Transição Socialista

Marx e o Estado

Introdução à obra

A alguns pode parecer estranha a abordagem deste tema – Marx e o Estado – mais uma vez. Todavia, apesar de tantos textos a respeito, cremos ser necessário um novo trabalho. Há, sem dúvida, boas e aprofundadas abordagens de aspectos. Mas estas pecam, grosso modo, pela falta do caráter generalizador. Este texto se justifica, portanto, antes de tudo, pelo seu caráter de generalização. A tentativa de generalização, para alguns, é sinal de diletantismo. Todavia, pelo contrário, a busca pela generalização – até mesmo quando inconsistente – evidencia da forma mais clara e rápida as posições políticas e os limites da empreitada. A fragmentação meramente analítica, típica da crítica kantiana, muitas vezes impressiona… Mas é como um jogar de areia nos olhos. Ela cega. Ela cria imagens que se autonomizam. Portanto, o caráter generalizador ajuda novos leitores a tirar, dentro do possível, o máximo de conclusões políticas deste tema no menor espaço de tempo. Esta obra – que tem caráter introdutório – pretende ajudar no desenvolvimento de linhas de reflexão (e de ação política), inclusive para o ultrapassamento do aqui apresentado.

Em segundo lugar, temos a pretensão de corrigir o que consideramos imprecisões teóricas. Há evidentemente quanto ao tema ora tratado uma obra tão fundamental quanto O Estado e a Revolução, de Lenin, felizmente “abandonada” pelo autor às portas da revolução de outubro de 1917. Trata-se de obra seminal no combate àqueles que apontam o Estado como espaço de transformação social; obra que causa mal estar, com razão, ainda hoje, entre a esmagadora maioria das correntes políticas ditas seguidoras de Marx. Entretanto, há em reflexões de Lenin quanto ao Estado dois pontos com os quais não concordamos: a questão do chamado “capitalismo monopolista de Estado” e a questão da própria forma de surgimento histórico do Estado.

A questão do “capitalismo monopolista de Estado” não é tratada por Lenin em O Estado e a Revolução, mas em outros momentos (sobretudo em meio à discussão da chamada NEP, Nova Política Econômica da URSS, a partir de 1921). Já a questão do surgimento do Estado é tratada no início de O Estado e a Revolução.

Quanto ao tema do “capitalismo monopolista de Estado”, trataremos aqui de forma absolutamente insuficiente, no capítulo que aborda a concepção de trabalho produtivo e improdutivo em Marx, e, conjuntamente a isso, o caráter do trabalho que se dá sob o Estado (empresas públicas, de diferentes tipos). Esse capítulo não esgotará a questão do “capitalismo monopolista de Estado” – o que só é possível se tratado como tema à parte, vinculado à questão do imperialismo –, mas dará traços fundamentais para desenvolvimentos teóricos futuros.

Quanto à questão do surgimento do Estado, teremos de entrar de forma mais clara, no primeiro capítulo, em contraposição à posição apresentada por Lenin, segundo o qual “o Estado surge precisamente onde, quando e na medida em que as contradições de classe objetivamente não podem ser conciliadas”. Cremos que Lenin estaria correto se afirmasse “O Estado ocidental surge precisamente onde…”. A posição de que o Estado surge no caráter inconciliável da sociedade de classes não tem amparo nos textos de Marx. Este encontra no Modo de Produção asiático a origem do Estado (a não ser que se queira afirmar que ali não se tratava de “um Estado em sentido verdadeiro”, um Estado ocidental). A interpretação de que o Estado surge com a divisão da sociedade em classes tem amparo em Engels, na obra A origem da Família, da propriedade privada e do Estado, obra citada por Lenin logo no início de O Estado e a Revolução. Queremos, portanto, destacar a diferença dessa leitura muito difundida com relação à de Marx. O problema não é menor, pois a confusão atrapalha, como veremos, a própria compreensão do processo de transição ao socialismo.

Em terceiro lugar, este texto se justifica por refletir, numa forma em geral pouco abordada, sobre o papel do Estado na transição do presente capitalista à tomada do poder pela classe trabalhadora (ao menos no conjunto dos países mais importantes). Trata-se do capítulo que analisa o programa (dez medidas do Manifesto Comunista) apresentado inicialmente por Marx e Engels. Com base em reflexões metodológicas e estudos sobre dialética atuais – sobretudo desenvolvidos pelo Prof. Hector Benoit –, analisaremos o caráter das dez medidas do Manifesto, ainda hoje muito comuns no programa da chamada esquerda socialista, e concluiremos que elas não têm caráter propriamente socialista (ou seja, podem ser absorvidas pela burguesia). Tal condição é determinada pela concepção de Estado que até então tinham os autores.

Do mais, este texto se justifica também porque é sempre bom voltar aos velhos temas com frases novas. Não só pela facilitação do linguajar, mas porque alguns dos problemas foram incrivelmente recolocados – mesmo depois de obras seminais como a de Lenin – com novos malabarismos linguísticos. Basta olhar a atuação prática da maioria das correntes do chamado movimento socialista para se perceber que algo “não cola” quando confrontado com a obra de Marx. Tais setores têm, evidentemente, suas rebuscadas justificativas teóricas atuais. O trabalho de desmascarar, portanto – e infelizmente –, tem de ser permanente, de Sísifo.

Há uma tendência de encobrimento da verdade dada não apenas pela ignorância, mas sobretudo pela pressão permanente da classe burguesa sobre o movimento dos trabalhadores. Isso, portanto, não é novo. Ainda em vida, Marx e Engels tiveram de se voltar tantas vezes (não raro, violentamente) contra seus “discípulos”. Veja-se a famosa carta depois rebatizada de “Crítica ao Programa de Gotha”… Sabe-se que foi escondida durante mais de uma década pela cúpula do Partido Social-Democrata Alemão (infeliz até no nome!). Quarenta anos depois, Lenin teve de combater não só o oportunismo dos sociais-democratas alemães, mas de todo o movimento socialista da II Internacional, em franca bancarrota graças à traição vergonhosa no início da Primeira Guerra mundial.

Mas o próprio Lenin sofreu um destino similar ao de Marx. Não apenas a burocracia stalinista deturpou dogmaticamente tudo o que ele escreveu – e para isso teve de santificar suas palavras –, como produziu em seu próprio seio um dejeto tão abjeto quanto o oportunismo social-democrata. Falamos do chamado “Eurocomunismo” e seu “compromisso histórico” (com as democracias burguesas), desenvolvidos nos Partidos Comunistas da Itália, Espanha e França na década de 1970. Sua influência se faz sentir ainda hoje sobre o que restou dos partidos comunistas em todo o mundo.

Tudo se deu de tal forma que, neste início do século XXI, o problema da teoria marxista frente ao Estado segue motivo de discussão. Ainda que para alguns o esforço de retomada dos textos de Marx pareça inútil ou sem sentido, é na realidade uma vez mais imperioso. Por isso, faremos aqui um trabalho às vezes considerado inglório: ater-nos ao máximo possível (e literalmente) às palavras de Marx. Era o método que Lenin apreciava, quando se necessitava de discussão séria. É verdade que as citações alongam a leitura e deixam-na pesada. Mas, infelizmente, visando a fazer deste texto algo útil, não temos outra opção.

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