Transição Socialista

Um mês da chacina no Rio de Janeiro

No dia 28 de outubro de 2025, o Rio de Janeiro presenciou mais uma chacina em seus morros. 121 pessoas foram assassinadas pelas forças policiais numa megaoperação que em tese deveria eliminar o crime organizado nas comunidades cariocas. O BOPE passou por cima de qualquer mandado de prisão e de qualquer presunção de inocência. Corpos foram carregados e expostos em praça pública, rendendo manchetes que circularam pela imprensa mundial. A título de comparação, as chacinas no Jacarezinho (maio de 2021), na Vila Cruzeiro (maio de 2022) e no Alemão (julho de 2022) contabilizaram, ao todo, 69 mortos. Trata-se, portanto, de um crime do Estado oficial comparável, em números, ao massacre do Carandiru de 1992 em São Paulo.

A opinião pública: choque ou realidade?

Em que pese o teor chocante do episódio, as pesquisas de opinião mostraram que a maior parte da população no RJ e no Brasil apoiou a operação. Segundo pesquisa Quaest feita no começo de novembro, 67% dos brasileiros aprovam o ocorrido e, em solo fluminense, esse número é de 64%. Ao mesmo tempo, 67% da população discorda que houve exagero na força policial.

O número pode parecer um contrassenso. Diante de um banho de sangue, a maior parte da população aprova e aplaude a ação estatal? Na realidade, não surpreende. É sabido que o Comando Vermelho e outras facções disputam o poder territorial das comunidades cariocas. Mobilizam, para isso, a força bruta contra os próprios moradores, membros da classe trabalhadora em situação mais precária, muitos deles no quadro da informalidade. Cobram taxas extorsivas para que seja possível o acesso ao gás de cozinha, à internet, à luz e ao telefone. Em suma, estabelecem um domínio político local que lhes dá sustentação para a condução de suas atividades comerciais essenciais ligadas ao tráfico internacional de drogas. A violência organizada nas favelas, portanto, serve a um interesse propriamente de classe que norteia o CV. Ele é um membro da burguesia comercial, exportando uma mercadoria que abastece mercados significativos e que rende lucros exorbitantes para esse segmento, justamente o que permitiu seu crescimento e alastramento pelo país. É bem verdade que se trata de uma ala da burguesia não validada pelo Estado, ilegal na forma jurídica. Mas é essa particularidade que conjuga a lucratividade com a opressão e o sufocamento da comunidade.

A aprovação popular à chacina é, nesse sentido, resultado de contradições de classe que se exacerbam neste quadro particular em que um setor dos capitalistas comerciais recorre à força bruta nas favelas para preservar seus lucros derivados da ilegalidade do tráfico de drogas.

Cláudio Castro e o “conselho da paz”: as aves de rapina

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, sabe dessa rejeição ao crime organizado. E ele sabe também que sua popularidade estava baixa. Para se ter uma ideia, em fevereiro de 2025, 48% dos moradores do estado o reprovavam e 42% o aprovavam. Dias após a chacina, a situação praticamente se inverteu e ele passou a ter aprovação de 53% e reprovação de 40%. Ao mesmo tempo, outros governadores de oposição, especialmente Romeu Zema (MG) e Ronaldo Caiado (GO), imediatamente se prontificaram para aparecer em rede nacional e anunciar um “consórcio da paz” capaz de propor e promulgar leis de garantia à segurança pública.

Nada mais falso! Como aves de rapina, essa ala da política burguesa já buscou se apropriar da megaoperação como forma de alavancar a popularidade faltando um ano para as eleições presidenciais. Sem um candidato definido, a oposição busca se agarrar a qualquer fato midiático para projetar um nome minimamente forte e capaz de decidir o pleito com Lula.

O Estado burguês oficial no Rio de Janeiro, permeado pelo crime e conivente com a miséria derivada da exploração capitalista na região, mostra-se ano após ano incapaz de combater as facções e as milícias. Foram dezenas de chacinas policiais nas favelas cariocas nos últimos 25 anos, com um resultado que se resume a um banho de sangue sobre a população pobre e negra do estado. Membros do alto escalão do Comando Vermelho, como o Doca, continuam operando seus negócios e preservam sua influência sobre a facção. Além disso, hoje se sabe que parte dos fuzis utilizados pelos criminosos é proveniente de exércitos da Bolívia, da Venezuela, da Argentina e, pasmem!, do Brasil. Há um fluxo de desvio de armas para organizações clandestinas diante do qual o Estado faz vista grossa.

A “esquerda” reformista já institucionalizou o debate
O governo federal, munido de apoio da militância petista e de outras alas da esquerda institucional, já se prontificou a apresentar seu PL Antifacção. Inicialmente conduzido pelo ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, o projeto prevê um poder maior de investigação da Polícia Federal em torno da estrutura financeira e organizacional das quadrilhas que sustentam o crime organizado. Para se ter uma ideia, a Lei, caso fosse sancionada na proposta original, permitiria até mesmo a infiltração de agentes federais no alto escalão das facções, no objetivo de chegar à raiz de seu funcionamento. Não demorou muito, porém, para que ela começasse a ser enfraquecida dentro do Congresso Nacional. Hugo Motta, presidente da Câmara, delegou a Guilherme Derrite a função de relator do PL. Policial Militar da ROTA, deputado federal bolsonarista por São Paulo e secretário de segurança pública do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas, Derrite tem envolvimento próximo com Ciro Nogueira, senador pelo PP que tem investigações da Polícia Federal que perpassam toda sua família. Não por acaso, depois de inúmeras versões, o texto final aprovado pela Câmara é bastante desidratado, diminuindo o poder da PF de recolher o dinheiro e os bens de origem ilícita antes nas mãos das facções. Assim, embora sejam endurecidas as penas, os lastros financeiros do crime organizado na prática foram blindados de qualquer ação incisiva que pudesse fortalecer a fiscalização e o combate federais.

Se a esquerda reformista não tem coragem de colocar o dedo na ferida, os revolucionários devem ter. Cabe a nós denunciar os governos, inclusive os governos passados do PT e o atual, enquanto cúmplices históricos da violência policial e estatal no país. Ainda nesse ano, o executivo também foi responsável por apresentar uma outra proposta de expansão das atribuições de alguns dos braços armados do Estado, a PEC da Segurança (18/2025), que na prática tem como principal consequência o aprofundamento da repressão aos trabalhadores. Essa política se alinha às mesmas adotadas pelo governo anterior de Bolsonaro – como quando ele aprovou, com ajuda da esquerda petista e de deputados do PSOL, o Pacote Anticrime de Sérgio Moro. Em 2018, durante o governo Temer, em conluio com o governo estadual do Rio de Janeiro, na época chefiado por Luiz Fernando Pezão, foi aprovada uma intervenção federal de 10 meses de duração. O resultado foi o horror diário vivido pela população diante da mobilização de mais de 200 mil agentes das forças de segurança, com mais de duzentas operações policiais realizadas no período. Houve um aumento maior que 50% no número de tiroteios, além de outras formas de violação de direitos – incluindo estupros, invasões de residências e prisões de inocentes – que contabilizaram ao todo mais de 1.400 mortes. Pezão, devemos lembrar, foi peça essencial no tabuleiro eleitoral do PT e de Dilma nas eleições de 2014, dando origem ao movimento chamado “Dilmão”. Acordos eleitorais dessa natureza repetiram-se nas eleições de 2022, quando Lula se uniu a Cláudio Castro, aproveitando-se da proximidade do petista André Ceciliano, que se lançava como candidato a senador, com políticos bolsonaristas – proximidade construída na base de concessões de cargos enquanto este era presidente da ALERJ – tudo com o intuito de puxar votos no estado e garantir governabilidade. Dilma não antecipou apenas os acordos políticos, mas também foi quem encabeçou várias políticas de repressão estatal durante seus governos, especialmente como resposta às mobilizações de 2013 e 2014. Ela sancionou a Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/2016), que abriu margem para a criminalização de movimentos sociais, além de ter instaurado uma GLO para sufocar as manifestações, algo que se repetiu outras 26 vezes durante seus dois mandatos e colocou seu governo ao lado dos que mais solicitaram esse tipo de operação. Lula executou 39 GLOs em seus dois primeiros mandatos, enquanto Temer foi responsável por 17. Este é um dispositivo que permite a atuação direta das Forças Armadas na repressão às manifestações e convulsões que fogem do controle estatal, dando ao exército o poder de polícia – o mesmo movimento realizado quando Dilma ampliou o poder das Guardas Civis Municipais, dando a elas também o poder de polícia (Lei nº 13.022/14). Hoje, a PEC de Lula propõe a expansão do poder da Polícia Rodoviária Federal. Como se não bastasse o terrorismo realizado pelas instituições que realizam o policiamento ostensivo, colocando seus agentes nas ruas com a prerrogativa de inibirem o crime, quando, na verdade, são responsáveis por causar temor entre a população e a morte de inúmeros inocentes. A esquerda institucional fecha seus olhos diante dos fatos e ignora conscientemente que o PT também tem culpa na escalada da violência. Assim, ela já se dispôs a restringir qualquer debate à esfera da política burguesa, historicamente ineficaz no combate ao crime organizado. Ela sequer cogita pressionar Lula e seus aliados a se oporem às táticas e leis que instigam à repressão policial nas comunidades e nos bolsões de pobreza do país. Toda a política partidária, ao contrário, agora está voltada única e exclusivamente à votação de mais um PL enfraquecido e que deve virar letra morta diante de seus objetivos iniciais.

O PT tem dedo podre na escalada da repressão dos últimos anos no país. É necessário exigir que o governo rompa com qualquer política militarizada e repressiva que, sob alegação de combate ao crime organizado, resulta na morte de trabalhadores negros e pauperizados. Muitos dos 121 ceifados tinham de fato envolvimento estreito com o Comando Vermelho, mas eram em sua maioria peixes pequenos, moeda de troca descartável entre o narcotráfico e o Estado. E não sejamos ingênuos: inocentes também perderam suas vidas nessa farra da violência estatal. Este é o desdobramento torpe da combinação de uma exploração capitalista promovida pela burguesia traficante e de uma brutal violência estatal nas periferias cariocas. Mais repressão é a certeza de que em poucos anos, talvez meses, novos cadáveres ocuparão as manchetes dos jornais. É necessário, ao mesmo tempo, tirar desse debate seu aspecto puramente institucional, burguês. A discussão precisa correr pelas comunidades atingidas e pelos trabalhadores de diversos setores da economia. É urgente que se estabeleça um debate permanente e colaborativo entre os agrupamentos independentes que se colocam contra a escalada da repressão policial. Os revolucionários precisam explicitar e denunciar pacientemente o caráter capitalista do narcotráfico, sua relação tensa e ao mesmo tempo promíscua com o Estado oficial, assim como a ineficácia das políticas repressivas deste. Se hoje a maior parte do proletariado brasileiro aprova a chacina nos complexos do Alemão e da Penha, nada impede que, tratando do problema cotidianamente a partir de uma perspectiva revolucionária do problema, essa opinião possa mudar.

Em defesa dos conselhos populares nas favelas: o verdadeiro combate ao crime organizado

Como falamos acima, o narcotráfico se vincula a um comércio mundial de mercadorias, abastecendo mercados em diversos países e auferindo lucros exorbitantes que correspondem aos de qualquer outro grande setor da burguesia comercial. Onde não há nenhum poder que confronte a facção, ela cresce de forma desmedida. Forma-se, a partir disso, uma zona econômica e comercial fundada na circulação das drogas e das armas. Nasce um Estado não oficial, ilegal, que corresponde a uma forma-mercadoria também ilegal, não validada juridicamente. Sua sustentação territorial, portanto, passa necessariamente pela opressão e extorsão das comunidades periféricas onde atua. Nesse sentido, podemos dizer que há uma tensão desse Estado narcotraficante com o Estado burguês oficial, amparado pelo direito e pela produção e circulação legalizada de mercadorias. Formam-se exércitos distintos que, na disputa pelo controle das periferias, colidem e promovem confrontos localizados. A última chacina é uma expressão latente dessa tensão.

Essa colisão, por outro lado, não é absoluta. Ao mesmo tempo em que se confrontam, unem-se tacitamente e garantem a sobrevivência da própria estrutura criminosa. A corrupção das polícias e dos exércitos, as tratativas burocráticas dos homens de colarinho branco, dos chefes de tribunais e dos secretários estaduais, são os bastidores enlameados que preservam a rede das facções e sua hierarquia de comando. Por mais ilegal que seja a cocaína e a forma política que lhe corresponde, seu dinheiro é o dinheiro que corre todas as veias do sistema capitalista, assumindo o aspecto da legalidade burguesa tão logo encontre o bolso de algum burguês renomado e enaltecido enquanto homem público de caráter ilustre.

Há, portanto, uma tensão em unidade que se mostra latente na incapacidade que as forças oficiais tiveram, até os dias atuais, em combater o narcotráfico. Mobilizar a classe para exigir que o Estado burguês cumpra esse papel seria, assim, um contrassenso diante do que indicamos ao longo de todo este texto. Seria esperar por novas operações criminosas e desastradas como a que vimos em outubro. Não, é necessário agitar um programa que aponte para a construção de conselhos independentes nas periferias.

Segundo pesquisa do final de 2023, boa parte dos moradores das favelas cariocas ganhava menos do que um salário mínimo, com 40% de desempregados. Outros tantos se encontram no mundo da informalidade, incrementando o exército industrial de reserva, o que tende a comprimir ainda mais os baixos salários. A miséria proporcionada pela acumulação capitalista está na raiz da precariedade, colocando o crime organizado como a única alternativa que resta para muitos dos filhos do proletariado empobrecido. É, portanto, a construção de conselhos de moradores das favelas que aponta o caminho real para defender as condições mínimas de sobrevivência na periferia. O poder independente nas favelas pode parecer hoje apenas uma ideia abstrata. Mas não podemos deixar de agitar hoje aquilo que é correto. Deve-se lutar em prol da organização de um novo Estado enquanto alternativa aos que já existem, o burguês legal e o burguês ilegal. Diante da ineficácia do primeiro em combater o segundo, com a periferia sendo a moeda de troca entre os dois, é necessário fortalecer e unificar os agrupamentos políticos dispostos a agitar um programa revolucionário que se efetiva nos conselhos populares a partir de contradições colocadas pela realidade capitalista no presente.

Se o capital é incapaz de resolver as contradições que ele mesmo engendra, só resta aos trabalhadores, especialmente os que são assolados pelas armas do tráfico e da polícia, organizarem-se coletivamente em suas comunidades. O único poder que confronta o das facções na raiz é o do proletariado independente mobilizado em defesa de suas condições de vida nas favelas.

PELO FIM DA REPRESSÃO POLICIAL NO RIO DE JANEIRO!

PRISÃO PARA CLÁUDIO CASTRO E DEMAIS MANDANTES DA CHACINA!

EM DEFESA DOS CONSELHOS POPULARES NAS FAVELAS!