superior de amor, parecia-lhe a mais adequada: uma solidariedade universal, uma forma radical de amor para com todos nesse mundo. Nesse dia ainda completou, com a modéstia que tanto caracteriza as grandes personalidades: “não sou filósofo. Sequer me considero professor. Mas, não houve um dia em que eu não entrasse em sala de aula procurando fazer desse mundo um mundo melhor”. Nesse mesmo dia, ainda conversamos sobre Nietzsche – que, com seu apreço pelos gregos, foi uma das influências para os seus estudos sobre a Antiguidade (ainda que esses estudos tivessem incialmente a finalidade de lhe proteger da perseguição política). Neste ponto, Benoit, militante desde a juventude, contou-me rindo que ao encontrar um velho colega este o teria perguntado: “mas, o que aconteceu? Você mudou de área?”. Ainda sobre Nietzsche, falou de sua revolta individual para com a decadência do mundo burguês, algo que teria levado o próprio Nietzsche à loucura. Mas, o professor Benoit, como sabemos, não era nietzschiano. Era um lúcido marxista que ao comparar autores tão distintos, sempre insistia: “ambos, Marx e Nietzsche, cada um ao seu modo, não suportavam a Academia”. Benoit também não. Estudando Platão a fundo, e em grego, confessava ter desconfiado, a certa altura, do Platão que ministrava em seus cursos sobre Filosofia Antiga, no campus da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto. Foi ali que o professor Benoit descobriu um outro Platão, aquele cuja dialética esotérica que atravessa todos os Diálogos o revela em um comunista. Para o professor Benoit, foi esse Platão, radicalmente distinto da tradição metafísica (e cristã) ocidental, que fundou a Academia. Mas essa Academia de Platão também não é a que Benoit criticava. A Academia que Benoit criticava é essa dos pedestais professorais, repleta de ancestralidade medieval, de espaços conquistados na base de um carreirismo egoísta, covarde e servil à burocracia pequeno-burguesa. A Academia de Platão que Benoit genialmente defendia em sua obra era mais um partido político. Um partido destinado à formação de cidadãos comprometidos com o projeto prático de transformação do mundo em um mundo melhor. A monumental A Odisseia de Platão: as aventuras e desventuras da dialética[3], publicada em 2017,é o legado dessa leitura e interpretação revolucionárias de Platão nos deixada pelo professor Benoit. Obra que Benoit, em seus últimos dias, afirmou que continuaria. Benoit falava de sua reflexão ao longo dos anos sobre tal necessidade, que fora lhe colocada por seu amigo, o também já falecido professor Arley Moreno. Após diversos anos, ele teria descoberto e confidenciado aos mais próximos a chave para prosseguir com a Odisseia. Falava: “eu não vou desistir. Eu não consigo. Para mim, é impossível. Eu vou publicar mais dois livros”. Um deles, era a referida continuação da obra platônica. O outro era sobre Marx. Também o Marx de Benoit não era o Marx de certa tradição dominante. Como leninista-trotskista, Benoit insistia na importância da dialética para a leitura e compreensão da obra maior de Marx, O Capital. Essa dialética originária e rigorosamente encontrada pelo professor Benoit em Platão estaria no modo de exposição de O Capital (que ele sempre fazia questão de referenciar no alemão Darstellungsweise). Aqui, sempre me pareceu que Benoit seguiu de perto uma pista deixada por Lênin em seus Cadernos Filosóficos (obra que Benoit tanto apreciava): a de que se deveria estudar Hegel sob uma perspectiva marxista. Mas, Benoit foi além. Ele estudou sob a perspectiva marxista toda a tradição dialética pré-marxista, Hegel e, também, pré-hegeliana (Proclus, Aristóteles, Parmênides, Heráclito e, sobretudo, Platão). Em uns de meus poucos textos, comento que às vésperas de publicar O Capital, Marx insistia com Engels na leitura de um romance balzaquiano, apontando que, igualmente, ele Marx, não teria tempo de ver a sua obra revolucionária compreendida e “ganhando vida”. Tragicamente, esse parece ser o destino de muitos gênios revolucionários. Foi assim que, em uma tarde chuvosa de 27 de novembro desse ano, tive a minha última conversa telefônica com Hector Benoit. Foram vários os assuntos. Ele falou sobre sua mãe (“ela morreu com 98 anos. Se eu tiver a genética dela, e eu acho que tenho, sou muito forte, tenho mais uns 20 anos pela frente”). Falou sobre seu padrasto alemão, que chamava o pequeno Hector, preconceituosamente, de “criollo” (Hector veio com sua mãe e padrasto muito novo para o Brasil; seu pai biológico haveria ficado e morrido no Uruguai). Essa relação conturbada com o padrasto o teria incentivado ainda mais obstinadamente na direção dos estudos. Comentou-me, também, que muito cedo teria feito uma atividade na escola e que, para tanto, teria copiado o trecho de um livro de Monteiro Lobato, sem que sua professora tivesse se dado conta disso. Isto o teria desacreditado do formalismo escolar burguês. Disse-me que aos 6 anos de idade começou a frequentar bibliotecas (hábito que, dentre todos os colegas de sua turma, apenas ele possuía) e que aos 71 desejava se mudar para perto da biblioteca da USP para ler mais e terminar seus livros. Na mesma USP, aliás, onde em seus tempos de estudante conheceu Gérard Lebrun, um de seus melhores professores, e com quem aprendeu o hábito de sempre escrever suas aulas. Falou-me saudosamente do João, um dos militantes mais corajosos que conheceu, mas que suicidou-se jogando-se do sexto andar de um prédio, anos atrás. Confidenciou-me sobre seus dilemas familiares recentes (e eu, os meus a ele), falou novamente dos filhos, da dor da perda de Gal Gosta (estava escrevendo um pequeno artigo sobre ela) e de Erasmo Carlos (estava sensivelmente abalado por isso). Lembrou de Chico Buarque (e de sua música que exalta a força das mulheres atenienses), de Freud (que teria lido em alemão para ajudar na tese de uma ex-companheira), de Platão – como sempre, mas, nesse dia, particularmente do Estrangeiro de Eléia –, de sua experiência na França com Pierre Vidal-Naquet, que o motivou a criar o Centro do Pensamento Antigo (CPA) da Unicamp. Há poucos dias, inclusive, Benoit havia sido reeleito para a direção do CPA, frisando a importância de sua luta histórica para a manutenção e sustentação daquele espaço, e com o qual pretendia desenvolver ainda mais trabalhos (dizia querer promover um colóquio sobre os antecedentes africanos de Grécia e Roma, afirmando: “eu não tenho dúvidas de que somos todos, em certa medida, africanos”). E, ao longo de toda a conversa, claro, dialogamos sobre política. Tudo para Benoit girava fundamentalmente ao redor da política: todas as angústias, decepções e sofrimentos da vida contemporânea só poderiam ser resolvidos com um comunismo internacional. Mas, não foi assim que nos despedimos naquele dia 27 de novembro. Curiosamente, naquele dia, Hector se despediu de mim como nunca havia feito antes. Suas últimas palavras foram: “olha, não me leve a mal. Você sabe do meu amor pelas mulheres. Mas, no Uruguai, temos o hábito de nos despedirmos com um beijo. Um beijo entre homens, no rosto. Então, meu amigo, um grande beijo pra você!”. E foi assim que desligamos o telefone pela última vez. E assim era Hector Benoit: um militante abnegado, exigente e incansável; mas, dialeticamente, um amigo sensível, generoso e carinhoso. Que bom que tenha sido dormindo e em paz, camarada. Silenciosamente, como aqueles poetas do século XIX e XX que você tanto gostava e que, ao reconhecerem que a cultura burguesa estava já liquidada, preferiram se calar ao invés de se tornarem porta-vozes charlatães. Você queria continuar a lutar, eu sei. Mas, você sofreu demais por si e pelos outros. Sua vida toda foi uma vida de luta e, tenho certeza de que, como pagão que era, os deuses estão agora lhe recompensando por suas batalhas em nome dos trabalhadores desse mundo. Infelizmente, não conseguirei seguir o conselho deixado no prefácio de seu relatório sabático, em que você fala de sua obra e, ao final, agradece os militantes com quem atuou junto. Ali você termina assim: “Mas, basta! Chega de saudade, como diz João Gilberto, fiquemos com João girando na vitrola sem parar…”. Em algum lugar do mundo, João Gilberto continuará girando na vitrola sem parar. Mas, para aqueles que, como eu, tiveram o privilégio de um contato mais íntimo com você, a saudade… ah, a saudade… Essa não vai chegar ao fim. E, por favor, não me leve a mal terminar essa carta assim. Mas, ao modo uruguaio, um grande beijo pra você também, meu amigo…[4]     


[1] Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (FACH-UFMS). Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a orientação do professor Dr. Alcides Hector Rodriguez Benoit.

[2] Com esta carta, proponho-me a prestar uma homenagem de caráter muito pessoal. Para conhecer a trajetória militante e as experiências políticas de Hector Benoit, recomendo o texto de um de seus mais dedicados companheiros, Rafael Padial. Nota sobre a militância de Hector Benoit (1951 – 2002). Disponível em: <http://aterraeredonda.com.br/nota-sobre-a-militancia-de-hector-benoit-1951-2022/>. Acesso em: 06 de dezembro de 2022.

[3] Desta obra, podemos dizer que outras duas fazem parte: a primeira, Sócrates: o nascimento da razão negativa, publicada originalmente em 1996, é dela o esboço ainda não metodologicamente desenvolvido. A segunda, Platão e as temporalidades: a questão metodológica, de 2015, é justamente a apresentação da metodologia que é desenvolvida em seu conteúdo n’A Odisseia de Platão. As obras de Benoit sobre a tradição dialética, ele próprio dizia, procuravam e apresentavam uma unidade teórica que foi atingida por ele na instância da léxis.

[4] Na madrugada do último dia 05 de dezembro de 2022, Benoit nos deixou. A notícia chegou a mim através de um de seus discípulos mais leais, a quem Hector sempre destacou nesse sentido, Fernando Dillenburg (Benoit o chamava de Dillenburgo, com “o” ao final. Sempre me pareceu, e eu nunca perguntei isso a ele, que assim o fazia inspirado por certa tradução do sobrenome de Rosa Luksenburg, que também, nessa tradução, recebia o “o” ao final. Benoit, sabemos, tinha profunda admiração por Rosa Luxemburgo).