Este é o nosso décimo primeiro texto de crítica ao programa apresentado pelo PSTU para debate no Polo Socialista. Veja os nossos dez primeiros textos aqui. O texto de programa do PSTU, por sua vez, pode ser encontrado aqui.
O texto de programa do PSTU possui um item intitulado “Acabar com a dominação dos bancos!”. Ele é aberto com a seguinte afirmação:
“Os bancos brasileiros parasitam a vida de todo o povo. Não são instrumentos para o necessário financiamento da produção, mas verdadeiras sanguessugas dos trabalhadores” [página 25].
A frase dá a entender que se os bancos não fossem “sanguessugas”, mas atuassem no “necessário” [?] financiamento da “produção”, as coisas andariam melhor. O mau é que a “produção” a ser “necessariamente financiada” é a capitalista (extração de mais-valia, exploração cotidiana da classe trabalhadora pelo capital).
Marx escreveu trechos fundamentais do Livro 3 de O capital (sobretudo seções IV e V) para demonstrar que a tese de que os bancos são meros “sanguessugas” é uma ilusão criada pelo próprio sistema capitalista. Com isso, o autor buscava combater as correntes socialistas pequeno-burguesas de sua época (com destaque para a proudhoniana) que, sem entender os fenômenos do capital monetário, demonizavam sobretudo “os bancos”. Como Marx já mostrou em sua época, tais correntes faziam coro com capitalistas produtivos (ver crítica a Proudhon no capítulo XXI do Livro 3 de O Capital). Era a defesa de um “bloco produtivista”: a união de capitalistas e operários contra os “especuladores”, “sanguessugas” etc. Nessa concepção, o conflito entre capital e trabalho é deslocado pelo conflito bancos versus “povo”.
Tratando do capital bancário, Marx insiste que sua “autonomia” é limitada e ilusória. Da parte significativa do capital bancário que forma o que Marx chama de “capital de comércio de dinheiro” (ver seção IV do Livro 3 de O Capital) não há autonomia alguma, pois sua taxa de lucro é determinada como a de todo o capital comercial e é por isso componente da taxa média de lucro do conjunto da economia capitalista. Por isso, não há razão teórica ou evidência empírica para sustentar que aí se aufere uma taxa de lucro superior à dos demais setores e ramos capitalistas, dando base a uma “dominância”. Já da parte do capital bancário que dá base ao sistema de crédito (capital portador de juros, analisado na seção V do mesmo livro), cabe notar que Marx insistiu no caráter restrito e subordinado (à produção) dessa “autonomia” creditícia. Por exemplo, no capítulo XXI Marx afirma que o sistema de crédito “tem como pressuposto que o dinheiro seja empregado como capital”; que “o valor de uso do dinheiro emprestado consiste em poder funcionar como capital e produzir […] o lucro médio”; que “seu pressuposto fundamental [do sistema de crédito] é justamente o de que o dinheiro funcione como capital, e portanto como capital em si”.
É verdade que com o desenvolvimento do capital portador de juros (e suas formas fictícias) desenvolve-se a ilusão da “autonomia” do capital bancário. Mas isso é em última instância, diz o próprio Marx, um fetiche; uma ilusão produzida pelo sistema econômico. Como ela se produziria?
Segundo Marx, essa ilusão avança qualitativamente com o desenvolvimento da noção de “ganho empresarial”. Este é o lucro “bruto” do capitalista produtivo, isto é, seu lucro quando descontados os juros (veja-se capítulo XXIII do mesmo livro 3 de O Capital). Marx mostrou que a divisão quantitativa da mais-valia entre ganho empresarial e juros tornou-se, em determinado momento histórico – na época do surgimento da grande indústria – uma divisão qualitativa, que se impôs ao conjunto dos capitalistas. Ou seja: essa divisão tornou-se determinante inclusive para os capitalistas que produziam ou comercializavam com capital monetário próprio (não emprestado). Ao ser projetada para o conjunto da classe capitalista, a noção de “ganho empresarial” tornou-se antitética à de juros. Em tal momento histórico, todo capital em função aparentemente passou a produzir dois rendimentos qualitativamente diferentes: um que emana da aplicação produtiva ou comercial (ganho empresarial) e outro que emana da mera propriedade do capital (juros).
Com a antítese surgida qualitativamente entre capital como função e capital como mera propriedade, apagou-se na aparência a antítese entre classe trabalhadora e classe capitalista. Diz Marx: “Na realidade, na forma em que ambas as partes do lucro, isto é, da mais-valia, assumem como juro e ganho empresarial não está expressa relação alguma com o trabalho […]” [capítulo XXIII do Livro 3 de O Capital]. Com a autonomia das formas próprias do capital portador de juros, diz Marx, “a figura fetichista do capital e a concepção do fetiche-capital está acabada. […] [É] a mistificação do capital em sua forma mais crua”.
É tentador, segundo Marx, sucumbir ao fetiche e à ilusão: “Para a economia vulgar, que pretende apresentar o capital como fonte autônoma do valor, de criação de valor, essa forma é naturalmente um petisco, uma forma em que a fonte do lucro [a exploração da força de trabalho] já não é mais reconhecível […]” [capítulo XXIV do livro 3 de O Capital].
É um petisco para a economia vulgar, para os teóricos da “financeirização” e, ao que parece, para o socialismo proudhoniano do presente.