por Fernando Dillenburg, Rafael Padial e André Koutchin
Na madrugada entre o dia 4 e o dia 5 de dezembro deixou de filosofar um dos maiores filósofos brasileiros. Hector Benoit nos deixou de presente um Platão que contradiz aquele Platão que, durante milênios, as classes dominantes procuraram esconder. Hector nos mostrou um Platão por ele mesmo, isento de interpretações externas. Através do Hector pudemos conhecer um Platão extremamente perigoso para todos aqueles que defendem o status quo. O Platão a partir dele mesmo que Hector nos brindou com sua Odisseia[1] é um Platão revolucionário, muito diferente daquele Platão exposto pela tradição filosófica dominante, um Platão que, confundido com o seu velho amigo Sócrates, foi sempre considerado um idealista. O Platão que Benoit nos apresenta é aquele que, na voz de um personagem anônimo do diálogo As leis chamado simplesmente de “Ateniense”, defende uma sociedade na qual todos os bens viessem a ser comuns aos membros das comunidades. Trata-se de um Platão comunista. Outro personagem anônimo, o Estrangeiro de Eleia do diálogo Sofista, teria superado a lógica da não-contradição parmenidiana e dado vida à contradição, teria demonstrado que a contradição é algo imanente, interno, indissociável do Ser, da essência de cada fenômeno. Em outras palavras, o Estrangeiro teria demonstrado a existência do não-Ser no interior do Ser, fundando, assim a dialética propriamente dita.
E como Hector conseguiu revelar um Platão revolucionário ainda não descoberto? “Apenas lendo o que está escrito”, afirmava Hector, humildemente. Basta, dizia ele, partir da lexis, daquilo que o autor nos deixou, sem impor ao texto qualquer interpretação externa. Essa atitude, ensinava Hector, apesar de aparentemente muito simples, na verdade é bastante difícil. A tendência do leitor é enfatizar na obra a ser lida aquilo que o próprio leitor quer demonstrar. Devemos ser humildes frente à obra, sugeria Hector, procurar ouvir o que o autor pretende nos dizer através do modo pelo qual ele expôs as suas ideias.
Hector não nos deixou, assim, apenas o Platão original. Deixou-nos esse método de leitura de toda e qualquer obra filosófica, o método imanentista. Duas façanhas como essas já deviam bastar para uma vida.
Entretanto, munido de seu método, Hector desvelou para nós, com a simplicidade que lhe era característica, outra maneira, despercebida até então, de ler as obras de diversos autores clássicos.
Ao ler somente o que está escrito, Hector nos mostrou o caráter programático contido em O capital de Marx, um caminho a ser trilhado pela classe trabalhadora desde a sua situação cotidiana, totalmente enfeitiçada pelas mercadorias e pelo dinheiro, até sua constituição como classe revolucionária capaz de “expropriar os expropriadores”.
Fez o mesmo com a obra de Trotksy, especialmente o Programa de Transição. Mostrou como ali, desde a construção dos comitês de greve que dirigiam as ocupações de fábrica, estava contido o início de um processo de dualidade de poder, que poderia desembocar na dualidade de poder generalizada, com a construção dos sovietes e a expropriação dos capitalistas.
Hector mostrou também, contrariando muitas correntes marxistas, que o Brasil não era uma mera semicolônia, não era um mero país dependente do imperialismo estadunidense. Na contradição entre as enormes forças produtivas contidas no Brasil e as severas condições de trabalho do proletariado brasileiro, Hector percebia não um caráter supostamente atrasado, mas sua potencialidade como uma possível ponta de lança da revolução mundial.
Essa genialidade em perceber os fundamentos da realidade por trás das formas de manifestação aparentes e ilusórias trazia profunda angustia ao nosso querido camarada. “A barbárie está vencendo a passos largos! Seus sinais estão evidentes!” dizia ele, profundamente entristecido.
Essa angústia demonstrava o envolvimento íntimo do Hector com os sombrios destinos da humanidade, já anunciados. Quem teve o privilégio de conviver com o Hector percebe como cada palavra escrita por ele em sua vasta obra é expressão de um engajamento na luta pela emancipação da classe trabalhadora, desde os escravos da Grécia antiga até o proletariado moderno. Como toda grande obra, a obra do Hector é indissociável das suas opções de vida. E Hector recusou a opção por uma vida cômoda de intelectual que vive apenas de seus vínculos com a Universidade burguesa. Antes de ingressar no seu primeiro emprego na chamada “Academia”, na USP de Ribeirão Preto, Hector já era um militante revolucionário. O vínculo com a classe operária era o motivo que dava sentido a sua existência. Contraditoriamente, se esse vínculo existencial era o aquilo que o mantinha vivo, ao mesmo tempo, era o que o destruía. Sem esse vínculo não haveria razão para viver. Mas era através do envolvimento com a organização da classe trabalhadora que Hector percebia o profundo fosso existente entre a necessidade urgente da revolução socialista, por um lado, e as frágeis condições subjetivas para realiza-la. A destruição das forças produtivas da humanidade numa velocidade jamais vista destruía, igualmente, nosso querido camarada. Com uma fidelidade à luta da classe trabalhadora inspirada na absoluta abdicação da vida pessoal levada a cabo por Sócrates, Platão, Marx, Lenin e Trotsky, dentre tantos outros, Hector dedicou igualmente a sua vida à revolução. E isso o consumia, noite e dia. Para nós, seres normais, é difícil compreender em toda a sua complexidade aquilo que se passa na mente de pessoais geniais como o Hector. Todos aqueles que, como eu, tiveram o privilégio de fazer parte das relações mais íntimas desse comunista apaixonado pode lembrar os momentos nos quais fomos surpreendidos com alguma nova perspectiva por ele lançada.
Hector costumava dizer que se lêssemos as obras de Platão, de Marx, de Lenin e de Trotsky a partir do que está ali escrito, é impossível não perceber nelas seu caráter revolucionário. O mesmo podemos dizer da obra do Hector. Se a lermos a partir dela mesma, sem interpretações externas, encontraremos ali o pulsar do sangue de um combatente. Veremos ali a angústia sofrida por alguém que percebe todas as potencialidades da humanidade: a possibilidade, dada pelo elevado grau de desenvolvimento tecnológico, de cada um precisar trabalhar muito pouco, desde que todos tenham o direito e o dever de trabalhar; a possibilidade, portanto, de cada um ter tempo livre suficiente para desenvolver plenamente suas habilidades. A angústia do Hector, compartilhada por nós, era e é a de ver as potencialidades da humanidade bloqueadas há mais de um século pela apropriação privada da physis.
Hector, o corpo que você tomou emprestado da physis nessa breve passagem por aqui, esse corpo virou cinzas. Fertilizará outro ente da physis, que delas se alimentará. Mas o mais importante que você deixou aqui é a pulsão do exemplo de um combatente, pulsão essa expressa na tua obra, que continuará inspirando seus amigos mais íntimos, assim como os seus inúmeros seguidores.
Hector, presente!!
[1] A Odisseia de Platão: as aventuras e desventuras da dialética. São Paulo: Annablume, 2017.