Na semana dos 80 anos do aniversário da morte de Trotsky, decidimos publicar uma série de textos que fazem parte da herança legada pela atuação do revolucionário marxista. Para abrir a série, escolhemos um texto assinado com o pseudônimo Crux, usado nas discussões com o SWP, a seção norte-americana da IV Internacional. Aqui, Trotsky explica, numa linguagem mais voltada aos trabalhadores já organizados no partido, o sistema de reivindicações transitórias, apresentado no Programa de Transição.
Alguns camaradas dizem que este esboço de programa não corresponde suficientemente ao estado de espírito e à disposição dos trabalhadores americanos; por isso devemos interrogar-nos sobre se esse programa deve ser adaptado à mentalidade dos trabalhadores, ou se deve antes corresponder à situação real, econômica e social do país. É a questão mais importante.
Sabemos que a consciência de cada classe social é determinada por condições objetivas, pelas forças produtivas, pelo estado econômico do país; mas essa determinação não se realiza de forma mecânica. A consciência, em geral, atrasa-se; atrasa-se em relação ao desenvolvimento econômico e esse atraso pode ser mais ou menos acentuado. Em tempos normais, quando o desenvolvimento é lento, quando as coisas progridem pouco a pouco, esse atraso não pode ter consequências catastróficas. Em grande medida, esse atraso significa que os trabalhadores não estão à altura das tarefas impostas pelas condições objetivas. Numa altura de crise, em contrapartida, esse atraso pode ser catastrófico. Na Europa, por exemplo, deu origem ao fascismo. O fascismo é o castigo em que incorrem os trabalhadores quando não conseguem tomar o poder.
Hoje, os Estados Unidos entram numa fase análoga e conhece perigos similares. A situação objetiva do país está, sob todos os pontos de vista, madura para a Revolução Socialista e para a passagem ao socialismo, mais madura que na Europa, mais madura talvez do que em qualquer outro país do mundo; mas o atraso político da classe operária americana é extremo. Isto significa que o perigo de uma catástrofe fascista é enorme. Esta análise é o ponto de partida de toda a nossa atividade. O programa deve exprimir as tarefas objetivas dos trabalhadores e não refletir o seu atraso político. O programa deve dar conta da sociedade tal como é, porque ele próprio é um instrumento para lutar contra essa mentalidade atrasada da classe operária e para vencê-la. É por isso que, no nosso programa, devemos procurar mostrar toda a amplitude da crise social que abala a sociedade capitalista, em cuja primeira linha figuram os Estados Unidos. Não podemos ser nós a fixar os prazos ou a modificar as circunstâncias que não dependem de nós. Não podemos garantir que as massas resolverão a crise, mas devemos reproduzir a situação tal como se apresenta: essa é a tarefa do programa.
Uma outra questão é saber como apresentar o programa aos trabalhadores. É uma questão de pedagogia e de vocabulário, de escolha de termos. A política, quanto a ela, deve orientar-se somente pela questão essencial, a do desenvolvimento das forças produtivas e do bloqueamento desse desenvolvimento pela forma capitalista de organização da propriedade e o seu resultado; o desemprego crescente, a maior das pragas sociais. As forças produtivas já não se podem desenvolver como antes. A ciência e a tecnologia desenvolvem-se, mas as forças materiais declinam. Isso significa que a humanidade se torna cada vez mais pobre, que o número de desempregados aumenta. A miséria das massas aprofunda-se, as dificuldades são cada vez maiores tanto para a burguesia como para os trabalhadores; a burguesia não tem outra solução senão o fascismo; a crise que se desenha obrigará a burguesia a abolir os vestígios da democracia. O proletariado americano corre o sério risco de pagar com 20 ou 30 anos de purgatório fascista a sua falta de organização, de vontade e de coragem. Será então à custa do cassetete de aço que a burguesia ensinará aos trabalhadores americanos o seu dever revolucionário. A América verá a experiência europeia reproduzir-se a uma escala gigantesca. Devemos ter plena consciência disso.
Isto é muito sério, camaradas. Trata-se do futuro que se apresenta aos trabalhadores americanos. Depois da vitória de Hitler, quando Trotsky redigiu a brochura “Para Onde Vai a França?”, os socialdemocratas franceses troçaram: “A França não é a Alemanha”. Mas antes da vitória de Hitler, ele tinha escrito numerosas brochuras para prevenir os trabalhadores alemães, e os socialdemocratas também tinham troçado: ‘A Alemanha não é a Itália”. Não fizeram caso delas. Hoje é a França que está cada vez mais próxima de um regime fascista. É a mesma coisa para os Estados Unidos. A América tem reservas de gordura, foram essas reservas do passado que permitiram a experiência Roosevelt, mas elas esgotam-se… A situação geral é a mesma em todo o lado, o perigo é o mesmo.
É verdade que a classe operária americana tem uma mentalidade pequeno-burguesa, que conhece mal a solidariedade revolucionária, que está habituada a um nível de vida elevado, mas a mentalidade da classe operária americana não corresponde às realidades dos nossos dias; reflete as recordações de um tempo que já passou.
Hoje, a situação é radicalmente diferente. Que pode fazer um partido revolucionário face a essa situação? Em primeiro lugar, compete-lhe dar uma imagem exata da situação e das tarefas históricas que dela decorrem, quer os trabalhadores estejam ou não prontos a assumir essas tarefas. As nossas tarefas não dependem do estado de espírito dos trabalhadores, consistem antes em desenvolver a sua consciência É isso que o programa deve formular e apresentar aos trabalhadores avançados.
Alguns dirão: “De acordo, esse programa é um programa científico, corresponde à situação real, mas os trabalhadores não o fazem seu, permanecerá estéril”. É possível. Mas isso significaria apenas que os trabalhadores seriam esmagados antes que a crise tivesse podido ser resolvida no sentido da Revolução Socialista. Se o operário americano não faz, a tempo, deste o seu programa, será obrigado a aceitar o programa do fascismo. Quando nos apresentamos perante a classe operária com o nosso programa, não podemos dar nenhuma garantia quanto à sua rejeição ou à sua aceitação por essa mesma classe operária. Não podemos tomar essa responsabilidade… só podemos tomar a responsabilidade no que diz respeito a nós próprios.
Devemos dizer a verdade aos trabalhadores, é assim que ganharemos os melhores elementos. Não sei se esses elementos avançados serão capazes de conduzir a classe operária ao poder; espero que o venham a ser, mas ninguém poderá garanti-lo.
Mas mesmo no pior dos casos, se a classe operária não mobilizar todas as suas forças, todos os seus recursos para a Revolução Socialista, se cair debaixo da bota fascista, os operários mais avançados poderão testemunhar: “Aquele partido tinha-nos prevenido: era o melhor”. Será a marca de uma grande tradição que continuará presente na classe operária.
É evidentemente a pior das hipóteses. Mas isso demonstra que todos os argumentos segundo os quais não podíamos apresentar um tal programa, por não corresponder à mentalidade das massas, são falsos argumentos, que só revelam o medo dos seus partidários perante a situação atual.
Claro que se fechasse os olhos, eu poderia reduzir um belo programa cor-de-rosa que toda a gente aceitaria. Mas esse programa não corresponderia à situação, e o que é próprio de um programa é corresponder em primeiro lugar à situação objetiva. Creio que este argumento elementar é um elemento definitivo.
A consciência de classe dos trabalhadores está atrasada em relação aos acontecimentos, mas a consciência de classe não é uma coisa feita dos mesmos materiais que as fábricas, as minas e os caminhos de ferro, mas de um material bem mais maleável; pode modificar-se
rapidamente sob os golpes da crise, sob o peso de milhões de desempregados.
Hoje o proletariado americano tira algumas vantagens do seu atraso político. Pode parecer paradoxal, mas é assim. Os trabalhadores europeus, por seu lado, conheceram uma longa tradição socialdemocrata, conheceram, conheceram a tradição do Komintern, e essas tradições são forças conservadoras. Mesmo após numerosas traições, os trabalhadores continuam fiéis às suas organizações, porque essas organizações acordaram-nos pela primeira vez, porque lhes deram uma cultura política. Isso torna-se uma desvantagem quando se trata de adotar uma nova orientação. Os trabalhadores americanos têm uma vantagem: na sua grande maioria não estiveram organizados, e só agora começam a agrupar-se nos sindicatos. Isso dá ao partido revolucionário possibilidade de os mobilizar para enfrentar conjuntamente os golpes da crise.
A que velocidade se produzirão esses acontecimentos? Ninguém sabe: pode-se simplesmente dar a orientação geral que ninguém contesta. É somente depois que se põe a questão da apresentação do programa aos trabalhadores: naturalmente é uma questão muito importante; devemos aplicar à política o que sabemos de pedagogia e psicologia de massas, para construir uma ponte de acesso ao espírito dos trabalhadores.
Só pela experiência poderemos aprender neste domínio. Durante algum tempo devemos esforçamo-nos por concentrar a atenção dos trabalhadores sobre um ponto preciso: a escala móvel dos salários e das horas de trabalho.
O empirismo dos trabalhadores americanos permitiu aos partidos políticos obter sucessos com uma ou duas ideias essenciais, como o imposto único, o bimetalismo, etc… Essas ideias alastraram-se entre as massas como um rastilho de pólvora: quando as massas constatam que uma panaceia não vale nada, precipitam-se para outra.
Nós podemos hoje apresentar um remédio honesto, que não é demagógico, que é parte integrante do nosso programa e que corresponde absolutamente à situação presente.
As estatísticas oficiais anunciaram-nos 13 a 14 milhões de desempregados; na realidade devemos contar com 16 a 20 milhões. Os jovens em particular estão à miséria.
O sr. Roosevelt põe hoje o acento tônico nas obras públicas. Mas nós queremos que todos tenham trabalho, tanto nas obras públicas como nas minas, nos caminhos de ferro etc… Queremos que todos possam viver decentemente, a um nível em todos os casos igual aos dos dias de hoje e exigimos do sr. Roosevelt e do seu “brain trust” que organizem o seu programa de obras públicas de maneira que toda a gente possa trabalhar com salários decentes. Isso é possível com a escala móvel de salários e das horas de trabalho. Por todo o lado, em todas as localidades, devemos refletir sobre a maneira de apresentar essas ideias. Depois devemos organizar uma campanha de agitação, de tal maneira que todos saibam o que é o programa do Socialist Workers Party. Penso que devemos concentrar a atenção dos trabalhadores nesse ponto. Evidentemente, não é o único, mas está integralmente adaptado à situação presente: os outros podem ser acrescentados à medida que essa ideia se apodera das massas. As burocracias se oporão. Se essa ideia se apoderar verdadeiramente das massas, as tendências fascistas se organizarão para responder. Então diremos que é necessário desenvolver os piquetes de autodefesa.
Penso que no início os trabalhadores farão sua esta reivindicação da escala móvel de salários e de horas de trabalho. Mas, no fundo, o que é esta reivindicação? Na realidade é a descrição do sistema de organização do trabalho na sociedade socialista. O número total de horas de trabalho a prestar dividida pelo número total de trabalhadores. Mas se apresentássemos de uma vez o sistema socialista, seriamos acusados de utopistas pelo americano médio, que nos dirá que são ideias importadas da Europa. Então apresentamos esse sistema como a solução da crise, que assegurará aos trabalhadores o seu direito e alimentarem-se, a viver em casas decentes em condições decentes: é o próprio programa socialista, mas na sua forma mais simples, mais próxima das massas.
Crux: Poder-se-ia imaginar essa campanha do seguinte modo: vocês começariam a agitação, por exemplo em Minneapolis. Ganhariam um ou dois sindicatos para este programa. Depois enviariam delegados a outras cidades, a diferentes sindicatos. Desde o momento em que o programa tenha saído do partido para penetrar nos sindicatos, a batalha estaria meio ganha. Enviariam, então, delegados a Nova Iorque, a Chicago, aos mesmos sindicatos. Uma vez o sucesso assegurado, convocariam um Congresso especial. Isso obrigaria os burocratas sindicais a tomar posição, a favor ou contra: o debate será então público e proporcionará ocasiões magníficas para a propaganda.
Crux: É mais fácil derrubar o capitalismo do que garantir efetivamente a escala móvel de salários e horas de trabalho no quadro do sistema capitalista. Nenhuma das nossas reivindicações será realizada nesse quadro, é por isso que lhes chamamos reivindicações transitórias: estabelecem uma ponte que nos permite atingir os trabalhadores, e uma verdadeira ponte para ir à Revolução Socialista. Toda a questão é saber como mobilizar as massas para o combate: a questão da divisão entre os trabalhadores e os
desempregados, por exemplo, coloca-se nesse quadro. Devemos encontrar a maneira de superar essa divisão. A ideia de uma classe à parte, a classe dos desempregados, dos novos párias, é uma ideia que faz parte da preparação ideológica para o fascismo. Se a classe operária não conseguir superar essa divisão, sobretudo a nível sindical, o seu destino está traçado.
Crux: É uma questão muito importante. Este programa não é a invenção de um homem. Ele decorre da longa experiência dos bolcheviques. Repito: este programa é a concretização da experiência coletiva dos revolucionários. É a aplicação dos velhos princípios à situação atual. É necessário não considerá-lo como definitivamente gravado no mármore, mas adaptá-lo à situação objetiva.
Os revolucionários consideram sempre as reformas e as conquistas como subprodutos da luta revolucionária. Se nos contentamos em reivindicar o que podemos obter, a classe dominante nos dará apenas um décimo, ou nada. Se reclamarmos mais e estivermos dispostos a impor as reivindicações os capitalistas se verão obrigados a conceder-nos o máximo. Quanto mais combativos e exigentes forem os trabalhadores, mais se pode exigir e obter. As nossas reivindicações não são slogans estéreis, são meios de pressão sobre a burguesia. No passado, durante o período áureo do capitalismo americano, os trabalhadores obtiveram regalias pelo simples fato de se terem lançado empiricamente na luta, com um espírito muito militante.
A situação atual é muito diferente.
Os capitalistas não têm aberta à sua frente uma era de prosperidade. Não têm nenhum medo das greves, dado o número de trabalhadores que estão à espera de emprego. É por isso que o programa deve tentar unir as duas partes da classe operária, os trabalhadores e os desempregados. É o que faz precisamente a escala móvel dos salários.