O arcabouço fiscal e a reforma tributária de Lula são importantes elementos de discussão política da atual conjuntura. A chamada “esquerda socialista”, entretanto, revela limitação teórica e programática ao ater-se a uma crítica de caráter reformista e pequeno-burguês a tais medidas.
Arcabouço fiscal e reforma tributária
O arcabouço fiscal de Lula e a reforma tributária caminham no sentido de dar base econômico-social ao Estado brasileiro e, como consequência, à moeda brasileira, visando à estabilidade dos negócios burgueses. De um lado – por meio do “arcabouço” –, trata-se de dirigir os gastos estatais (permitindo ampliá-los) dentro da dinâmica da atividade econômica capitalista. De outro – por meio da reforma tributária –, trata-se de “simplificar” a arrecadação de impostos para que se possa (supostamente) ampliar a produtividade das empresas e, como consequência, a arrecadação.
Em que consiste o “arcabouço” (já aprovado)?
Com o arcabouço, o governo defende que realizará metas anuais de superávit primário (saldo positivo entre as receitas e as despesas da União, descontado o pagamento de juros) com o objetivo de garantir a estabilidade do endividamento público. Segundo dados da Câmara dos Deputados, para 2024, com o “arcabouço”, o centro da meta de superávit será de 0% do PIB; em 2025, de 0,5%; em 2026, de 1,0%. Alcançada a meta, as despesas do governo poderão ser de 70% da arrecadação. Se o objetivo não for cumprido, esse percentual cairá para 50%. Os gastos têm um intervalo de crescimento real (descontada a inflação) entre 0,6% e 2,5% ao ano. Se o governo obtiver um superávit primário acima do teto da meta, 70% do excedente ficará disponível para investimentos públicos, respeitando um limite de 0,25% do PIB. Além disso, todo ano haveria um aporte mínimo – garantido no Orçamento – para investimentos, sendo maior ou igual ao montante do período anterior, corrigida a inflação.
A nova regra fiscal, como se vê, vincula a dinâmica das despesas do Estado ao desempenho geral da economia brasileira nos próximos anos (a chamada “economia real”). Aumentando o ritmo do crescimento, elevam-se a arrecadação, as receitas e, portanto, o gasto público em geral (para serviços e pagamento de dívida). Trata-se, com isso, de um regime mais flexível em comparação ao antigo Teto de Gastos (aprovado por Michel Temer), no qual não havia possibilidade de crescimento real das despesas. Mas assim como o Teto de Gastos, o plano atual busca diminuir relativamente a parcela da mais-valia necessária para garantir a solvência da União. No linguajar dos economistas burgueses, é tornar o Estado “mais eficiente”.
Em que consiste a reforma tributária (em processo de aprovação)?
Basicamente, seu propósito é a “simplificação” das formas de arrecadação, por meio da fusão de certos impostos. Com ela, importantes impostos federais (IPI, PIS, COFINS) e estaduais (ICMS e ISS) seriam substituídos por um único imposto, o “IBS” (imposto sobre bens e serviços), federal, mas que prevê distribuição aos entes federados. Trata-se de certa cópia do que já é realizado na Europa e outros países, onde em geral é conhecido como IVA (imposto sobre valor agregado). Segundo o economista responsável pela proposta, Bernard Appy – que tem relativa vinculação ao PT desde fins dos anos 1980 –, o IBS elevaria a produtividade da economia pelo simples fato de que diminuiria tempo e gastos despendidos por empresas com tributação (redução de custos com contadores, advogados tributaristas etc.). Appy, defensor da proposta há mais de dez anos, acredita que com ela as empresas cresceriam 10% ou mais nos próximos dez a vinte anos.
Entretanto, assim como linhas de crédito estatal e emissões monetárias não fazem milagres, tampouco a diminuição de gastos com impostos garante que as empresas realizarão investimentos. Elas podem realizar ou não, a depender do “humor dos negócios” (ou seja, do momento do ciclo econômico em que se encontram). Por exemplo, uma diminuição no custo de investimento pode levar à ampliação de fundos de reserva ou a investimentos especulativos. A decisão final pelo investimento passa pela mão dos capitalistas privados, pois o Estado não dirige de fato a economia. Em suma: pode muito bem naufragar a proposta longamente defendida por Appy e os “desenvolvimentistas” brasileiros (Alckmin à frente deles).
Primeiro erro da “esquerda socialista”: “os trabalhadores são os que mais pagam impostos”
O centro do regime tributário moderno são os impostos sobre consumo. Por exemplo, dos cerca de R$ 1,9 trilhões arrecadados no último ano no Brasil, R$ 1,3 trilhões provêm dos impostos sobre consumo. Diferentemente do que argumenta a chamada “esquerda socialista”, esse tipo de imposto não é pago pela “população em geral”, nem pago “em sua maior parte pela classe trabalhadora”. Esses impostos são pagos pela classe capitalista. É um equívoco – equivalente a sucumbir ao fetiche da mercadoria – considerar que quem compra uma mercadoria é também quem paga pela parte do valor dela destinada ao Estado na forma de imposto. Como ensina Marx no capítulo I de O Capital, na relação polar mercantil, relação de expressão de valor, é o valor da mercadoria que está no polo relativo que se expressa no corpo da mercadoria que está no polo equivalente. Ou seja: o valor da mercadoria (que contém a mais-valia) é realizado por quem a vende, não por quem a compra; quem paga o imposto ao Estado é quem entra no mercado com a mercadoria em mãos, para vendê-la, não por quem entra com dinheiro para comprar. Para deixar ainda mais simples: quando vamos à padaria e pagamos um pão é parte do mais-trabalho do padeiro – expropriado pelo dono da padaria na forma de mais-valia – que é cedido ao Estado enquanto imposto.
Como ensina Marx no cap. XV de O capital (nota de rodapé sobre McCulloch), o imposto sobre consumo é uma dedução da mais-valia. Assim como o capitalista produtivo divide o valor extraído da classe trabalhadora com outras frações capitalistas improdutivas (o capitalista comercial e o usurário, por exemplo), ele também o divide com a burocracia que mantém em pé seu Estado. Em suma: o imposto sobre o consumo não é um “acréscimo” aplicado pelo Estado sobre o “preço de custo” de determinado produto. Se assim fosse, o Estado definiria preços arbitrariamente e a própria lei do valor perderia a vigência; toda a teoria econômica relevante – a de Marx, por exemplo – ruiria[1].
Para a nossa “esquerda socialista”, dado que em sua concepção “é a classe trabalhadora quem mais paga impostos”, caberia reivindicar que o Estado fosse em alguma medida “popular”, que algo do supostamente cedido no mercado “retornasse” à “sociedade”. Na realidade, a classe capitalista já é a que mais paga impostos, o Estado é plenamente burguês e os investimentos burgueses em impostos já retornam à “sociedade” (que é a sociedade capitalista, a associação de capitalistas) nos limites necessários à acumulação de capital.
O fato de que é a classe capitalista quem mais paga impostos (por exemplo, R$ 1,3 trilhões em consumo, no caso brasileiro) explica a inutilidade dos programas reformistas e pequeno-burgueses por “impostos progressivos”.
Segundo erro da “esquerda socialista”: “o problema é a bolsa banqueiro”
Em geral, na chamada “esquerda socialista”, costuma-se falar que esse tipo de política fiscal e tributária, aplicada pelos agentes políticos capitalistas, visa apenas a fortalecer o Estado para pagar a dívida pública. É a ideia de que os bancos são sanguessugas que impedem o desenvolvimento econômico[2]. Subentende-se que em última instância caberia realizar uma “frente” com capitalistas industriais e produtivos contra os “parasitas financeiros”.
Entretanto, para Marx – que era contra todo o Estado e seus gastos – é quixotesco acreditar que possa haver desenvolvimento capitalista sem um sistema de crédito robusto. O crédito é essencialmente uma alavanca capitalista, não mera parasitagem; ele próprio não se mantém se não é ampliada a atividade econômica real. Em suma: nos moldes atuais não pode haver aumento de gastos estatais (mesmo para os “serviços sociais” defendidos pela nossa “esquerda socialista”) sem um sistema de crédito que se desenvolva e se amplie; não há a ampliação dos “serviços sociais” – e nem discutimos quão necessários são eles para a ordem capitalista – sem dívida pública.
O propósito das reformas fiscal e tributária
O Estado burguês necessita de superávits e ingressos estáveis para que a moeda nacional tenha estabilidade, possa funcionar como equivalente geral e assim a própria lei do valor tenha vigência numa determinada região econômica. Situações de déficits prolongados, que levam à ampliação das dívidas públicas e diminuição de reservas internacionais tendem ao derretimento da moeda nacional, travando o conjunto do funcionamento econômico burguês. A economia Argentina, com alta inflação e grau de dolarização, por exemplo, comprova-o.
Muito mais do que uma conspiração política voltada a capitalistas improdutivos “sanguessugas”, as reformas fiscal e tributária brasileiras visam a manter o funcionamento produtivo ordinário e cotidiano – sem sobressaltos – da exploração “democrática” dos trabalhadores pelos capitalistas. Entretanto, justamente porque falta à nossa “esquerda revolucionária” uma política socialista cotidiana contra a exploração nos locais de trabalho, sobram nela discursos inflamados de gestor estatal radical e teorias conspiratórias nos momentos do calendário político burguês.
Contra a política idealista, é necessária a revolucionária!
Por tudo o que dissemos, fica claro que o debate sobre a destinação dos impostos é um problema dos capitalistas. Essa discussão é alheia aos interesses da classe trabalhadora, pois pressupõe que a exploração já foi realizada (considera a extração e realização da mais-valia post festum). Quando um novo regime fiscal e uma nova regra tributária são aprovados no parlamento burguês, dá-se apenas uma negociação entre setores da burguesia para definir como e quanto da mais-valia global será concedida às suas necessidades comuns/burguesas. A classe trabalhadora não tem poder de decisão algum nos rumos dessa política, pois é uma luta que já pressupõe a sua derrota. Seu poder real está em impedir que o mais-trabalho (trabalho excedente) seja ampliado ou no limite extraído enquanto mais-valia. Isso só é possível por meio de uma luta que se dá no local de trabalho, muito longe dos parlamentos.
Contra a política idealista dos parlamentos, cabe à classe trabalhadora antepor a política imanente, a que emana dos locais de trabalho. Contra o programa reformista e pequeno-burguês de gestão radical do Estado, é necessário retomar o programa de transição ao socialismo, que parte da resistência à exploração capitalista nos locais de trabalho. Contra todo arrocho salarial, é necessário defender o reajuste mensal dos salários, de acordo com a inflação básica! Contra toda demissão, é necessária a divisão das horas de trabalho, sem diminuição dos salários! É necessário organizar a classe trabalhadora, de baixo para cima, nos locais de trabalho, com o programa revolucionário!
[1] Em sentido contrário ao que ensinava Marx, afirma o PSTU em seu site: “O fato é que a Reforma Tributária vai aumentar ainda mais os impostos sobre a classe trabalhadora, os mais pobres e a classe média, aliviando para os ricos, que já pagam muito pouco, quando pagam. […] Quando compramos um celular, um pão na padaria ou colocamos gasolina na moto, também pagamos tributos, como, por exemplo, o Imposto sobre Circulação de Mercadoria (ICMS), que é arrecadado pelo governo de cada estado. […] São dados como estes que nos permitem afirmar que são os trabalhadores e trabalhadoras quem pagam a grande maioria dos impostos.” [Ver em: <https://www.pstu.org.br/com-a-reforma-tributaria-trabalhadores-e-a-maioria-da-populacao-vao-pagar-mais/>]
[2] Eis por exemplo o que afirma o PSTU em seu site: “[O arcabouço] reafirma como prioridade absoluta o pagamento da dívida aos banqueiros, através da busca do superávit primário […] em detrimento dos investimentos públicos […]. É uma pá de cal em qualquer expectativa de aumento real em serviços públicos, programas sociais como o Bolsa Família, aumento do salário mínimo e aposentadorias, tudo para garantir o superávit primário e o pagamento da dívida aos banqueiros.” (ver em <https://www.pstu.org.br/arcabouco-fiscal-e-neoliberal-e-privilegia-banqueiros>). Noutro texto, o PSTU expressa sua ilusão em que o Estado possa ser usado pelos trabalhadores e contrapõe ao “arcabouço fiscal” um “arcabouço social”: “A classe trabalhadora não precisa de mais um teto de gastos para manter esse mecanismo de roubo e transferência de riquezas aos banqueiros que é a mal chamada dívida pública. Nem da entrega de nossas riquezas através da desnacionalização das estatais […]. Defendemos um plano dos trabalhadores, um arcabouço social, e não um plano dos banqueiros, como esse apresentado pelo governo e aprovado no Congresso.” (O texto completo pode ser conferido aqui: https://www.pstu.org.br/editorial-arcabouco-fiscal-nao-deixa-pobre-entrar-no-orcamento-para-pagar-divida-a-banqueiro/)