O texto que ora publicamos, do professor Dr. Hector Benoit, é uma análise de fundo sobre a atual conjuntura brasileira. A análise foi produzida em 2006 e publicada pela primeira vez no primeiro número da Revista Maisvalia, em meados de 2007. Apesar de ter já 10 anos – e ter sido elaborada a partir do escândalo do “mensalão” – a análise é clarividente e plenamente atual. É com base nela que o MNN, ainda hoje, formula suas políticas de atuação na atual conjuntura, de “petrolão” e crise do governo petista. Ao final deste texto contamos ainda com um “apêndice” produzido pelo professor Benoit especialmente para esta publicação. Para baixar o texto em PDF publicado na Revista Maisvalia 1, clique aqui [Conselho Editorial do site do MNN].
Vivemos hoje o fim de um longo ciclo histórico no Brasil, o fim do ciclo de uma certa forma específica de dominação burguesa no Brasil, aquela forma que se constituiu com a queda da ditadura militar há mais de vinte anos atrás. A crise atual, portanto, não é superficial, não é conjuntural, mas sim, estrutural. Isto significa dizer que a atual crise expressa um profundo esgotamento da burguesia brasileira como classe dominante, tanto nos setores diretamente empresariais, como nos seus partidos e nos seus ideólogos. O processo transitório para o socialismo, hoje, como em 1978-80, é novamente possível. O caminho está novamente aberto. O mar se abre novamente para a passagem das massas. As forças que se reivindicam como direção do proletariado serão capazes, agora, de superar a crise da direção revolucionária? Estas forças serão capazes, desta vez, de fazer as massas atravessarem o percurso que se abre?
Com a retirada dos militares, após vinte anos de ditadura, no início da década de 80, abria-se este ciclo de dominação burguesa no Brasil, o ciclo que até hoje vivemos. Setores da burguesia mais conservadora e mais corrupta do país, aquela situada no Norte e no Nordeste, passaram a ter hegemonia no Estado brasileiro. Ex-aliados dos militares, políticos como José Sarney, Collor de Melo, Antônio Carlos Magalhães, Inocêncio de Oliveira e outros, passaram a ser os “sócios” majoritários na administração do Estado brasileiro. Tratava-se já de uma espécie de “burguesia compradora” que, renunciando a qualquer projeto próprio, servia como intermediária nacional ao grande capital internacional, em troca de uma fatia da mais-valia que passava pelo Estado brasileiro [1].
Depois do impeachment de Collor de Melo e do curto mandato tampão do inexpressivo Itamar Franco, veio o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso apoiado em amplos setores da burguesia industrial do sudeste do país e num amplo setor da intelectualidade das principais universidades brasileiras (tais como USP, UNICAMP e PUC-RJ) [2]·. Finalmente a burguesia brasileira teria se organizado e elaborado um projeto para o país? Era o que diziam FHC e os seus aliados. Diziam eles pretender romper com esse “modelo arcaico” de utilização do Estado. Falavam em “modernizar” o Estado brasileiro e até em realizar uma espécie de “revolução burguesa” no Brasil, como chegou a escrever o sociólogo Francisco Weffort[3]. Em artigo da época, Weffort justificava a sua traição ao PT, anunciando que FHC, com os seus quadros saídos das principais universidades brasileiras, comandaria transformações estruturais no país, inseriria o Brasil no processo da “globalização”, superaria as estruturas arcaicas e garantiria um espaço honroso para o país no cenário internacional. Ora, durante todo o primeiro mandato de FHC, nada do que se prometera foi realizado, permanecendo o presidente como refém do PFL com o qual se aliara para obter maioria na Câmara. Antônio Carlos Magalhães, em certa época, chegou a controlar o senado e a câmara federal conjuntamente[4]. Seria algo temporário? A agenda “modernizadora” e “revolucionária” seria cumprida no segundo mandato? Grande ilusão. Na metade do segundo mandato, quando FHC conseguiu finalmente reduzir o poder da velha oligarquia do Norte e Nordeste, libertando-se de Magalhães e reduzindo o poder de Sarney, a crise econômica internacional se encarregou de bloquear qualquer cumprimento das metas “modernizadoras” e o governo terminou, sem nada realizar, mais prisioneiro ainda do capital internacional e do FMI. Após dois mandatos, nada restou, assim, da prometida “revolução burguesa”, nada foi realizado da “modernização do país” e de todos os prometidos sonhos reformistas. Todas as promessas de FHC e de Weffort se mostraram como mais uma versão fracassada das utopias sociológicas que procuram, inutilmente, refutar o marxismo. Ao final de oito anos de governo, a burguesia industrial do sudeste, FHC e os quadros sociológicos do PSDB, com todo o planejamento do CEBRAP e das universidades, mostraram-se quase tão incapazes como a conservadora oligarquia nordestina.
Portanto, a Teoria da Revolução Permanente, mais uma vez, se confirmou amplamente: na época de agonia do capitalismo, a burguesia e seus intelectuais assalariados não são capazes de realizar mais qualquer tarefa progressista ou modernizadora. FHC, o sociólogo que elaborou no CEPAL a célebre teoria da dependência, apesar do apoio do CEBRAP, apesar dos teóricos burgueses do PSDB, terminou a sua era de oito anos de poder, melancolicamente, como a paródia culta dos medíocres Menen e Fujimori. Nada realizou e viu o seu candidato, o também intelectual José Serra, ex-professor da UNICAMP, sendo derrotado pelo candidato sem diploma, o metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva. O PT finalmente chegava ao poder[5].
Devemos, no entanto, meditar sobre esses anos que vão da retirada dos militares à chegada de Lula ao poder. Após a retirada dos militares, apesar de desaparecer qualquer amplo processo de repressão, todos esses governos incompetentes e sem um real projeto histórico (Sarney, Collor, Itamar Franco e, finalmente, o sociólogo FHC), apesar dos sucessivos fracassos, todos esses governos não sofreram qualquer oposição mais contestadora, qualquer movimentação de massas mais perigosa e conseqüente[6]. Todos esses governos, apesar de pequenas diferenças, repetiram a mesma forma de dominação burguesa: usaram o poder de Estado somente para aprofundar a miséria e o desemprego, para multiplicar a dívida pública (interna e externa), para explorar os trabalhadores com salários sempre em queda, para manter a submissão do país em relação ao capital internacional. Porém, como foi possível ocorrer todo esse processo de exploração sempre crescente, por tantos anos, sem maior repressão? Por que não surgiu qualquer movimento revolucionário de massas? Como tal passividade foi possível?
Sustentamos que isso só foi possível graças ao PT e à CUT (Central Única dos Trabalhadores) que bloquearam, desde os anos 80, o desenvolvimento de um partido revolucionário no Brasil[7]. Mas, que forças sociais apoiaram o PT e a CUT em tal ação contra-revolucionária? Em primeiro lugar, alguns setores da própria ditadura militar que viram na construção de um partido dos trabalhadores uma perspectiva de barrar o retorno do chamado “trabalhismo” de Brizola e do PTB (originário no getulismo), nacionalista e com certo caráter antiimperialista. Alguns militares, como Golbery do Couto e Silva, o cérebro da ditadura militar, criador do Serviço Nacional de Informações, muito cedo, viram em homens como Lula e sindicalistas do seu grupo, uma via eficaz de garantir a estabilidade burguesa após a retirada da ditadura militar. Esses setores perceberam desde a metade da década de 70, que a saída dos militares do poder devia ser acompanhada da criação de um novo movimento sindical “independente”, ou seja, não-nacionalista e, principalmente, não-comunista.
Esse projeto existente em setores militares se juntou ao projeto de toda uma intelectualidade universitária reformista, desde o início, integrada ao PT, e que o apoiou e o legitimou ideologicamente. Nesse sentido, é importante lembrar os intelectuais reunidos no CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, dirigido inicialmente pelos sociólogos Francisco Weffort e José Álvaro Moisés)[8].
Porém, sem dúvida, tiveram o papel mais importante e mais traidor, na construção e consolidação do PT, os diversos agrupamentos ditos “trotsquistas” daquela época, que viram no PT um caminho intermediário para a construção de um partido revolucionário. Assim, com a colaboração dos chamados “trotsquistas”, desde os anos 80, com sucesso, PT e CUT ajudaram a abortar ou, pelo menos a retardar, as diversas tentativas da criação de um partido revolucionário no Brasil. Sobre este último ponto, cabe ressaltar a vacilação dos diversos agrupamentos de inspiração trotsquista: permaneceram eles, anos e anos, oscilando politicamente e com ilusões a respeito do PT. Lembremos: Convergência Socialista (seguidora de Nahuel Moreno, hoje, PSTU), Organização Socialista Internacionalista (seguidora de Pierre Lambert, hoje conhecida como “O Trabalho”), Democracia Socialista (seguidora de Pablo e Mandel), Causa Operária (seguidora de Altamira), todos eles, de uma forma de ou de outra não foram capazes de enfrentar o PT e elaborar um projeto da revolução brasileira, latino-americana e internacionalista. Todos eles recuaram nas tarefas fundamentais de construir a IV Internacional[9].
Portanto, durante todos esses anos, após a retirada da ditadura militar, de Sarney a FHC, o grande capital internacional utilizou o Estado brasileiro como instrumento da acumulação capitalista de forma devastadora, conduzindo a população a níveis de miséria similares àqueles dos países mais pobres da América Latina. A imensa dívida pública brasileira é expressão máxima desse processo de utilização do Estado. Como dizia Marx, a dívida pública é a única parte da riqueza nacional que é socializada, isto é, paga por toda a população e foi isto que ocorreu nestes últimos anos no Brasil. Porém, isso só foi possível graças ao PT e à CUT: estas organizações de massa apoiadas pelos intelectuais reformistas e, sobretudo, pelos agrupamentos ditos “trotsquistas”, desviaram todas as tentativas de oposição para ilusões reformistas, sindicais, parlamentares e eleitorais. Seguindo esse caminho, o PT e a CUT e os ditos “trotsquistas” tiveram grande sucesso: fortaleceram-se nas universidades, nos sindicatos, nos parlamentos, elegeram cada vez mais vereadores, prefeitos, deputados, governadores, até que, finalmente, em 2002, venceram as eleições presidenciais e chegaram ao governo federal.
Mas, por que e para quê chegaram ao governo federal? Certamente, não para iniciar uma transição socialista: o socialismo já fora esquecido há alguns anos, se é que algum dia ele foi realmente parte do projeto da maioria petista[10]. Os petistas, então, chegaram ao poder para realizar as transformações burguesas que os outros não foram capazes de fazer? Pensavam que era possível fazer a revolução brasileira, ainda que burguesa? Tinham algum projeto desenvolvimentista como a geração burguesa dos anos 60 (Darcy Ribeiro, Celso Furtado e outros)? Sustentamos que nem sequer esse projeto, ou mesmo aquele mais modesto de FHC (garantir uma fatia ao Brasil no Mercado Mundial), foi proposto ou projetado seriamente pela maioria petista. Fora a retórica vazia, a maioria petista chegou ao governo federal apenas para continuar e preservar a mesma forma específica de dominação burguesa destas duas últimas décadas. Tarefa esta, em 2003, já difícil para qualquer coligação burguesa tradicional. Somente o PT e a CUT podiam cumprir a continuidade dessa forma de dominação. Somente um governo semi-bonapartista, com características aparentes de frente-popular, podia permitir a continuidade dessa política econômica devastadora (continuar a pagar a dívida externa, continuar a praticar os juros mais altos do mundo, manter um superávit primário por volta de 5% do Produto Interno Bruto, cortando, assim, sempre, mais e mais, os gastos com educação, saúde e políticas sociais, assim como realizando as chamadas “reformas do custo Brasil”, reformas previdenciária e trabalhista). Para isso veio o governo Lula. O PT, graças a sua ampla base social e sindical, era a única opção que permitiria a continuidade desse ciclo da dominação burguesa no Brasil. O grande capital financeiro sabia disso e, por isso mesmo, ainda que indiretamente, considerava o PT como o seu grande aliado, talvez até mais confiável do que o próprio PSDB de FHC[11].
Após dois anos e meio, no entanto, se manifestaram novas contradições. O PT e a CUT mostraram-se como poderosa casta parasitária dentro do Estado, uma casta muito maior e mais custosa (pela sua própria extensão social) do que qualquer oligarquia que nesses anos intermediava o poder do grande capital no Estado brasileiro. Este é o ponto de implosão da atual crise. O setor majoritário do PT e da CUT passou a engolir uma fatia imensa da mais-valia extraída dos trabalhadores. A burocracia petista e cutista é numericamente muito maior do que a oligarquia do Norte e Nordeste, assim como, muito mais extensa do que a tecno-burocracia do PSDB e de qualquer grupo partidário burguês, provocando maiores contradições na luta interburguesa pelo controle do Estado.
A burocracia petista-cutista, como enorme casta parasitária, embasando um governo semi-bonapartista, elevou os gastos do Estado e os custos para garantir o poder de Lula e a estabilidade do grande capital. Essa burocracia petista se elevou quase como uma nova “classe”, com projetos e interesses próprios. Hoje se sabe que boa parte da cúpula petista dobrou ou triplicou em dois anos o seu patrimônio pessoal declarado em imposto de renda (é o caso de João Paulo Cunha, Sílvio Pereira, Delúbio, Gushiken, Sereno e outros…). Para realizar seus objetivos de perpetuar-se no poder e realizar os seus desejos privados de apropriação, ainda por cima, essa cúpula reativou parte da antiga oligarquia política (Sarney, Renan, Jefferson, e até mesmo membros da ditadura militar, como Delfim Neto e burocratas do Partido Comunista do Brasil, PCdoB, que até há pouco, paradoxalmente, chegou a presidir a Câmara dos Deputados). Esse governo semi-bonapartista de Lula, para se equilibrar no poder, chegou a aliar-se a certos setores dos mais corruptos dos partidos burgueses da direita (como PP, PL, PTB e hoje até o PRONA, partido de programa fascista). Da mesma maneira, na instância sindical, a CUT hoje se alia à Força Sindical e a outros setores totalmente corruptos dos sindicatos brasileiros. Assim, o equilíbrio frágil do governo semi-bonapartista de Lula tem um custo altíssimo, pois precisa pagar caro pelo apoio das bases divergentes e corporativas que o sustentam. A luta pela utilização do Estado brasileiro, para fins exclusivamente privados, virou uma luta de vida ou morte entre setores da própria burguesia e das diversas burocracias que sustentam o governo (PMDB, PT, CUT, Força Sindical, PDT, MST, UNE, PSB, PC do B, PRONA, Evangélicos, etc…). A corrupção que se manifestara em Santo André, a nível municipal, apareceu desde agosto de 2005 a nível nacional. Esta corrupção, hoje se sabe, teria ocorrido em muitas prefeituras do PT desde os fins dos anos 80, apareceu de forma escancarada com as denúncias do mensalão, e parece tender a crescer no segundo mandato. Basta ver o escândalo em torno de Renan Calheiros e de diversas construtoras que estariam por trás dos diversos projetos do PAC, Plano de Aceleração do Crescimento.
Assim, os escândalos que se sucederam e continuam se sucedendo, um atrás do outro, foram e são apenas manifestações de um processo estrutural: primeiro foi Waldomiro Diniz (assessor de José Dirceu, ministro da Casa Civil) envolvido em cobrança de propinas com controladores de jogos; depois apareceram suspeitas de que os cartões de crédito de uso presidencial haviam multiplicado espetacularmente os seus gastos; logo começaram a aparecer licitações fraudulentas; depois manipulações das aplicações nos fundos de pensão de empresas estatais; a seguir, ocorreu a vitória na eleição para presidente da Câmara Federal de Deputados do inexpressivo Severino Cavalcante, deputado corrupto e da extrema direita, hoje temos o caso Renan e o envolvimento fraudulento de construtoras e empresas nos diversos projetos do PAC. Todos esses e outros fatos similares foram se sucedendo e continuam se sucedendo, formando elos de uma mesma cadeia que explodiu com as denúncias do deputado R. Jefferson e que continuam com o caso Renan Calheiros, que parece saber demais para ser derrubado da presidência do Senado impunemente. Tudo isso era e é a manifestação de um governo semi-bonapartista frágil que se equilibra entre os diversos setores do capital e da burocracia através de concessões e corrupção.
Ora, todos esses fenômenos são elos de uma única cadeia. Todos esses fatos juntos expressam uma forma privada extrema de utilização do Estado brasileiro para fins do grande capital. Empresários negociam pelo mundo (África, China, Europa, EUA, Israel) junto com o presidente Lula, acompanhados pelos agentes internos da burocracia estatal. Todos fazem grandes negócios à custa da população brasileira. No balcão de negócios que virou o Estado brasileiro, a Sadia, empresa exportadora de alimentos do ex-ministro Furlan, vem obtendo lucros fantásticos juntamente com o agro-negócio exportador do ex-ministro Rodrigues, detentor da pasta da agricultura. Vide os recentes planos internacionais envolvendo o biocombustível. Os bancos, graças aos juros altíssimos, multiplicam os seus lucros em até 200%. Realizou-se e se realiza, assim, uma espécie de acumulação originária em que certos grupos capitalistas privilegiados utilizam o Estado de forma acintosa e este se transformou no motor direto, sem mediações, da acumulação privada de poucos, à custa de toda a população brasileira[12].
No primeiro mandato de Lula, apesar dos sucessivos escândalos na utilização da máquina estatal como método de acumulação privada para os poucos escolhidos, porém, a oposição burguesa não defendeu o impeachment. E por quê? Porque temia um possível avanço de massas, porque temia uma guerra civil e porque sabia que sem Lula, sem o PT e sem a CUT, terminaria uma forma específica de dominação burguesa que dura já há mais de vinte anos. Existiria outra forma possível de dominação burguesa no Brasil? A burguesia não a possui e não é capaz de, em pouco tempo, a elaborar. Por outro lado, os setores “socialistas” permaneceram também paralisados, permaneceram em propostas indeterminadas. Também eles não levantaram o impeachment e, sobretudo, mostraram-se incapazes de qualquer elaboração transitória. Os piores exemplos vieram do MST, da Democracia Socialista e de outros agrupamentos que nem sequer romperam com o governo. No encontro nacional da chamada “Assembléia Popular”, Stédile, líder máximo do MST, no auge da crise, ainda defendeu a candidatura Lula para 2006. Isso já mostrava bem o que se podia esperar da linha reformista do MST e da sua “via campesina” para o socialismo. Não ficaram atrás, porém, as propostas confusas e indeterminadas dos diversos agrupamentos ditos “trotsquistas”: as propostas vagas como “Plebiscito”, “Constituinte”, “Fora Todos” e “Greve Geral” eram exemplos da incapacidade de formular um processo transitório. No auge da crise, nenhum setor de esquerda propunha claramente a derrubada do governo Lula, como ocorreu, por exemplo, em 2001 com De La Rúa na Argentina. Os diversos setores de “esquerda” mostraram-se totalmente paralisados diante do governo cambaleante do semi-bonaparte. Diante da passividade da direita e da esquerda, Lula se recuperou e foi reeleito! Mas, a crise foi somente soterrada, a crise continua e já renasceu de forma mais acintosa com o caso Renan Calheiros.
Diante de tudo isso, é preciso ocupar o espaço que se abriu para as massas trabalhadoras e para a juventude com o desgaste da CUT, do MST, da UNE e de todos os que apóiam o PT e o governo traidor de Lula. Daí a necessidade de uma nova organização que possa influenciar os principais setores da vanguarda do proletariado e da juventude, rompendo com todas as direções traidoras. Desde 2005, diante do caráter extremamente favorável da conjuntura, é novamente possível construir uma nova direção para o movimento de massas no Brasil.
Ainda que Lula tenha sobrevivido ao auge da crise em 2005/2006, ainda que tenha sobrevivido a este processo de denúncias, a crise da dominação burguesa no Brasil continua. A crise não foi superada, a crise continua, foi provisoriamente submersa, mas, já ressurgiu com o caso Renan e com a paralisia do PAC. Por outro lado, com esse profundo desgaste inquestionável do PT e da CUT, assim como dos diversos grupos centristas (PSTU, PSOL, UNE e outros), seria ainda possível girar para trás a história? Seria possível, como se nada tivesse acontecido, manter de forma equilibrada o governo semi-bonapartista de Lula? Após o governo semi-bonapartista de Lula o que pode garantir a estabilidade burguesa?
18. Falência de todos os partidos desde o PSDB, PSOL ao PSTU
Poderá ocupar esse papel de bloqueio de massas algum novo partido pequeno-burguês, tal como o Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL), dissidência do PT? Não acreditamos, e o seu resultado pífio nas eleições mostrou isso. Suas bases sindicais são muito fracas, quase todas concentradas no funcionalismo público, ao contrário do PT que surgiu em 1980 no movimento metalúrgico e a partir de grandes greves operárias. Não devemos afastar o papel de bloqueio que pode ocupar o próprio PSTU, que parece cada vez mais burocratizado e mostrando ser incapaz de qualquer movimento que rompa a sua rotina sindical. No entanto, ele é muito fraco para ser ele próprio um grande bloqueio de massas. Se não podemos ter qualquer esperança na sua direção, por outro lado, é possível que amplos setores desse partido rompam com as suas posições conservadoras e venham para uma nova organização. Da mesma forma analisamos as posições de diversos agrupamentos menores como a Estratégia, Causa Operária, POR. Todos esses setores ditos “trosquistas” nada podem apresentar e não devemos ter qualquer esperança nessas organizações neo-pablistas[13].
Passados vinte e sete anos, sobre o cadáver do PT e da CUT, assim como de todos esses traidores do “trotsquismo”, um ciclo histórico da dominação burguesa parece assim terminar. O governo Lula já avança da democracia burguesa para formas cada vez mais bonapartistas. Reprime trabalhadores e estudantes com violência somente vista na época da ditadura militar. O seu equilíbrio é frágil. As massas ainda não iniciaram um grande combate, mas ele virá e já se anuncia nas diversas mobilizações estudantis, nas sucessivas greves e ocupações de fábricas. Um enorme espaço se abre, uma nova grande onda se ergue: chegou a hora de tomar as ruas como já começou a ocorrer em 2005 e 2006. Os primeiros grandes protestos começaram a surgir, desde aquele 17 de agosto em Brasília de 2005. Novos protestos de massa vieram com as diversas mobilizações estudantis que tomaram reitorias e realizaram grandes passeatas como não ocorriam desde fins dos anos 70. Chegou a hora da juventude, dos trabalhadores, das fábricas e dos desempregados, dizerem não ao governo bonapartista de Lula. Portanto, chegou a hora de romper, definitivamente, este ciclo da dominação burguesa do Estado brasileiro, desequilibrar o semi-bonaparte, romper com toda a política conciliadora dos centristas e de todos os traidores. Chegou a hora de defender as liberdades democráticas, os direitos trabalhistas, as frentes públicas de trabalho e a escala móvel de horas de trabalho. Chegou a hora de organizar de forma direta e independente a juventude, os trabalhadores empregados e desempregados em formas duais de poder. Chegou a hora de denunciar e ultrapassar as direções traidoras. Chegou a hora de lançar amplamente o programa transitório para o socialismo.
Chegou a hora de começar a construir um novo partido revolucionário no Brasil. Chegou a hora de lançar e apresentar publicamente um partido que defenda os princípios da teoria marxista clássica e do internacionalismo. Chegou a hora da Negação da Negação, a hora de construir uma nova direção.
Apêndice de 2016:
A tentativa de construção de um novo partido continua a tarefa do presente, algo que infelizmente não foi cumprido, porém, os dois governos Dilma somente confirmaram e aprofundaram as análises desse documento que já possui dez anos. Se ainda estamos longe da construção de um novo partido, sem dúvida, no entanto, as manifestações recentes nas assembleias de diversas empresas metalúrgicas, como aquelas da Embraer, da GM e da Volkswagen, sobretudo nesta última, quando os operários vaiaram os dirigentes sindicais que procuraram defender Dilma e Lula, mostram que a vanguarda da classe operária definitivamente rompeu com a direção cutista, com o PT, com Dilma e com Lula.
Paradoxalmente, comentaram os burocratas de São Bernardo, depois de serem vaiados na Volkswagen, que os operários dessa fábrica tinham virado “coxinhas”! Os operários, segundo eles, eram também “coxinhas”, pequeno-burgueses, que agora se voltavam contra aqueles que os favoreceram durante todos estes anos. Na verdade, a história é outra, estes que agora vaiam os burocratas traidores, muitos são os que ainda viveram todos esses anos desde as greves de 78, 79 e 80 e não esqueceram as falcatruas, as sacanagens e o enriquecimento desses burocratas. Outros que vaiaram os burocratas são os filhos daqueles, operários filhos de operários que aprenderam com os pais os fatos lamentáveis que ocorreram nestes últimos 35 anos de traições e sabem muito bem que é a hora de recomeçar, sabem que é a hora da vanguarda da classe operária brasileira entrar em movimento, sabem que somente ela pode transformar este país e recomeçar um processo de luta que possa trazer novamente esperança e um futuro grandioso para o Brasil e, talvez, para toda a América Latina.
O repúdio da classe operária:
Em São Bernardo ocorreu manifestação nesta segunda-feira, dia 04/04/2016. Ao invés de ir às fabricas para falar à classe operária, neste dia 04, à noite, sem grande divulgação, Lula, com o prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho, com Wagner Freitas (presidente da CUT), com Gilmar Mauro e com claque arrebanhada que não passava de um pouco mais de 1000 pessoas, realizou um minicomício organizado na frente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo!
Sem conseguir enganar mais a classe operária, Lula nem sequer tem coragem de enfrentar a porta de uma grande fábrica metalúrgica de São Bernardo. Como estamos distantes da gigantesca massa operária que em 78, 79 e 80 lotava o Estádio da Vila Euclides! Os metalúrgicos de São Bernardo, não membros da claque petista, agora são chamados de “coxinhas”! Quem de fato virou “coxinha? Talvez seja essa a pergunta que soa na vanguarda da classe operária brasileira e em grande parte do Brasil, que sofre os efeitos da maior crise econômica vivida pelo país, os efeitos do desemprego em massa, os efeitos devastadores da inflação, os efeitos devastadores da redução média dos salários já miseráveis. Mais uma vez, Lula falou dos “coxinhas” . Os próprios presentes não estariam se perguntando: quem sã o os “coxinhas”? Pensamos que não são os operários da Volkswagen!
Hector Benoit,
São Paulo, 04 de Abril de 2016.
Notas:
[1] Usamos o termo “burguesia compradora” no sentido dado a essa expressão pela III Internacional: ou seja, a “burguesia compradora” é composta por setores nacionais corruptos que atuam como intermediários do grande capital internacional.
[2] Nesse sentido, lembremos o apoio do CEBRAP, Centro Brasileiro de Planejamento (centro de estudos que reúne intelectuais de todas as Ciências Humanas, vinculado a Fernando Henrique Cardoso).
[3] F. Weffort, sociólogo crítico do leninismo, teórico do “socialismo democrático”, foi fundador do PT e seu secretário-geral por alguns anos. Quando FHC venceu as eleições presidenciais, como se sabe, abandonou o PT e assumiu cargo de ministro da cultura do novo governo.
[4] Antônio Carlos Magalhães era o presidente do Senado e o seu filho, Luís Eduardo, era o presidente da Câmara Federal.
[5] Quanto à questão da teoria da Revolução Permanente, cabe lembrar encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, ocorrido em meados da década de 70. Fernando Henrique, nesse encontro da SBPC fez conferência na PUC-SP, respondendo diretamente a Florestan Fernandes. Este último anunciara a revolução socialista brasileira como única alternativa, sustentando a impotência da burguesia brasileira para qualquer tarefa progressista. FHC, no dia seguinte, com o auditório lotado, expunha o seu projeto de maneira clara, o mesmo projeto que procuraria realizar, anos depois, como presidente: a revolução brasileira pode ser feita, dizia ele, porém, sem a tomada do palácio de inverno de 1917, ou seja, como ele chegou a dizer, à maneira da Suécia, ou de muitos outros países europeus que teriam chegado à modernidade sem passar pela via soviética. Ora, o fracasso total dos seus dois governos mostrou a falência definitiva desse projeto. Se FHC nada conseguiu realizar, o que se pode esperar de qualquer outro governo que se recuse a romper com a burguesia e com o capital internacional?
[6] A derrubada de Collor, apesar de ser acompanhada por certa movimentação de massas, permaneceu sempre como um movimento democrático sob hegemonia total da burguesia.
[7] Lembremos que esta central sindical foi fundada quase conjuntamente ao PT, sempre dominada por sindicalistas vinculados ao núcleo metalúrgico fiel a Lula, sendo quase uma extensão sindical do PT.
[8] O CEDEC era uma versão petista do CEBRAP (o centro de FHC). Também no CEDEC se reuniam os quadros das chamadas “Ciências Humanas” brasileiras: sociólogos, antropólogos, economistas, historiadores (como Marco Aurélio Garcia) e uns poucos filósofos (como Marilena Chauí). Todos tinham algo em comum: eram teóricos pequeno-burgueses que, embasados no saber “científico” das “ciências humanas”, consideravam o leninismo como algo definitivamente superado. Na época, teorizava Marilena Chauí que “a riqueza do programa do PT era justamente a sua indeterminação”. Ali se desenvolveu a ideologia democratista do petismo: socialismo convivendo com formas de mercado, crítica a qualquer centralismo, o mito da cidadania, etc…
[9] Observe-se que os morenistas, durante anos, sustentaram o PT, até a sua expulsão, somente fundando o PSTU em 1994. O grupo da corrente francesa dirigida por Pierre Lambert, a OSI, hoje insignificante, continua no PT, sob a designação “O Trabalho”. Desta organização saíram boa parte dos principais quadros do PT e do governo Lula: o ex-ministro Gushiken, o ex-ministro Palocci (da Economia), Glauco Arbix (ex-presidente do IPEA) e muitos outros quadros médios. Todos esses militantes abandonaram o trotsquismo, evidentemente, há muito tempo. A Democracia Socialista, como se sabe, ainda permanece no PT e foi representada no ministério Lula pelo ministro da Reforma Agrária, Miguel Rosseto. Hoje, significativamente, a DS ocupa o cargo da secretaria geral do PT, com Raul Pont. Já a Causa Operária, hoje Partido da Causa Operária, seguidora de Altamira [são dados de 2006, conselho editorial do site MNN], é uma espécie de seita nacional-trotsquista. Deste grupo saíram outras pequenas seitas nacionais-trosquistas, como a LBI.
[10] E Lula, logo após a vitória eleitoral, chegou a confessar: “nunca fui de esquerda”. Quanto à retórica esquerdista de José Dirceu, de Genoíno, Greenghald e outros quadros do campo majoritário do partido, há muito tempo já servia apenas para encobrir a defesa de interesses privados. Quanto aos ditos “trotsquistas”, apesar de uma retórica oposicionista, em geral compactuavam e conciliavam na prática com a maioria lulista do partido e da CUT.
[11] Lembremos que uma das primeiras medidas de Lula foi nomear como presidente do Banco Central a Henrique Meireles (ex-membro da diretoria internacional do Banco de Boston e filiado ao PSDB, inclusive eleito deputado por esse partido).
[12] A diretoria do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) aprovou, em outubro de 2005, financiamento ao grupo Sadia de R$ 974 milhões. O financiamento é o maior já concedido pelo banco para uma empresa do setor de alimentos, segundo o BNDES. Como seria evidentemente imoral e ilegal emprestar tal quantia de banco público a empresa de um ministro do governo, a família do então ministro Furlan se retirou (ao menos, no papel) da diretoria da empresa. Ou seja, ocorreu a “legalização” do assalto “ao dinheiro público! Por outro lado, não é menor o assalto legal que se faz com a alta taxa Selic, taxa determinada pelo Banco Central. Como é esta taxa que corrige mais de 50% da dívida pública, o governo paga juros altíssimos aos bancos e fundos que detêm os títulos públicos. A dívida líquida do governo federal com aquela dos Estados, municípios e estatais está hoje por volta de mais de 900 bilhões de reais.
[13] Michel Pablo foi o grande traidor da IV Internacional que provocou a grande cisão de 1953, quando propunha conciliação entre stalinismo e trotsquismo.