Este é o nosso décimo segundo texto de crítica ao programa apresentado pelo PSTU para debate no Polo Socialista. Veja os nossos onze primeiros textos aqui. O texto de programa do PSTU, por sua vez, pode ser encontrado aqui.
Ainda no item sobre a “dominação dos bancos”, o documento programático do PSTU trata do tema da dívida pública. Diz ele:
“Mas não é essa somente essa [sic] a sangria do povo brasileiro. Quase metade de todos os impostos e taxas arrecadados no país são entregues aos bancos para pagar a dívida pública. Essa é tipicamente uma dívida de agiota, que já foi paga inúmeras vezes, e cada vez aumenta mais. Alcançou em 2020 o montante de R$ 6,7 trilhões de reais. Esse é um motivo central para a falta de verbas para a saúde, educação e moradia. Porque metade, repetimos metade do que se arrecada, é entregue aos bancos para pagar essa dívida” [páginas 25-26].
Não é verdade que a “metade do que se arrecada” é destinada ao pagamento da dívida pública. O governo federal arrecadou em 2021 R$ 1,8 trilhões. Segundo o documento do PSTU, cerca de R$ 900 bilhões teriam sido destinados ao pagamento da dívida em 2021. Isso simplesmente não ocorreu nem ocorre a cada ano. Se a metade do que é arrecadado hoje – ou seja, cerca de R$ 900 bilhões – fosse realmente usada para pagar a dívida de R$ 6,7 trilhões, esta desapareceria em cerca de sete anos.
Na realidade, a dívida pública foi refinanciada (“rolada”) em 2021, como ocorre a cada ano (aliás, em todos os países capitalistas). Fez-se uma nova dívida para pagar a que estava para vencer. Ou seja: o governo emitiu mais títulos (capital fictício) para o pagamento de juros e amortizações de dívidas anteriores. O governo só seria capaz de pagar a dívida com parte do que arrecada se tivesse um superávit primário, coisa que nem sempre ocorre. Por exemplo, em 2013 – auge do boom das commodities – o governo federal teve superávit primário. Assim, pôde usar R$ 77 bilhões para a diminuição da dívida. Esse valor era 8% da receita líquida à época, algo muito distante da “metade do que se arrecada” (hoje, cerca de R$ 900 bilhões), como afirma o documento do PSTU.
Esse tipo de confusão faz com que o discurso da nossa “esquerda” seja cotidianamente desmontado (com destaque para os períodos de campanhas eleitorais) por qualquer analista burguês sério ou especialista em gestão pública. A confusão provém da não compreensão do caráter do crédito na economia capitalista (a já tratada ideia de que é apenas algo parasitário, “sanguessuga” etc.). O crédito, na realidade, é condição sine que non da expansão do capital produtivo (aumento da exploração dos trabalhadores, extração de mais-valia). Justamente por isso, o crédito é condição para a expansão da arrecadação estatal (pois o eixo do regime fiscal, já esclarecemos, são os impostos sobre a circulação de mercadorias, dedução da mais-valia). No geral, se a acumulação capitalista se expande – o que é possibilitado pelo crédito –, expande-se a arrecadação de impostos. Pode expandir também assim o montante líquido destinado pelo Estado aos gastos sociais e aos salários de seu pessoal. Caso o governo não tenha superávit primário, se endividará para, entre outras coisas, cobrir os gastos correntes.
O programa do PSTU defende como saída para a “dominação dos bancos” o seguinte: “Suspender o pagamento da dívida pública aos bancos e estatizar todo o sistema financeiro. Cancelamento das dívidas bancárias dos trabalhadores e pequenos comerciantes” [pág. 26].
A suspensão das dívidas não é, por si mesma, uma medida revolucionária. O governo federal brasileiro já suspendeu a dívida onze vezes desde o fim do século XIX. Ao considerar isso algo revolucionário, o documento do PSTU defende uma estratégia de gestão “radical” do Estado capitalista. Trata-se de tentar voltá-lo às necessidades da maioria da população. Assim, se as dívidas não fossem pagas, a dita “metade do que se arrecada”, supostamente gasta com a dívida, seria destinada a Saúde, Educação, obras públicas etc., e assim, de alguma forma, ampliando contradições, caminhar-se-ia para uma revolução completa.
Todavia, a verdadeira estratégia revolucionária – alicerçada nas experiências da Comuna de Paris e da Revolução de 1917 – é a da dualidade de poderes. Trata-se da criação de um poder operário e popular contraposto ao poder oficial de Estado da burguesia, que o derruba na hora certa. Esse poder operário e popular, se vitorioso, destrói, junto com o Estado burguês, sua dívida. Basta ver os decretos bolcheviques de janeiro e fevereiro de 1918. Ou seja: o não pagamento da dívida é uma das coisas que decorrem da tomada do poder – e não um pressuposto para a tomada do poder. Os bolcheviques derrubaram o poder burguês em outubro de 1917 e cancelaram a dívida depois, em fevereiro de 1918.
Em síntese: na estratégia comunista da dualidade de poder, o não pagamento da dívida decorre da tomada do poder. Na estratégia social-democrata, a suspensão da dívida supostamente prepara a revolução completa num amanhã indeterminado. Percebem as consequências políticas decorrentes das estratégias opostas?
Marx sabia que era impossível responder se um novo poder operário teria de arcar com as dívidas de um Estado anterior. Por isso, nunca defendeu a suspensão do pagamento das dívidas. É verdade que os bolcheviques – quando constataram que a revolução internacional tinha refluído, que estavam completamente isolados e por isso já começavam a implementar a NEP – reconsideraram os decretos do início de 1918 e buscaram pagar parte das dívidas czaristas. É o caso de sua atuação no Congresso de Gênova e no Tratado de Rapallo (ambos de 1922). Os bolcheviques buscaram, assim, crédito dos capitalistas internacionais, para reerguer a indústria soviética. Mas isso foi concessão tática em situação de isolamento e paralisia internacional da revolução, não estratégia de poder.