O texto abaixo foi redigido para publicação no jornal argentino El Aromo, dos companheiros da organização Razón y Revolución.
Diferentemente do que fala a maior parte da “esquerda” brasileira, o governo de Bolsonaro não é nem fascista nem mais autoritário do que os anteriores. Trata-se apenas de mais um governo burguês do atual (e falido) regime democrático, talvez o mais frágil deles. Portanto, mais do que um avanço da burguesia, Bolsonaro representa sua paralisia, sua falta de caminho, sua confusão e sua impotência frente ao proletariado.
Bolsonaro e seu grupo de patetas são um epifenômeno da história; não podem nem devem ser explicados em si mesmos, mas a partir de outro fenômeno, muito mais importante: a queda do PT.
A queda do PT foi produzida pelo conflito objetivo entre a burguesia e o proletariado no Brasil, ou seja, pela boa e velha disputa pela mais-valia. O que gerou a queda de um partido tão grande como o PT — eixo de sustentação da burguesia brasileira por tantos anos — foi justamente o grau de exploração tão grande que ele impôs à classe trabalhadora brasileira.
Para se compreender isso, temos de fazer um pequeno interlúdio teórico. É necessário, como sempre, compreender um pouco do funcionamento da economia capitalista em geral, conforme ensinado por Marx. Uma determinada economia nacional — como também, em última instância, a economia do globo todo — é regulada por algumas leis muito bem definidas, que desenham o chamado “ciclo econômico”. A lei mais geral e abstrata que dá o desenho desse ciclo é a chamada “lei da queda tendencial da taxa de lucro”, que impõe aos capitais individuais, pela própria necessidade da concorrência, o avanço tecnológico e o aumento da taxa de acumulação. Ainda que essa lei se expresse numa diminuição relativa do montante de força de trabalho (em relação ao capital total de uma empresa), ela implica, ao mesmo tempo, uma ampliação dessa mesma força de trabalho em números absolutos. Tal crescimento em termos absolutos da força de trabalho empregada reduz temporariamente o desemprego e impõe — via oferta e demanda — uma ampliação dos salários. A tal grau que mina a própria taxa de acumulação. Assim, a lei da queda da taxa de lucro, por um lado, dá o desenho geral ascendente (acumulação) do ciclo econômico. Por outro lado, a diminuição do desemprego e o aumento dos salários dão o ponto em que essa acumulação paralisa, antecedendo o estouro da crise. Acumulação, paralisia, crise, nova acumulação etc. —> eis o ciclo. Não há conformação de ciclo que não tenha a ver, portanto, necessariamente, com luta de classes, ainda que numa forma muito abstrata, “econômica”, objetiva, sem ação política propriamente independente e consciente do proletariado.
Em geral, a classe trabalhadora sai às ruas sempre que a acumulação paralisa, ou seja, no ponto mais alto do ciclo, quando se anuncia o estouro da crise (demissões e rebaixamento salarial). Ou seja, ela luta antes de a burguesia transferir sua crise de acumulação às suas costas. Em meio à paralisia do ciclo, pressentindo a queda futura, a classe trabalhadora luta para manter suas condições de vida. Após isso, quando reina já o desemprego, a fragmentação, a desmoralização e o melindre nas massas, as condições de luta são muito mais difíceis. Esse elemento é muito importante pois evidencia o caráter possivelmente revolucionário contido numa luta meramente conservadora (ou seja, pela conservação ou manutenção das condições de vida antes de um estouro de crise). [1]
Pode-se ver tudo isso perfeitamente no período dos governos do PT. O controle que o PT impôs ao proletariado brasileiro — com seus poderosos sindicatos, fortalecidos ainda mais pela vinculação direta com o Estado — expressou-se numa ampliação jamais vista da taxa de acumulação da burguesia. Tal acumulação, na realidade, só pode ser comparada à do período chamado, na história recente brasileira, de “milagre econômico” (entre 1969-1973, época de maior repressão do regime militar brasileiro). Já no caso do PT, como falamos, isso se deveu à maior submissão dos principais sindicatos ao Estado burguês.
Quanto à acumulação, deve-se analisar a “produtividade” do trabalhador brasileiro. “Produtividade” é apenas outro nome para aumento do grau de exploração (taxa de mais-valia), ou, o que dá no mesmo, concentração cada vez maior em capital constante, de um lado, e cada vez menor em capital variável, de outro. Como não é possível medir a exploração propriamente em valor, mas somente em sua forma fetichizada (preço), temos de trabalhar com dados da própria burguesia, a respeito da relação entre PIB e população (PIB per cápita). Os dados do próprio FMI são reveladores a respeito do aumento do grau de exploração sob os anos do PT. Veja-se, por exemplo, o gráfico abaixo:
Essa incrível acumulação, como falamos, só foi possível graças ao controle social único que o PT impôs ao proletariado, sobretudo fabril. Nenhum outro partido burguês foi capaz de fazer esse tipo de controle sobre a estrutura fundamental da política (e eis por que o PT foi o mais importante partido burguês do regime atual). Tal acumulação atinge seu ápice em 2011 e, em seguida, patina, entre 2012 e 2013, mantendo-se em “ponto-morto”, com capitais rotando em torno do mesmo valor, antes do estouro da crise (2014 – 2015).
Todo esse processo de acumulação levou a uma queda geral no desemprego, conforme gráfico abaixo:
No período, como sabemos (e como estamparam todos os jornais), Dilma e o PT comemoraram ingenuamente um “Pleno Emprego” no Brasil. A alegria durou pouco. O nível elevado de contratação, como sói acontecer, resultou numa ampliação dos salários, o que paralisou de vez a taxa de acumulação e fez estourar a crise. Veja-se, a respeito dos salários, o gráfico a seguir:
Vale frisar que a diminuição no desemprego e o aumento no salário não têm absolutamente nada a ver com boa vontade do PT em melhorar a vida das massas; são somente características normais de um ciclo econômico (impulsionado, é claro, pelas capacidades únicas do PT no controle do proletariado).
Frente à maior taxa de acumulação de capital e maior grau de exploração dos operários na história brasileira recente, a resposta do proletariado não poderia ser pequena – revelou-se nas maiores passeatas na história (junho de 2013), com milhões de pessoas nas ruas, cercamento de palácios de governo, defecções nas polícias etc. Sem partido revolucionário — e com a maioria da esquerda sendo expulsa das ruas, por se assemelhar ao PT —, tais manifestações não ultrapassaram seu caráter espontâneo e não foram a lugar algum. A burguesia, passada a onda das manifestações, ou seja, a partir de meados de 2014, começou a transferir sua crise para as costas do proletariado, com demissões em massa e redução salarial – a maior crise econômica na história brasileira desde 1929.
Todavia, a fratura social criada em junho de 2013, que condenou o PT historicamente, não foi recosturada. Veja-se o gráfico abaixo, a respeito da popularidade de Dilma:
Dilma, Lula e o PT passaram a ser (corretamente) associados, pela maioria do proletariado urbano brasileiro, à pior crise econômica da história. Para retomar a taxa de acumulação da economia brasileira, além dos próprios mecanismos “naturais” da economia capitalista (demissões, fortalecimento do exército de reserva para pressionar os ativos), era necessário consolidar ou legitimar politicamente um grau novo, superior, de exploração da força de trabalho brasileira. Para esse propósito, Dilma e o PT planejaram duas reformas fundamentais: a trabalhista e a previdenciária. A primeira visava a reduzir significativamente direitos trabalhistas, permitindo a ampliação de horas de trabalho, a terceirização, formas de trabalho precárias etc. A segunda visava a pressionar o trabalhador para ficar mais tempo na dependência do mercado de trabalho (ampliando a concorrência entre trabalhadores), para resultar em queda salarial.
Para aplicar tais medidas, Dilma sondou primeiro Paulo Guedes (atual Ministro da Economia de Bolsonaro), depois, a pedido de Lula, Henrique Meirelles (Ministro da Economia de Temer), mas terminou por convidar o chicago-boy Joaquim Levy (amigo de Guedes, e que hoje ocupa cargo de destaque no governo Bolsonaro). Desde então — desde o início de 2015, quando reeleita Dilma —, a política brasileira gira em torno da necessidade de aprovação desses dois pacotes burgueses, sem os quais o grau de acumulação capitalista parece não poder ser reestabelecido o suficiente (para a burguesia). Há três anos, portanto, a burguesia brasileira está praticamente paralisada politicamente, sem conseguir avançar muito, conquistando terrenos vagarosamente, mais graças à sorte do que à estabilidade na dominação política.
Temer logrou aprovar a reforma trabalhista por dois motivos: primeiro, porque a população brasileira deu uma trégua com a política burguesa após derrubar Dilma. Era uma pequena lua-de-mel com Temer. A burguesia era consciente dessa possibilidade, como revelam áudios dos grandes PMDBistas da época (que revelavam algo como: “tiremos Dilma e as massas se acalmam, a gente se salva, salva o Lula e salva todo o mundo”). Como Dilma era o foco, como Temer era um desconhecido, e como não havia partido de esquerda para conduzir a revolta, tudo se acalmou momentaneamente. Assim, Temer conseguiu, com margem pequena, aprovar a reforma trabalhista. Além disso, foi fundamental o papel traidor da CUT e demais centrais sindicais, que se negaram a chamar paralisações e greves maiores contra Temer, sobretudo quando este esteve por um fio, (frente ao escândalo de corrupção envolvendo a JBS). O PT não queria derrubar Temer, pois queria que este aprovasse as reformas antes de Lula possivelmente voltar, na eleição de 2018.
Mas Temer, envolvido em corrupção e odiado em seguida pela maioria da população, evidentemente, não conseguiu aprovar a segunda reforma — a da previdência. Esse papel coube (e cabe agora) a Bolsonaro, o novo presidente burguês de plantão.
Com Bolsonaro dá-se então algo parecido com o que houve com Temer. Bolsonaro foi eleito por ser o único capaz de aparecer como “anti-PT”. Nos anos que se seguiram a 2013, nenhuma alternativa de esquerda ao PT foi criada. A “esquerda” brasileira — que, no máximo, é centrista — não teve coragem de se colocar contra o PT; não teve coragem de defender a queda de Dilma ou, depois, a prisão de Lula. Na melhor das hipóteses, lavou as mãos, como o PSTU brasileiro. Isso deixou um vazio político, no qual se instalaram e cresceram com grande facilidade grupos ditos de “direita”, absolutamente incompetentes e estúpidos. Curiosamente, tais grupos, formados às vezes por adolescentes, apareciam como mais coerentes do que a “esquerda”; logravam calar os representantes desta em qualquer simples debate. Assim criou-se a base que desaguou em Bolsonaro.
A maioria da população brasileira não concorda com as posições pessoais lunáticas e violentas de Bolsonaro (autoritarismo, machismo, homofobia, armamento etc.). Ainda assim, ele apareceu, ao final de todo o processo, como o “mal-menor”, o único capaz de derrotar o PT. Era comum, inclusive, ouvir entre a população trabalhadora algo mais ou menos assim: “se Bolsonaro começar com suas maluquices, nós também o tiramos do poder, como fizemos com Dilma”. A queda de Dilma, curiosamente, legitimou entre as massas certa lógica – ainda que muito incipiente e com muitas aspas – “proto-soviética”, que implica em tirar representantes que não atendam à vontade popular.
A lua-de-mel popular atual com Bolsonaro deve durar pouco. Os casos de corrupção já se alastram (seus filhos, seus ministros, dirigentes de seu partido etc.) e a burguesia já começa a desconfiar se Bolsonaro terá capacidade de aprovar a reforma da previdência (ou mesmo de manter-se no governo). Apenas 45 dias de governo se passaram e é como uma eternidade. Como revelam todos os analistas burgueses, não houve governo inicialmente tão débil no regime democrático-burguês. E agora ele tem de implementar a odiada medida da reforma da previdência, a mesma (com minúsculas diferenças) apresentada por Dilma. Do contrário, condenará seu governo diante do capital.
O discurso violento de Bolsonaro, seus ataques ao “marxismo”, ao comunismo e ao socialismo inexistentes, seu obscurantismo, sua propalação de ódio, são apenas formas em que aparece o desespero e o medo da burguesia, paralisada e em crise de dominação desde 2013. Tais características de Bolsonaro são, portanto, uma figuração nua e crua da mediocridade burguesa. A burguesia está a nu, em toda a sua vulgaridade, observada pelo gigantesco proletariado brasileiro por todos os lados. Consciente da sua fragilidade, ela desespera-se. Bolsonaro é o último fio de sustentação do falido regime democrático-burguês, cujo fiel da balança sempre foi o PT (desde os anos 1980) por controlar o proletariado na verdadeira política (ou seja, não no teatrão do parlamento, mas na disputa pela mais-valia no chão de fábrica). A burguesia não sabe o que fazer, nem para onde ir, pois não é capaz de inventar um novo regime dominação do nada. Eis por que militares começam cada vez mais a ocupar postos no governo: todo o sistema político ruiu. Todavia, assim, também os militares, associando-se a este regime falido e a seus partidos corruptos, preparam sua desmoralização histórica. Não há claque militar que resolva a gigantesca crise política e social por que atravessa o Brasil.
Bolsonaro e seus vigaristas em pouco tempo serão odiados pela nação, não apenas por casos de corrupção, mas também por suas propostas (como a reforma da previdência), que a cada dia fazem com que se assemelhem mais ao PT. Assim, todo o discurso desesperado da burguesia (pela voz de Bolsonaro) contra o “comunismo”, o “socialismo” e o “marxismo” terminará por gerar o efeito contrário. Em pouco tempo, a maioria da população — sobretudo as novas gerações — se questionará: “se esse sujeito estúpido combate tanto esse tal de ‘comunismo’, será que esse negócio não é bom?”. A queda histórica do PT — da qual Bolsonaro é só uma face — produzirá a reorganização revolucionária do proletariado sob a bandeira do marxismo, bloqueada desde a década de 1980.
Nota:
1. A respeito da conformação cíclica do desenho da crise, ver DILLENBURG, F., “A dialética da crise econômica nas seções II e III do livro III d’O Capital de Marx”, in Revista Opinião Filosófica, 2017, in <http://periodico.abavaresco.com.br/index.php/opiniaofilosofica/article/view/803>