Sexta-feira passada marcou o aniversário de 150 anos da derrota da Comuna de Paris, marco histórico na luta dos trabalhadores por sua emancipação, afogada com sangue após a heroica resistência de mais de um mês do proletariado francês contra sua burguesia. Em homenagem à Comuna, publicamos hoje uma análise de U. Bueno sobre a “A Guerra Civil na França”, obra seminal de Marx que analisa esse processo revolucionário, e publicaremos nos próximos dias textos de Trotsky e Lênin sobre o mesmo tópico.
A luta da classe trabalhadora contra a classe dos capitalistas entrou, com a luta parisiense, em uma nova fase. Qualquer que seja o andar das coisas no futuro imediato, o certo é que se conquistou um novo ponto de partida de importância histórico mundial.[1]
Se hoje, a partir de uma visão retrospectiva, nos é fácil reconhecer e entender a importância histórica da Comuna de Paris para o desenvolvimento das lutas do movimento operário em âmbito mundial, talvez essa tarefa – de reconhecimento e entendimento, e também de análise de suas questões fundamentais – não fosse tão fácil assim de ser realizada no calor do momento. Mas se essa tarefa não era fácil, Marx deu prova de sua capacidade de compreensão dos acontecimentos históricos no curso de seu desenvolvimento, e o seu A guerra civil na França atesta essa afirmação. Em sua Introdução à Guerra Civil na França, edição publicada em 1891, Engels ressalta o “prodigioso talento” de Marx
em compreender claramente o caráter, o alcance e as consequências necessárias dos grandes acontecimentos históricos, em um momento em que esses acontecimentos ainda se desenrolam diante de nossos olhos ou mal acabaram de se completar.
(ENGELS, 2011, 187)
Publicado inicialmente como “Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores” com data de 30 de maio de 1871, A Guerra Civil na França dirigia-se “a todos os membros da Associação na Europa e nos Estados Unidos”, apresentando os eventos transcorridos nos 72 dias de existência da Comuna de Paris, bem como discutindo os conflitos e contradições da sociedade francesa do período que serviram como base histórica para a chegada do proletariado, pela primeira vez, ao poder. Ao fazer referência, aqui, à “base histórica”, levamos em conta que, de um lado, o homem não faz a história como bem entende, mas sempre de acordo com as condições materiais que encontra em seu tempo; e, de outro, que a vontade e a inteligência, muitas vezes, são fundamentais para o curso do desenvolvimento histórico – ou seja, os homens não são apenas “objetos” frente aos acontecimentos diante dos quais nada podem fazer, mas são “sujeitos” que, se organizados, podem mudar o rumo dos acontecimentos históricos. A Comuna de Paris acaba sendo a expressão da tomada de consciência do proletariado parisiense – condição subjetiva – da incapacidade de as formas de dominação burguesa darem respostas positivas no que concerne às reivindicações dos trabalhadores.
Em sua apresentação à edição brasileira de 2011, Antonio Rago Filho afirma:
A Comuna de Paris foi a primeira experiência histórica de tomada de poder da classe trabalhadora, cujo significado colocou-a como referencial para as lutas de emancipação social. A Comuna foi uma revolução contra o Estado. A forma política “finalmente encontrada”, meio orgânico de ação que visava um trânsito socialista, uma nova forma social sem classes, a poesia do futuro. Marx afirmou que sua grande medida foi precisamente sua existência.
(RAGO, 2011, 9 – grifos do autor)
Nas jornadas de 1848-49, o proletariado francês passa pela experiência histórica que desnuda o caráter de classe da república burguesa. Principal força social nas lutas travadas para a derrota da monarquia de Luis Felipe, a classe operária viu a traição da burguesia bater à porta quando da reunião da Assembleia Nacional, em 4 de maio de 1848, “sendo (essa) o resultado das eleições nacionais”, ou seja, a Assembleia Nacional “representava a nação”. Segundo Marx, em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, a Assembleia tinha como objetivo “reduzir os resultados da revolução ao nível burguês” (MARX, 2006, 24). E prossegue:
À monarquia burguesa de Louis Philippe só pode suceder uma república burguesa, ou seja, enquanto um setor limitado da burguesia governou em nome do rei, a totalidade da burguesia governará agora em nome do povo. As reivindicações do proletariado de Paris são devaneios utópicos, às quais se deve pôr um paradeiro. A essa declaração da Assembleia Nacional Constituinte o proletariado de Paris respondeu com a Insurreição de Junho, o acontecimento mais colossal das guerras civis na Europa. A república burguesa venceu.
(MARX, 2006, 24-25 – grifos do autor)
A derrota dos operários de Paris em 1848 (estima-se mais de três mil mortos e quinze mil deportados) foi um primeiro passo para a ascensão de Luis Bonaparte ao poder em 1851 e para a instauração do Segundo Império. Engels explica que,
(s)e o proletariado ainda não podia governar a França, a burguesia não o podia mais fazê-lo. Ao menos naquele período, quando a maior parte dela ainda tendia para a monarquia e se encontrava fragmentada em três partidos dinásticos e um republicano. Suas dissensões internas permitiram ao aventureiro Luis Bonaparte apossar-se de todos os postos de poder – exército, polícia, maquinaria administrativa – e, em 2 de dezembro de 1851, suprimir o último baluarte da burguesia, a Assembleia Nacional.
(ENGELS, 2011, 189)
Esse curto panorama apresentado faz-se necessário na medida em que devemos perceber o papel fundamental da classe operária nas lutas travadas na sociedade francesa no período, e a incapacidade da burguesia em exercer o papel revolucionário que cumpriu em 1789. Se no plano da luta os operários franceses sofreram grandes derrotas – com a instauração da Assembleia Nacional e, posteriormente, com sua dissolução e a ascensão de Luís Bonaparte e do Segundo Império –, no plano da consciência essas derrotas foram fundamentais para a identificação da burguesia como o inimigo de classe e do programa republicano parlamentar como insuficiente para as necessidades e reivindicações da classe operária.
O processo que levou os trabalhadores franceses a identificarem a burguesia como inimigo de classe e o programa republicano como insuficiente para suas demandas também revelou o caráter despótico do Estado moderno, sendo a maquinaria estatal um instrumento político para a escravização do proletariado, para que, cada vez com maior eficiência, o capital possa exercer seu poder sobre o trabalho. A análise do caráter de classe do Estado e a observação minuciosa das respostas que a revolução proletária dá a esse Estado despótico são os dois pontos fundamentais de A Guerra Civil na França.
Ao analisarmos o “Segundo Rascunho” de A Guerra Civil na França, vemos que Marx começa seu estudo demonstrando as verdadeiras características do Governo de Defesa Nacional, encabeçado por Thiers depois da proclamação da República em 4 de setembro de 1870. Com a guerra franco-prussiana ainda em andamento – e os franceses sofrendo as graves consequências do aventureirismo de Luís Bonaparte, o Pequeno –, esse governo constitui-se a partir dos nomes escolhidos para o Corpo Legislativo em 1869 com o único propósito de defesa nacional. Porém, Marx alerta que:
(…) Paris não podia (não devia) ser seriamente defendida sem o armamento da classe trabalhadora, sem que esta fosse organizada em uma Guarda Nacional e treinada na própria guerra. Mas Paris armada era a revolução armada. A vitória de Paris sobre os prussianos teria sido a vitória da república sobre o domínio de classe francês.
(MARX, 2011, 153-54)
O “conflito entre dever nacional e interesse de classe” leva o Governo de Defesa Nacional a se transformar, nas palavras de Marx, em “Governo da Defecção Nacional” (MARX, 2011, 154); para esse governo, o inimigo do qual deveria se defender não era o soldado prussiano, mas sim o operário de Paris. Dito isso, fica mais fácil o entendimento da capitulação francesa diante do governo prussiano em 26 de fevereiro de 1871[2], quando Thiers e Jules Favre, pelo lado francês, e Bismarck, pelo lado prussiano, assinam em Versalhes o “tratado preliminar de paz entre França e Alemanha”, no qual os franceses fazem diversas concessões aos vencedores, entre elas ceder a região da Alsácia e parte da Lorena, além do pagamento do valor de 5 bilhões de francos referente a reparações de guerra. Os operários de Paris não aceitam a capitulação e a Guarda Nacional deserta, criando um Comitê Central. Em 18 de março Thiers tenta retirar a artilharia da guarda nacional, mas os soldados confraternizam com a população: é proclamada a Comuna de Paris; começa a guerra civil [3].
A Comuna, segundo Marx, “(e)m sua mais simples concepção, [ela é] a forma sob a qual a classe trabalhadora assume o poder político em seus baluartes sociais, Paris e outros centros sociais” (MARX, 2011, 169). A proclamação do Comitê Central de 20 de março, transcrita por Marx, diz o seguinte:
Os proletários da capital (…), em meio aos fracassos e traições das classes dominantes, entende(ram) que lhe(s) era chegada a hora de salvar a situação tomando em suas mãos a direção dos negócios públicos… Entenderam ser seu imperioso dever e seu absoluto direito tomar em suas próprias mãos o seu próprio destino, apossando-se do poder político (poder estatal).
(COMITÊ CENTRAL, apud MARX, 2011, 169)
Marx analisa a origem do Estado moderno – que serviu de instrumento de emancipação da burguesia diante das amarras do feudalismo –, demonstrando como a Revolução de 1789 derrubou “os últimos obstáculos a estorvar o pleno desenvolvimento do poder estatal centralizado, com seus órgãos onipresentes desenhados segundo o plano de uma divisão do trabalho sistemática e hierárquica” (MARX, 2011, 170). O Estado, assim, seria palco de controvérsia das diversas facções da classes dominante, na mesma medida em que esta, com o progresso econômico da sociedade moderna, criaria sua própria negação – uma classe trabalhadora cada vez mais numerosa que, ao sentir na pele as misérias dos modernos meios de exploração, aprende a organizar sua própria resistência e “desenvolve suas tendências à emancipação” (MARX, 2011, 170). E prossegue Marx:
(…) em uma palavra, porque a moderna luta de classes, a luta entre trabalho e capital, tomava forma –, a fisionomia e o caráter do poder estatal sofreram uma notável mudança. Ele fora sempre o poder para a manutenção da ordem, isto é, da ordem existente da sociedade e, portanto, da subordinação e exploração da classe produtora pela classe apropriadora. Mas assim que essa ordem foi aceita como uma necessidade incontroversa e incontestada, o poder estatal pôde assumir aspecto de imparcialidade.
(MARX, 2011, 170)
A cada novo passo dado no desenvolvimento da luta de classes, o Estado passa a “cada vez mais desenvolver seu caráter de instrumento do despotismo de classe (…), do domínio econômico do capital sobre o trabalho” (MARX, 2011, 170). Com o caráter despótico do Estado cada vez mais exacerbado – como consequência do acirramento das contradições de classe –, a República Parlamentar francesa (1849-1851) é marcada pela transformação do Estado em “confesso instrumento de guerra, empregado pela classe apropriadora contra a massa produtora do povo” (MARX, 2011, 171). Diante desse estado de coisas, a República Parlamentar acabou tornando-se a negação de si mesma: na medida em que os conflitos de classes se tornavam cada vez mais patentes, a República Parlamentar só seria de fato eficaz em uma situação de guerra civil, ou seja, em uma situação em que seu aspecto de imparcialidade fosse desmascarado por completo e a ordem que ela deveria garantir passasse a inexistir. Não sendo possível a perpetuação da guerra civil contra o trabalho, devido à necessidade de defesa de um estado de ordem, a República Parlamentar abre espaço para o Segundo Império e para Luís Bonaparte. Ao “dirigir o poder estatal como uma força superior às classes dominantes e dominadas” (MARX, 2011, 171), o Império cala o parlamento – órgão em que se expressa diretamente o poder político da classe proprietária –, ao mesmo tempo em que leva “à rápida centralização do capital pela exploração da classe média e pelo alargamento do abismo entre a classe capitalista e a classe trabalhadora” (MARX, 2011, 171). Ao silenciar a forma política de disputa – colocando-se, como dito anteriormente, acima das classes –, o “Império era a única forma possível de Estado capaz de garantir alguma sobrevida à velha ordem social” (MARX, 2011, 171). O Império, portanto, é a forma mais acabada de poder governamental.
Com a tomada do poder, o proletariado não poderia simplesmente apropriar-se da maquinaria estatal e utilizá-la para seus próprios objetivos. Os operários, afirma Marx, “querem a República não mais como uma modificação política do velho sistema do domínio de classe, mas como os meios revolucionários para suprimir o próprio domínio de classe” (MARX, 2011, 183). Assim, a primeira condição para a manutenção do poder depois de tomá-lo seria a destruição do próprio Estado (MARX, 2011, 169). Marx, no calor do momento, demonstra, em sua análise, ter consciência disso, assim como os operários de Paris em armas:
(…) a classe operária não pode simplesmente se apossar da maquinaria estatal tal como ela se apresenta e dela servir-se para seus próprios objetivos. O instrumento político de sua escravização não pode servir como instrumento político de sua emancipação.
(MARX, 2011, 169)
Diante da tarefa colossal de destruição do Estado e construção de uma nova ordem, a Comuna de Paris apresenta-se não apenas como uma contraposição ao Estado moderno, mas como o oposto de sua forma mais acabada que é o Império. Ainda seguindo Marx:
O que os trabalhadores tinham de derrubar era não uma mais ou menos incompleta forma do poder governamental da velha sociedade, mas sim esse poder mesmo em sua forma acabada e exaustiva: o Império. O oposto direto do Império era a Comuna.
(MARX, 2011, 172 – itálico do autor, negrito nosso)
A combinação dos fatores objetivos e subjetivos que levou o proletariado pela primeira vez na história à tomada do poder – ou seja, a Paris em armas – foi o fator decisivo para que legitimistas, orleanistas, republicanos burgueses e bonapartistas deixassem de lado a mesquinhez de suas rivalidades e, com o respaldo da Prússia vencedora, se unissem em torno do partido da ordem, com o único intuito de esmagar exemplarmente a insurreição de 18 de março. Se as classes dominantes francesas, por meio de suas diversas frações – mais o imperialismo prussiano –, unidas em torno da tarefa de esmagar o proletariado revolucionário, conseguiram derrotar a Comuna depois de 72 dias de heroica resistência dos communnards, elas jamais puderam apagá-la da história e da tradição de lutas da classe trabalhadora. Como alertou Marx, mais uma vez no curso do desenvolvimento histórico, “(a) Comuna de Paris pode cair, mas a Revolução Social que ela iniciou triunfará. Seu local de nascimento é em toda parte” (MARX, 2011, 176).
[1] Carta a Ludwig Kugelmann, de 17 de abril de 1871. In: A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 209.
[2] O tratado final de paz foi assinado em Frankfurt, em 10 de maio de 1871. MARX, op. cit., “Cronologia da Comuna de Paris”, p. 223.
[3] Cronologia completa ver “Cronologia da Comuna de Paris”. In: MARX, 2011, 211-17.
Bibliografia
ENGELS, Fredrich. “Introdução à reedição alemã de A Guerra Civil na França (1891)”. In: A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011, pp. 187-97.
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006
MARX, Karl. A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. Carta a Ludwig Kugelmann, de 17 de abril de 1871. In: A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 209.
RAGO FILHO, Antonio. “Apresentação”. In: A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 9-20.