Transição Socialista

Sobre a suposta regressão colonial

Por R. Padial

O artigo abaixo é contribuição individual, visando à abertura/ampliação de discussão sobre o polêmico tema da caracterização do Brasil.

Apresentação

O acordo recentemente assinado de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia deu pano para manga em discussões da chamada esquerda brasileira. É necessário saber como caracterizar a questão, e, sobretudo, como se posicionar frente a ela. Para boa parte da chamada esquerda – PSOL, PSTU e organizações menores –, trata-se de um tipo de “regressão colonial”, o que os leva a ser, por esse motivo, contra a medida. Para eles, portanto, a mudança na condição do Brasil – regressão – é determinada por um processo comercial, que tem implicações produtivas. 

Mas será que é disso mesmo que se trata? Ao considerar a realidade brasileira dessa forma – regressão colonial –, que resulta para o nosso programa de luta?

O que Marx diz sobre “colônia”?

O importante revolucionário alemão Karl Marx, ainda que não tenha trabalhado o tema à exaustão, deixou-nos alguns elementos importantes para refletir sobre a condição de uma colônia [1]. Para ele, o “sistema colonial” capitalista, na época em que vivia (segunda metade do século XIX), já estava em decadência e tenderia a desaparecer. Isso porque, acreditava, a existência do sistema colonial estava umbilicalmente ligada às necessidades de uma época então passada, chamada de “mercantilista” (época ditada pela necessidade de hegemonia comercial, época das manufaturas, anteriores à época da grande indústria). Eis como Marx se expressava, no capítulo XXIV do livro primeiro de O Capital: 

“Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No período da manufatura propriamente dito [época do mercantilismo], pelo contrário, é a supremacia comercial que dá a predominância industrial. Daí, o papel preponderante que o sistema colonial então desempenhou.”[2]

Note-se o verbo conjugado no pretérito perfeito: “desempenhou” [em alemão, spielte]. 

A submissão política direta era necessária, no período manufatureiro, como base do sistema colonial, para uma hegemonia comercial. Tal forma de submissão política direta foi descartada aos poucos, historicamente, pela própria burguesia, na medida em que a grande indústria surgiu. Nesse processo, as diversas nações antes submetidas ao sistema colonial foram se “independitizando” politicamente. 

Mas restava ainda, para Marx, um traço característico das colônias no período contemporâneo a si próprio. Não se tratava mais de submissão política formal, e sim de submissão econômica. Por exemplo, comentando a situação dos EUA em 1867 – portanto, pouco após a Guerra de Secessão e quase cem anos após a Independência dos EUA –, Marx afirmava existir ali ainda um traço colonial de tipo econômico. Diz ele, no capítulo XXV de O Capital, que “os EUA são ainda, economicamente falando, colônia da Europa (…)”. [3]

Por que isso se dava? Porque, para além do traço colonial anterior (político-formal, característico do período mercantilista), manifestava-se ainda outro elemento nos EUA: a dificuldade para o estabelecimento de leis fundamentais de acumulação da sociedade capitalista. Tal dificuldade expressava-se numa tendência a que meios de trabalho deixassem de ser capital, meios de subsistência deixassem de ser mercadoria, e produtores diretos deixassem de aparecer como portadores da mercadoria força de trabalho. Em determinadas condições, relações diretas entre os produtores e as condições de realização de seu trabalho manifestavam-se novamente, impedindo o desenvolvimento do mercado capitalista. 

Em suma (e para usar uma linguagem mais simples), o problema consistia no seguinte: proletários voltavam a ser camponeses; eram reabsorvidos nos campos, com seus pequenos lotes de terra, com sua indústria domiciliar, afastando-se do mercado, deixando de vender sua “mão de obra” livremente como mercadoria. Eis um persistente traço problemático (para os capitalistas) nas colônias, segundo analisa Marx no capítulo XXV do livro primeiro de O capital (capítulo não à toa denominado “A Teoria Moderna da Colonização”). Marx diz, analisando o caso dos EUA e da Austrália, o seguinte:

“A essência de uma colônia livre consiste, pelo contrário, em que a maior parte do solo ainda é propriedade do povo e cada povoador, portanto, pode transformar parte dele em sua propriedade privada e em meio de produção individual, sem impedir os povoadores que chegam depois de executarem essa mesma operação. Esse é o segredo tanto do florescimento das colônias quanto de seu câncer – sua resistência à radicação do capital.” [4]

Destaque-se aí duas coisas: 1. a possibilidade de cada povoador transformar parte do solo em propriedade privada sua (elemento já comentado); e 2. a possibilidade de fazê-lo sem impedir que novos povoadores também o façam. Trata-se, portanto, de situação absolutamente diferente da que se passava na Europa (no continente e na Inglaterra), onde, como legado da Idade Média, a maior parte das terras já estava nas mãos de grandes proprietários. Na Europa, ainda que persistissem na época da Marx muitas relações atrasadas (camponesas) em boa parte de seus países, tais relações eram constrangidas pela divisão particular da terra já realizada anteriormente, no modo de produção anterior. O aumento da população europeia não caminhava conjuntamente com o aumento de lotes de terras, antes o contrário: os novos membros do campesinato eram forçados à proletarização (não só pela violência da classe burguesa e seu Estado, mas pela própria reprodução), uma vez que as terras já estavam ocupadas. [5]

Vejamos outro trecho, que reforça essa concepção. Ainda no capítulo XXV do livro primeiro, sem usar o termo “colônia livre” (ou seja, tratando de colônia de forma indistinta, seja ela “livre”, seja ela “escrava”), Marx levanta a seguinte questão:

“Visto que nas colônias a separação do trabalhador das condições de trabalho e de sua raiz, a base fundiária, não existe ainda, ou apenas esporadicamente ou em escala limitada demais, não existe também a separação entre agricultura e a indústria, nem a destruição da indústria doméstica rural, de onde deve então provir o mercado para o capital?”

Fica novamente claro que, para ele, colônia possui um traço característico de não haver em si ainda a separação do trabalhador em relação às condições de seu trabalho (ou de forma limitada). Na mesma linha, ainda nesse mesmo capítulo (XXV), Marx argumenta que se a base fundiária (a propriedade do povo, o acesso direto às suas terras) desaparecesse, desapareceria também a colônia:

“Se se quisesse, de um golpe, transformar toda base fundiária de propriedade do povo em propriedade privada [capitalista], destruir-se-ia – é verdade – o mal pela raiz, mas também – a colônia.” [6]

Fim da condição de reprodução das relações diretas entre o produtor e seus meios de produção parece equivaler, para Marx, ao fim das colônias (em sua forma econômica).

Deve-se analisar outro ponto de vista do mesmo problema: a relação direta do produtor com seu lote de terra levava, logicamente, à não abundância de trabalhadores no mercado de trabalho, portanto, também ao alto preço da mercadoria força de trabalho (salários), outra característica das colônias. Não se desenvolvia bem e amplamente um exército de reserva para pressionar abaixo os salários e dar base material à lei geral de acumulação capitalista. No capítulo XXIII do livro primeiro do Capital Marx já comentara isso:

“Por outro lado, assim que, nas colônias, por exemplo, circunstâncias adversas perturbem a criação do exército industrial de reserva e, com ele, a dependência absoluta da classe trabalhadora em relação à classe capitalista, o capital, inclusive seu Sancho Pança dos lugares-comuns, rebela-se contra a “sagrada” lei da demanda e oferta e trata de promover aquela criação por meios coercitivos.” [7]

Também nos Grundrisse, citando o economista Wakefield,Marx comenta no mesmo sentido: “A escassez de trabalhadores para se contratar é a queixa universal nas colônias”. [8]

Assim, colônia, para Marx, não é apenas a região submetida de forma política direta (coisa para a qual a necessidade material desapareceu), mas submissão econômica numa maneira muito particular: a que se dá pela persistência de relações pre-capitalistas de produção, relações diretas com a terra, relações que impedem um desenvolvimento de mercado interno (seja de consumo do produtor, seja de venda de força de trabalho); persistência de relações que impedem o funcionamento pleno da lei geral de acumulação capitalista devido à ausência de uma superpopulação relativa. Colônia é uma região (ou país) que o capital domina e transforma à sua imagem e semelhança. Depois de feita a tarefa, a colônia deixa propriamente de sê-lo. 

Por tudo isso, o Brasil – com sua gigantesca população desempregada ou subempregada – não deve ser caracterizado como país colonial, semicolonial ou neocolonial. O Brasil deve ser caracterizado como país capitalista – não se deve buscar adjetivos para esconder isso!

Há “retrocesso colonial” no acordo Mercosul-UE?

Cabe questionar, com base nesses elementos acima, a pertinência da ideia de que se passa um “retrocesso colonial” hoje no Brasil. Ora, por acaso o acordo comercial faz reviver a época do mercantilismo, da manufatura, em detrimento da grande indústria? Evidentemente, não. Por acaso o acordo faz com se manifestem os “traços problemáticos” que caracterizam uma colônia, apontados por Marx (ou seja, formas não capitalistas (pré-capitalistas) de produção)? Também não!

Pelo contrário, o acordo fortalece a grande indústria, seja ela agrária (brasileira e argentina), seja ela de alta “manufatura” (sobretudo a alemã). O acordo fortalece os traços plenamente capitalistas do Brasil e destrói relações mais atrasadas de capitalismo, seja na Europa, seja na América Latina. Os nossos marxistas, tão limitados a um ponto de vista provinciano, não percebem que o acordo produzirá na Europa os mesmos reveses que eles lastimam aqui. Não à toa, pequenos e médios (e mesmo grandes) produtores agrários na França, na Itália, na Irlanda e outros países da Europa estão revoltados/protestando contra o acordo. Afinal, como competir com o país cujo agronegócio é o segundo mais desenvolvido do planeta (Brasil, que perde apenas para os EUA)? Tais produtores não subsistirão na concorrência com o capital do agronegócio brasileiro e argentino. Tendem a se arruinar e a se proletarizar. 

Da mesma forma, os pequenos e médios fabricantes capitalistas brasileiros e argentinos estão revoltados com o acordo: não subsistirão na concorrência com o capital industrial europeu, sobretudo alemão. Também eles engrossarão no longo prazo as fileiras do proletariado.

Desse ponto de vista, portanto, o acordo significa o aumento de uma divisão capitalista internacional do trabalho, uma relação de interdependência ainda maior entre as nações, entre continentes inteiros. [9] Trata-se exatamente da manifestação das leis gerais de acumulação capitalista em âmbito global, e não de um processo de “colonização”. 

O que os marxistas depois de Marx entendem por “colônia”?

Os marxistas depois de Marx intentam criar novos conceitos. Obviamente, nada há de pecado nisso. A criação de conceitos é necessária para se apreender fenômenos novos. Mas as únicas coisas que se exige é que se entenda como Marx desenvolveu seus conceitos e que se avalie em que medida os “novos fenômenos” são realmente novos. Infelizmente, a grande maioria das “atualizações” de Marx recai em concepções pré-marxistas, conscientemente (e consistentemente) negadas pelo próprio Marx. O mesmo nos parece ocorrer com o uso neo-marxista do termo “colônia”.

Para os marxistas depois de Marx, “colônia” não está definida como um componente da época histórica do mercantilismo, nem como a condição de países onde se mantêm relações pré-capitalistas de produção, com dificuldades para efetivr-se a lei geral de acumulação capitalista (baixa superpopulação relativa). Para eles, colônia é definida 1. pela submissão financeira (dívida externa e outras formas de financiar o chamado, por eles, “capital financeiro”); 2. Pela submissão política (geopolítica) a uma potência; 3. pelo desaparecimento de uma indústria vertical dentro de um país (indústria que continha todos os elos de uma cadeia produtiva, desde o extrativismo até a montagem do produto final, com diversos componentes), em nome do desenvolvimento das “cadeias globais”, ou indústria horizontal mundial (com mera montagem dentro do país); 4. pelo dependência crescente do setor agro-exportador.

No primeiro elemento – o mais importante a ser comentado –, cremos que se desenvolve nesses marxistas uma visão sobre economia influenciada pelo ponto de vista da burguesia, ponto de vista centrado na esfera da circulação do capital, e não na de produção do capital (extração de mais-valia). Trata-se de certa submissão ao procedimento ideológico da burguesia, que esconde conscientemente a origem da mais-valia (da exploração capitalista, portanto). Tais marxistas centram suas análises nos fluxos de capital entre as nações, nas relações de dívida, no conflito com o FMI etc. O chamado “capital financeiro” – termo não utilizado por Marx – torna-se cada vez mais o elemento central de suas análises. [10]

Rosa de Luxemburgo apontava o caráter ideológico daqueles que centravam suas análises no processo de circulação do capital. Em sua Introdução à Economia Política, firmava o seguinte:

“Numa palavra, os sábios burgueses colocam no primeiro plano das suas considerações históricas a troca, a distribuição ou o consumo, exceto a forma social da produção, quer dizer exceto o que justamente em cada época histórica é decisivo (…)”. E o que é decisivo? “A forma social da produção, isto é, a questão das relações entre aqueles que trabalham e os meios de produção, é a questão central de qualquer época econômica, é o ponto sensível de toda sociedade de classes, onde os meios de produção escapam àqueles que trabalham.” [11]

Para se analisar o avanço ou atraso de um país, o central não é olhar para a dívida externa, para o fluxo de capital, para a corrente de comércio, para a balança de pagamentos, para os Investimentos Externos Diretos. O central é olhar para as suas relações de produção, para a forma como se produz e se troca dentro do país (que determina como ele se relaciona com outros países). Deve-se então analisar se se manifestam naquele país as leis gerais de acumulação apontadas por Marx (citadas acima). Desenvolvamos mais.

O elemento da “submissão financeira” a outro país (dívida pública externa) não é um traço característico do sistema colonial. Notemos que Marx, no já referido capítulo XXIV de O Capital, fala de vários sistemas necessários à acumulação capitalista, sistemas que coexistiam lado a lado, diferenciando claramente sistema colonial do sistema de dívidas:

“Em Inglaterra, no fim do século XVII, eles [os momentos das acumulação originária] são reunidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida do Estado, no sistema moderno de impostos e no sistema proteccionista”. [12]

Marx, nessa altura de O Capital, seguirá analisando esses vários sistemas, em si, cada qual em sua particularidade, em seus traços diferentes (que se relacionavam, obviamente). Eles não eram nem são sinônimos. Sistema de dívida pública não é sinônimo de sistema colonial. E, particularmente, ao analisar o sistema da dívida pública, Marx destacará que ele é característico das nações capitalistas mais avançadas, mais ricas de capital (e não propriamente um traço de “colônias”). Por exemplo, no livro terceiro de O Capital, Marx comenta que o sistema de dívida pública é, para os capitalistas ingleses (a nação mais desenvolvida do período), uma das melhores alavancas de acumulação. 

Longe de se constituir enquanto um problema aos capitalistas, a dívida pública seria a solução e caracterizaria os países mais desenvolvidos. Ainda hoje, a relação dívida/PIB é mais acintosa e explosiva nos países capitalistas com maior riqueza anterior acumulada. [13] Por exemplo, tratando do apologista burguês Pitt, Marx diz conter em sua obra 

“uma bela introdução teórica à dívida pública inglesa […] [que] um Estado nunca necessita encontrar-se em dificuldades; pois com as menores poupanças pode pagar a maior dívida em tempo tão curto quanto possa requerer seu interesse.” 

Pitt, segundo Marx, “transforma a teoria da acumulação de Smith na do enriquecimento de um povo por meio da acumulação de dívidas e num crescendo atinge o infinito dos empréstimos, empréstimos para pagar empréstimos”. “Empréstimos, empréstimos para pagar empréstimos” eis a maravilha dos capitalistas no país mais desenvolvido da época de Marx! [14]

Quanto ao segundo elemento – submissão política e militar (geopolítica) –, basta notar que nações tão desenvolvidas quanto Inglaterra e França são capachos dos EUA na OTAN e no Conselho de Segurança da ONU. A submissão a uma potência militar não é um elemento suficiente para se definir um país como “colônia”, dado que alguns dos países capitalistas mais importantes do mundo são submetidos militarmente aos EUA há décadas. 

Quanto ao terceiro elemento – desaparecimento de cadeia produtiva vertical dentro de um país, desenvolvimento de um indústria de mera “montagem” –, não se trata de algo característico de uma colônia, mas do processo mundial capitalista de desenvolvimento de uma divisão internacional do trabalho. Marx nunca se mostra preocupado em saber se um produto final – um carro, por exemplo – tem todos os seus componentes produzidos dentro de uma nação, em suas diversas indústrias. Pelo contrário, em certo elogio à burguesia, Marx e Engels afirmavam, já no Manifesto do Partido Comunista, que 

“A burguesia, pela sua exploração do mercado mundial, configurou de um modo cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, tirou à indústria o solo nacional onde firmava os pés. As antiquíssimas indústrias nacionais foram aniquiladas, e são ainda diariamente aniquiladas. São desalojadas por novas indústrias cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, por indústrias que já não laboram matérias-primas nativas, mas matérias-primas oriundas das zonas mais afastadas, e cujos fabricos são consumidos não só no próprio país como simultaneamente em todas as partes do mundo. (…)” [15]

Nada há de novo nesse “fenômeno” tão destacado pelos nossos marxistas. E mais: ele também caracteriza há décadas (senão século) os países capitalistas mais avançados. Não só o Brasil, mas os países mais avançados do mundo passam pelo que hoje nossos marxistas chamam de “desindustrialização”. Na realidade, também nisso mostram uma visão provinciana. A “desindustrialização” relativa dentro de um país significa, na verdade, o aumento da industrialização absoluta, capitalista, em todo o globo; a transformação de todo o planeta num sistema-mundo plenamente capitalista.

Quanto ao quarto elemento – desenvolvimento de um setor agro-exportador – certos marxistas chegam ao cúmulo de compreender o agronegócio como não industrial. Pelo contrário, para Marx, a agricultura moderna, capitalista, é pura indústria. É puro trabalho produtivo, do qual se extrai mais-valia de seus operários. Tais marxistas chegam às vezes a misturar a condição do proletário agrícola com a do camponês! 

Além disso, os marxistas depois de Marx, tanto no elemento acima – fim de uma cadeia produtiva interligada interna ao país – quanto neste, do agronegócio, dão importância fundamental à noção de “valor agregado”. A indústria do agronegócio teria menor valor agregado se comparada, por exemplo, à indústria de manufatura (eletroeletrônicos, carros, aviões etc.). É verdade, mas acontece que Marx não está preocupado com a noção de “valor agregado”. Marx, quando analisa uma economia capitalista, faz uma divisão principal, no livro segundo de O Capital, entre Departamento I (produtor de meios de produção) e Departamento II (produtor de meios de consumo). Na realidade, a utilização da noção de “valor agregado” em geral só serve para apagar essa divisão fundamental realizada por Marx. Em tal compreensão, uma indústria de manufatura do Departamento II (como, por exemplo, da indústria da “linha branca”, de máquinas de lavar roupas, geladeiras, fogões etc.) torna-se mais importante do que a agro-indústria do Departamento I (produção de soja brasileira para alimentar animais de abate na China, extração de minério de ferro que servirá à indústria metalúrgica de todo o planeta, produção de celulose etc.). Trata-se de um bom exemplo de como fazer uma divisão arbitrária, seguindo o modo de ver e analisar a economia por parte da burguesia, apagando os conceitos fundamentais criados por Marx para se compreender o sistema capitalista. Assim perde-se a capacidade de compreensão dos elos verdadeiramente estruturantes de uma cadeia produtiva num país, aqueles que mais facilmente permitem que a classe operária se apodere da produção nacional.

O desenvolvimento cada vez mais internacionalizado da produção capitalista, longe de se tornar um problema, acelera as contradições capitalistas em âmbito mundial. Isso faz com que cada manifestação proletária em um canto do mundo tenha uma repercussão maior e mais clara sobre os proletários de outro canto do mundo. Evidentemente, isso também apresenta de forma cada vez mais concreta a necessidade urgente de uma organização internacional revolucionária da classe trabalhadora.

O que leva os marxistas depois de Marx usarem erroneamente o termo “colônia”?

Os marxistas depois de Marx falam de colônia porque, em suma, têm de se afastar da defesa da revolução socialista (internacional) no presente. Dado que um país como o Brasil, por exemplo, seria “colonial”, tarefas democrático-burguesas, nacionais, imporiam-se como fundamentais, secundarizando ou relativizando a estratégia propriamente socialista em âmbito mundial. Via de regra, tais marxistas sobrevalorizam a questão nacional dentro de países capitalistas desenvolvidos justamente para se afastar da estratégia socialista. [16]

A origem exata desse veneno dentro do movimento comunista brasileiro é a stalinização da Internacional Comunista (Terceira Internacional) e subsequente stalinização do PCB. É a teoria das etapas, que prega a necessidade de aliança (na prática, submissão) do proletariado à burguesia e suas pautas democráticas, em nome de “desenvolver” o país, amadurecer-se para uma prometida revolução socialista no longínquo amanhã. Tal tese desenvolveu-se nos partidos comunistas da AL latina ao final de 1928 e início de 1929 e ainda hoje envenena toda a “esquerda” brasileira, seja de matriz stalinista, seja supostamente “trotskista”. Desde então, tarefas de “libertação nacional” colocam-se para tais setores como fundamentais (Assembleia Constituinte, reforma agrária, substituição de importações, ruptura com FMI etc.), em detrimento das tarefas verdadeiramente socialistas (socialização dos meios de produção). [17]

Esses sujeitos desvirtuaram por completo os apontamentos de Marx e Engels sobre o caráter “nacional” da classe trabalhadora, desde o Manifesto do Partido Comunista. Nesse texto, Marx e Engels falam o seguinte, a respeito do proletariado dos países capitalistas:

“Na medida em que o proletariado tem primeiro de conquistar para si a dominação política, de se elevar a classe dirigente nacional, de se constituir a si próprio como nação, ele próprio é ainda nacional, mas de modo nenhum no sentido da burguesia.” [18]

O que isso significa? Significa que o proletariado tem de acabar antes de tudo com sua própria burguesia. O proletariado é “nacional” somente no sentido de que tem de dar cabo de sua própria classe dominante. Mas os nossos novos “marxistas”, pelo contrário, consideram que, para ser “nacional”, o proletariado tem de se unir à burguesia de seu próprio país para combater um ente abstrato mundial chamado “imperialismo”. É a completa inversão do que disseram Marx e Engels, uma inversão muito bem elaborada pela cretinice e vigarice stalinista, vinculada à condenação da estratégia revolucionária do proletariado.

Após a onda stalinista, somou-se ainda a ideologia do “subdesenvolvimento”, desenvolvida diretamente no Departamento de Estado do EUA, que tornou-se a cartilha de boa parte da nossa “esquerda”, sempre predisposta a combater abstrações (dependência, atraso, subdesenvolvimento) e nunca uma coisa concreta com nome muito claro – capitalismo. Tais abstrações – como tantas outras que se combate – são formidáveis para desarmar a luta da classe operária. O combate ao “imperialismo” (lá de fora, de outro país, ou como uma ente mundial abstrato) tornou-se central para não se falar uma palavra muito concreta e determinada, “capitalismo”; tornou-se fundamental para não se combater o capital aqui dentro (aliás, a partir do próprio local de trabalho). A burguesia e seu ideólogos sabem bem disso (bem como sabem os burocratas sindicais comprados pelo Estado burguês, sempre predispostos às bravatas e invectivas violentas em discursos “anti-imperialistas”). 

O discurso sobre colônia, em geral, anda pari passu com o discurso de libertação nacional, e, no Brasil, condiciona necessariamente um programa avesso à revolução socialista.

Como se posicionar frente ao acordo Mercosul-UE?

Não é necessário falar de “colônia” para ser contra o acordo do Mercosul com a UE. O que é necessário é saber que toda posição contrária ao acordo deve ser crítica. Crítica porque é necessário diferenciar a posição proletária contrária da posição burguesa contrária. A mera “contrariedade” vazia facilmente vira uma abstração que submete politicamente a classe trabalhadora a setores da burguesia. A mera postura contrária não contém em si, necessariamente, nenhuma saída estratégica para a classe trabalhadora. Por trás de uma mera posição contrária podem existir posições protecionistas da própria burguesia semi-arruinada. Tais posições, como as advindas da abstrata caracterização do Brasil como colônia, pressionam a esquerda a capitular à lógica burguesa.

Ainda assim, o central, para os revolucionários, não é o acordo em si, mas preparar a classe trabalhadora para resistir ao capitalismo com um programa transitório. Aos revolucionários cabe dirigir o proletariado na defesa radical contra fechamentos de fábricas, contra a perda de empregos, numa forma específica que conduza invariavelmente a uma única conclusão – à revolução socialista. De nada adianta ser contra o acordo se não se tem esse programa. A luta transitória não considera o âmbito de acordos estatais, mas o âmbito produtivo; ela parte dos locais de trabalho, das fábricas – onde os trabalhadores contam apenas com suas próprias forças, e não com brechas advindas da disputa de setores burgueses – e se eleva à criação das formas autônomas de poder do proletariado.

Trata-se, portanto, de lutar, de forma radical, em defesa de empregos e salários, seja em empresas de capital brasileiro prestes a falir, seja nas de capital estrangeiro que se instalarem, seja nas empresas “nacionais/estatais”. [19]


[1] A etimologia da palavra “colônia”, derivada do latim, demarca a ideia de um “revolver a terra” enquanto habitar. O termo, conforme usado desde a antiguidade romana, diz respeito àqueles que estão “revolvendo a terra” (trabalhando campos, habitando) em outra região. Marx utiliza o termo “colônia”, grosso modo, na forma como nos legou toda a tradição histórica ocidental (desde o gregos e romanos, portanto). Assim, o termo contém em si a ideia de um povoamento novo, distante da metrópole, para fazer dessa nova região algo similar à própria metrópole. A colônia não é pensada nunca do ponto de vista de habitantes autóctones, mas sempre do ponto de vista da civilização exportadora do povoamento. Esse problema é importante, como veremos, pois colônia é aquela região que ainda necessita, em maior ou menor grau, de auxílio externo, da metrópole, para se consolidar à sua imagem e semelhança.

[2] MARX, K, O Capital, livro primeiro, cap. XXIV, item 6. As divisões de capítulos e itens, aqui apresentada, estão conforme a edição alemã da MEW (Marx-Engels Werke). O grifo na citação acima é nosso.

[3] Idem, ibidem, cap. XXV, primeira nota de rodapé. Também no capítulo XIII do livro primeiro de O Capital, item 7, em nota de rodapé, Marx afirma: “O desenvolvimento econômico dos Estados Unidos é, ele mesmo, um produto da grande indústria européia, ou melhor, inglesa. Em sua atual configuração (1866), precisam ser ainda considerados uma colônia da Europa.”

[4] Idem, ibidem, cap. XXV. Note-se aqui que Marx trata como “colônias livres” (cap. XXV), “verdadeiras colônias” (cap. XXV) ou “colônias propriamente ditas” (cap. XXIV) justamente aquelas atividades coloniais em geral denominadas, em manuais e livros de história correntes, de “colônias de povoamento” (em contraposição às ditas “colônias de exploração”). Para Marx, a colônia livre era aquele onde os colonos europeus podiam estabelecer acesso direto à terra como meio de produção próprio (ter seu pequeno lote, tornar-se camponês em sua forma clássica).

[5] É por isso que Marx diz que a propriedade fundiária realizada no feudalismo deu base histórica ao surgimento do capitalismo. Ainda que os latifundiários sejam, para a própria burguesia, segundo Marx, uma “excrescência parasitária”, uma velhacaria do passado medieval, essa classe de proprietários da terra foi importante para impossibilitar que os camponeses, uma vez expulsos de suas terras e tornados proletários (acumulação originária do capitalismo), encontrassem novas terras, “livres”, passíveis de ser mais uma vez apropriadas. A esses expropriados só restou, então, a condição proletária. Sobre isso, ver os Grundrisse de Marx (cap. 3, capítulo sobre o capital, item sobre o dinheiro como capital, sub-item 2). 

[6] MARX, K., O Capital, cap. XXV. Grifo nosso. A ideia de colônia “livre” não diz respeito à relação de “liberdade” da colônia em relação à metrópole (submissão política), mas sim ao estatuto do trabalhador, que tem livremente a sua própria terra. Essa “liberdade” cria uma submissão econômica, ou uma fraqueza capitalista (“os EUA são ainda, economicamente falando, colônia da Europa”, diz Marx). Em outras passagens (como no cap. XXIV), Marx fala que o camponês livre, na sua relação direta com a terra e sem submissão a relações servis/feudais (o chamado por ele “caso clássico”, usando como exemplo a classe camponesa da Inglaterra até séc. XVI e parte do XVII), tem inclusive um grande desenvolvimento de riqueza e liberdade, permitindo alto nível de instrução e desenvolvimento cultural. Assim, o “livre” atribuído aqui às colônias opõe-se ao “escravo” ali, ou seja, ao trabalhador escravizado no sul dos EUA ou mesmo no Brasil, bem como se opõe à condição do proletário sob o Modo de Produção Capitalista, que não tem relação direta com os meios de produção.

[7] MARX, K., O Capital, cap. XXIII, final do item 3. Grifo nosso.

[8] MARX, Grundrisse, “capítulo sobre o capital” (capítulo 3), na parte que analisa mais-valia e lucro, comentando Malthus e Wakefield.

[9] Para Marx, quanto mais um país se desenvolve do ponto de vista capitalista, mais ele se torna dependente. Mais avançado, mais dependente. Dizem ele e Engels, por exemplo, já no primeiro item do Manifesto do Partido Comunista (1848): “No lugar da velha auto-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, surgem um intercâmbio de todos os lados, uma dependência [Abhängigkeit] das nações umas das outras”. Para Marx e Engels, se uma nação superdesenvolvida de sua época, como a Inglaterra, fosse submetida a um embargo comercial, pereceria rapidamente. Mas se a Índia, uma nação muito atrasada em sua época, fosse submetida ao mesmo embargo, persistiria por mais tempo graças à sua forma de produção artesanal e agrária local, relativamente fechada ao mercado. A Índia (colônia) dependia menos do mercado mundial (do capitalismo, portanto), do que a Inglaterra (metrópole). Evidentemente, por motivos de potência geopolítica, a Inglaterra não foi submetida a um embargo. Comentário semelhante é feito por Trotsky. Veja em A revolução permanente, São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1979, p. 10, apud BENOIT, H., “O Programa de Transição de Trotsky e a América” in Crítica Marxista (São Paulo) , v. 18, p. 37-64, 2004.

[10] O livro segundo de O Capital de Marx, sobretudo sua primeira seção, é fundamental para compreender que Marx nunca considera os ciclos da esfera da circulação – ciclo do capital-monetário e ciclo do capital-mercadoria – enquanto articuladores do sistema econômico capitalista. Para Marx, sempre o ciclo do capital produtivo é o articulador dos demais (prioritário, portanto). Mas só é possível compreender isso se se leva em consideração que O Capital de Marx tem um modo de exposição, ou seja, que o livro segundo traça as leis gerais e abstratas que regem o livro terceiro (no qual as diversas formas de capital se autonomizam). Não há no livro segundo a concepção que essencializa o capital bancário, ou que compreende “capital financeiro” enquanto fusão do capital bancário com o produtivo (industrial). A noção que sobrevaloriza o capital bancário (forma autonomizada do capital-monetário), e dá base a certas concepções vulgares da teoria do imperialismo, serve apenas, em última instância, para desviar o olhar da esfera de produção do capital, da exploração/extração da mais-valia, e centrá-lo na circulação. Assim, também a luta pode se deslocar da fábrica para a “sociedade civil”, para as ruas e sobretudo para o parlamento, em alianças inescrupulosas com a burguesia etc.

[11] LUXEMBURGO, R., São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 192, apud BENOIT, H., “O Programa de Transição de Trotsky e a América”, op. cit.

[12] MARX, K., O Capital, cap. XXIV, item 6.

[13] Veja, por exemplo, especificamente quanto à relação dívida/PIB, comentário do presente por parte de MARTINS, J., em “A inacreditável euthanasia da produção industrial brasileira, disponível em <https://criticadaeconomia.com/2019/07/a-inacreditavel-eutanasia-da-producao-industrial-brasileira/>. Acesso em agosto de 2019.

[14] MARX, K., O Capita, livro terceiro, seção V (capital portador de juros), cap. XXIV.

[15] MARX, K., & ENGELS, F., Manifesto do Partido Comunista, item 1 (“Burgueses e proletários”).

[16] Para Marx, o problema nacional enquanto de um “povo” ou de “raça” não tem a ver com uma determinada cultura, língua ou costumes. Esses traços, para se analisar um “povo”, são superficiais, qualitativamente pouco relevantes. Para Marx, um “povo” se diferencia de outro porque ambos estão em momentos históricos diferentes (formações econômicos sociais diferentes, que correspondem em linhas gerais a modos de produção diferentes). São dois tempos históricos que se cruzam no mesmo tempo. Mas, para compreender isso, é necessário constatar que há uma teoria da história universal em Marx. Assim, o “povo brasileiro” em nada de fundamental se diferiria do “povo argentino”, ou “inglês” ou “norte-americano”, dado que reina nesses países uma cultura capitalista universal, na qual as diferenças regionais ou culturais são secundárias. Os indivíduos de tais nações, considerando as classes às quais pertençam, agem e comportam-se, linhas gerais, da mesma forma frente aos mesmos problemas. Outra coisa é a comparação do trabalhador brasileiro em relação a, por exemplo, membros de tribos relativamente fechadas da Amazônia brasileira. Apesar de estarem no mesmo país e serem formalmente ambos “brasileiros”, conformam “povos” diferentes, “raças” diferentes. Sobrevalorizar a questão nacional esquecendo esse detalhe – o lastro material – dá sempre base a um desvio na estratégia (internacional) de libertação da classe trabalhadora.

[17] Ver também BENOIT, H., “O Programa…”, op. cit.

[18] MARX K., & ENGELS F., Manifesto…, parte 2, “proletários e comunistas”.

[19] Mas também a mera defesa de empregos e salários não basta (pois ela pode ou não levar à revolução). Os revolucionários devem ter um programa concreto de transição ao socialismo, que parta da defesa intransigente dos empregos e salários, favoreça a abertura da dualidade de poder nos locais de trabalho (comitês de fábrica), e favoreça assim também a dualidade de poder em âmbito super-estrutural (bairros, com os Conselhos). Tal programa revolucionário está presente no movimento dialético de O Capital de Marx, e expresso em forma sintética no Programa de Transição de Trotsky. Ele consiste na aplicação cotidiana das chamadas escalas móveis, de salário e de horas de trabalho, as quais já são, na prática, se combinadas, a forma de funcionamento da economia socialista. Assim, elas já são o socialismo no presente, ou a presentificação do futuro, a realização da revolução na mínima luta cotidiana. Assim, frente à necessidade que a esquerda tem de se posicionar no acordo com a UE, para além de qualquer voto momentâneo, a única resposta real é a retomada do programa da IV Internacional, que segue incompreendido ou abandonado, aprofundando a crise de direção do proletariado. Frente ao acordo Mercosul-UE, deve-se entender o seguinte: venha o que vier, organizaremos a classe para resistir numa forma em que todo ataque sirva para transitar concretamente ao socialismo