Transição Socialista

De onde vem a tese de um governo fascista de Bolsonaro?

Desde a campanha eleitoral de 2018, quando Jair Bolsonaro derrotou Fernando Haddad, ganhou força entre as diversas organizações de esquerda do país a opinião de que a “democracia havia dado lugar ao fascismo”, ou de que “a ditadura militar de 1964 retornava”. Na imprensa e até mesmo na academia, não é difícil ouvir falar de uma “escalada autoritária e golpista” do atual presidente e da sua corja miliciana. Diante do quadro de corrupção desenfreada, de descaso com as mortes pela COVID-19 e de silenciosos ataques aos trabalhadores brasileiros, inúmeros revolucionários honestos se levantaram para combater o bolsonarismo sob a bandeira “antifascista”.

Para nós da Transição Socialista, porém, a caracterização do atual governo como um regime autoritário ou até mesmo fascista é equivocada. Mais que isso, trata-se de uma confusão criada de maneira oportunista com fins eleitoreiros. Essa afirmação tem em vista que os principais enunciadores da tese do “fascismo brasileiro” foram e são até hoje o PT e seus satélites (PC do B, PCO, PSB, correntes majoritárias do PSOL). Tudo para justificar qualquer aliança espúria que esse partido possa fazer com os demais representantes da burguesia (como é o caso da chapa Lula-Alckmin). Abre margem, também, para a subordinação ao petismo de setores da vanguarda considerada socialista, rendendo votos a Lula sob a pretensa “defesa da democracia contra o autoritarismo neofascista de Bolsonaro”. Finalmente, esse engano consciente tem por objetivo mascarar o papel traidor do PT perante a classe trabalhadora no Brasil. Papel cumprido com exuberância quando o partido, por meio de suas centrais sindicais, omitiu-se de apoiar e dar prosseguimento às mobilizações contra as reformas trabalhista (ainda sob Michel Temer) e da previdência nas ruas e nos locais de trabalho. Não custa nada relembrar, por outro lado, que o PT deliberadamente esvaziou as manifestações pelo impeachment de Bolsonaro. Transformou os atos em palanques eleitorais para Lula e seus apadrinhados políticos (como Guilherme Boulos) e prestou-se apenas a entregar cartas protocolares no Parlamento pedindo timidamente o afastamento do presidente. O pretenso combate “antifascista”, “contra o autoritarismo”, na realidade, nada mais é do que uma luta pelo voto a qualquer custo, pela chance de reassumir o poder executivo, ter acesso direto ao Tesouro Nacional e gerir os negócios dos capitalistas mais uma vez.

Caracterizar de modo preciso o regime pelo qual a dominação burguesa é exercida na prática não é tarefa baseada em pedantismo intelectual. Na realidade, é uma maneira de melhor estudar a classe inimiga, definindo as formas concretas dos combates que os trabalhadores deverão travar na luta pela sua emancipação, estabelecendo as articulações e as táticas corretas que a vanguarda socialista precisará levar a cabo. É por isso que a TS publica aqui mais um texto discutindo os dois principais regimes capitalistas autoritários, bonapartismo e fascismo.[1]

Após essa introdução, haverá uma seção para explicar a natureza e o conteúdo político do bonapartismo, exemplificando na História suas manifestações. O mesmo será feito para o fascismo. Uma terceira parte servirá para resumir as diferenças entre a democracia burguesa e os regimes autoritários. Finalmente, reservaremos espaço para uma discussão sobre o caráter do governo Bolsonaro.

O BONAPARTISMO

Esse nome faz referência a Luís Bonaparte (sobrinho de Napoleão), que foi presidente da França de 1848 até dezembro de 1851, quando deu um golpe de Estado, instaurando uma ditadura militar que durou 20 anos. Trataremos com mais detalhe do caso clássico após uma breve discussão conceitual sobre o que é um regime bonapartista.[2]

O bonapartismo tem como característica principal a centralização política em torno do chefe do Poder Executivo do Estado. Utilizando-se do exército oficial, das Forças Armadas, ele engole as demais instâncias institucionais (em especial o Poder Legislativo). Além disso, o ditador aparece como um líder que se coloca acima das classes sociais e, portanto, das contradições reais do seu tempo. Em tempo: ele aparece, ele manifesta-se enquanto tal, mas na realidade usa da força bruta para defender os interesses materiais dos capitalistas.[3] É a proteção da sagrada propriedade privada dos meios de produção que faz o patrão recusar uma democracia burguesa (na qual os diversos setores do capital podem dominar com mais harmonia) e preferir uma ditadura militar bonapartista.

Algo dessa natureza não pode ocorrer dentro de um regime democrático-burguês sólido. Não acontece do dia para a noite, como um raio vindo de céu azul. O bonapartismo precisa ser explicado a partir de um recrudescimento dos conflitos entre trabalhadores e capitalistas a tal ponto que a dominação destes fica realmente ameaçada. A tal ponto que as diversas frações patronais (industriais, banqueiros, latifundiários, grandes comerciantes) não conseguem mais governar como antes. É quando o Legislativo (grande balcão de negócios da burguesia nos “tempos de paz”) já não é capaz de preservar e garantir que o patrão explore tranquilamente o proletário, extraindo deste o seu lucro. É aí que as Forças Armadas e o Poder Executivo entram em cena para rearranjar o jogo político. O Parlamento é fechado, opositores são censurados e cassados, diversos partidos são colocados na ilegalidade. O que está no fundo de tudo isso, por sua vez, é a repressão violenta e centralizada contra os órgãos dos trabalhadores: sindicatos, imprensa e partidos operários. É o custo com o qual a burguesia, mesmo asfixiada por uma ditadura, paga para retornar a uma condição segura de seu domínio. Pela sua propriedade, pelo seu lucro, ela abdica da sua democracia. É uma medida drástica para uma conjuntura igualmente drástica. Como diz Leon Trotsky:

Logo que a luta entre dois campos sociais – os possuidores e os proletários, os exploradores e os explorados – atinge a mais alta tensão, estabelecem-se as condições para a dominação da burocracia, da polícia e dos militares. O governo torna-se “independente” da sociedade. Recordemos mais uma vez o seguinte: se espetarmos, simetricamente, dois garfos numa rolha, esta pode ficar de pé, mesmo sobre uma cabeça de alfinete. Este é, precisamente, o esquema do bonapartismo. Naturalmente, um tal governo não deixa de ser, por isso, o serviçal dos possuidores. Mas o serviçal está sentado sobre as costas do patrão, machuca-lhe a nuca e não faz cerimônias para esfregar-lhe, se for necessário, a bota na cara.[4]

O caso clássico do bonapartismo tem sua origem nas jornadas de 1848 a partir da revolução ocorrida em fevereiro daquele ano e que provocou a queda da Monarquia de 1830, chefiada por Luís Filipe I, o qual tinha nos banqueiros seu eixo de sustentação. O processo contou com a participação conjunta da burguesia industrial e comercial, da pequena-burguesia (os pequenos proprietários, comerciantes menores) e da classe trabalhadora na linha de frente da mobilização. Da deposição do monarca, surgiu um governo provisório responsável por redigir uma nova carta constitucional e dar início à Segunda República.

Não demoraram muitas semanas para que esse novo regime mostrasse suas verdadeiras intenções ao proletariado. A Assembleia Constituinte que se formou após fevereiro buscava estabelecer as condições para um domínio conjunto das diversas frações dos capitalistas, inclusive dos financistas! Os trabalhadores, que foram bucha de canhão dos patrões em fevereiro, cobrariam por essa traição e organizariam sua revolta novamente em junho daquele ano. Dessa vez, ameaçavam não um ou outro tipo de governo, mas a ordem burguesa como um todo. Passaram a questionar de modo prático a propriedade privada dos meios de produção. Ficava estabelecida de maneira clara a contradição entre capital e trabalho.[5]

O resultado imediato desse levante foi uma violenta repressão. Desmoralizados, esgotados e com suas lideranças presas e deportadas, os trabalhadores não tinham forças ali para dar prosseguimento à explosão revolucionária do primeiro semestre de 1848. Algo considerável ocorria, porém, no andar de cima, no interior da burguesia. Os capitalistas dos diversos setores não conseguiam estabelecer condições para um domínio sólido. Seus representantes legislativos, em desarmonia com o Poder Executivo, não eram capazes de preservar a estabilidade dos negócios. As tormentas de fevereiro e de junho bagunçaram as instituições na França. Foi dado um “voto de desconfiança” ao Parlamento e à recém escrita Constituição. A crise de dominação da burguesia chegou a um quadro tão agudo que apontava para uma saída amarga e dolorosa: o estabelecimento de uma ditadura policial e militar capaz de preservar a ordem, a propriedade e o lucro. Luís Bonaparte, eleito presidente no fim de 1848, aplica um golpe de Estado em dezembro de 1851. Karl Marx, acompanhando de perto e analisando em detalhes a convulsão social francesa, observou:

Imaginemos agora como, no meio desse pânico comercial, o cérebro do burguês francês, já abalado pelo comércio, é torturado, azoado, atordoado por rumores sobre golpes de Estado e sobre a reintrodução do sufrágio universal, sobre o embate entre Parlamento e Poder Executivo, sobre a guerra frondista dos orleanistas [partidários da Monarquia de Luís Filipe] e legitimistas [partidários da Família Real francesa deposta pela Revolução de 1789], sobre supostas jacqueries [levantes camponeses] nos départements de Nièvre e Cher, sobre as propagandas dos diferentes candidatos à presidência, sobre as manchetes espalhafatosas dos jornais, sobre as ameaças dos republicanos propondo-se a defender a Constituição e o sufrágio universal de armas na mão, sobre as boas-novas da parte dos heróis emigrados in partibus [no exterior], que anunciavam o fim do mundo para o segundo [domingo do mês] de maio de 1852. Em vista disso, é muito compreensível que, em meio a essa indescritível e ruidosa confusão de fusão, revisão, prorrogação, Constituição, conspiração, coalizão, emigração, usurpação e revolução, o burguês tenha esbravejado furioso na direção da sua república parlamentar: “Antes um fim com terror do que um terror sem fim!”[6]

Se o preço a pagar pela segurança e proteção da propriedade privada e do lucro era o fim da República democrática e a aceitação de uma ditadura militar, que assim fosse! A burguesia rejeitava seus típicos representantes parlamentares em benefício do aventureiro Luís Bonaparte, na esperança de que o exército e a polícia colocassem a ordem capitalista nos trilhos novamente.

Além do Exército e das polícias, Bonaparte contou com o apoio de duas outras camadas sociais. Em primeiro lugar, os lumpen-proletários, parcelas marginalizadas da classe trabalhadora, miseráveis. Aceitaram compor um exército particular de Bonaparte (a Sociedade 10 de dezembro) mediante subornos, regalias e concessões. Além desses, os camponeses (a maioria da população francesa à época) também foram sólida base de apoio popular ao sobrinho de Napoleão. Incapazes de constituírem-se numa organização política classista e independente, os pequenos proprietários de terra, arruinados pelas hipotecas, pelos juros altos do crédito bancário e pela crise comercial avassaladora que abateu a França entre 1840 e 1850, viam em Bonaparte uma figura “salvadora”. Era o herói que combateria sua ruína paulatina (criada pelo próprio desenvolvimento do capitalismo no país) e que, por isso, deveria merecer o apoio desse setor.

O bonapartismo não se resume ao caso descrito acima. O século XX contou com algumas experiências desse tipo, inclusive no Brasil durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 – 1945).

Se o que há em comum entre a forma varguista e a forma clássica do bonapartismo é a força desproporcional do Poder Executivo frente aos demais poderes e a violência militar e policial, também há algo de diferente. No Brasil, Vargas contou com o papel decisivo da burocracia sindical, uma camada de trabalhadores mais bem remunerados, ganhando regalias e cargos nas instâncias estatais. Sua função era a de controlar e bloquear as mobilizações de base do proletariado em luta pelas suas condições de vida. Assim, esses legítimos pelegos faziam (e fazem até hoje) um trabalho de contenção na base, ajudando o regime a cumprir seu objetivo: preservar a ordem capitalista “na marra”, na força bruta.

Os trabalhadores de vanguarda, os militantes de esquerda e os partidos comunistas e socialistas que tentassem escapar das redes sindicais e policiais logo se defrontariam com censuras, prisões, torturas, deportações e, no limite, assassinatos. Não é demais lembrar do caso emblemático de Olga Benário, companheira de Luís Carlos Prestes (dirigente do PCB), que foi deportada pelo regime para campos de concentração na Alemanha de Hitler. Lá ela foi assassinada.

O FASCISMO

A História do capitalismo nos reservaria uma experiência ainda mais trágica do que as ditaduras bonapartistas: o fascismo. Antes de apresentarmos os dois principais exemplos (Mussolini na Itália e Hitler na Alemanha), colocaremos algumas noções conceituais sobre essa forma de expressão política da burguesia.

Assim como o bonapartismo, os governos fascistas também se baseiam na força desproporcional do Poder Executivo frente aos demais e na brutalidade da repressão política como meio de preservar a propriedade privada. Existem, porém, diferenças qualitativas que não nos permitem colocar um sinal de igualdade entre esses dois regimes.

O fascismo nasce no momento em que as lutas de classes ganham contornos revolucionários irreversíveis. É quando a ordem, a propriedade privada e o lucro são ameaçados não somente por uma revolta de massas violenta, mas por uma força proletária muito mais orgânica e sólida, constituída a partir dos locais de trabalho. O poder burguês é confrontando por comitês de fábrica e, no limite, por conselhos de trabalhadores (que na Rússia eram chamados de sovietes na época da revolução de 1917). Essa dualidade de poderes, que ainda não existe nos dias que precedem uma ditadura bonapartista, coloca um ponto de não-retorno. Os trabalhadores derrubarão o Estado Burguês em direção à construção de uma economia socialista ou os capitalistas reformularão completamente suas instituições por meio da brutalidade e do sangue para garantir sua própria existência enquanto classe.

Esse quadro grave e incontornável exige que a burguesia abandone seus métodos usuais de contenção da revolta dos explorados. As leis vigentes já não servem, o Parlamento é impotente e o exército oficial não basta para segurar o ódio de classe que se organiza politicamente. Ao mesmo tempo, censurar, prender e deportar opositores também não resolve a difícil equação. O fascismo, portanto, é o recurso final dos patrões na luta pela preservação do lucro e da propriedade. É necessário, em primeiro lugar, aniquilar fisicamente, destruir, exterminar toda e qualquer oposição, principalmente a vanguarda operária, os partidos de esquerda e os núcleos revolucionários. Ressaltemos, por outro lado, que nem mesmo os social-democratas reformistas e os liberais escapam desse processo. A condição de existência do fascismo é a destruição das oposições, do parlamento e inclusive dos organismos burgueses tradicionais.

Nesse sentido, a quantidade da violência num regime fascista, muito maior do que numa ditadura bonapartista, faz com ela seja de qualidade diferente. Para evitar que a dualidade de poderes se resolva pela vitória da revolução, é necessário que bandos paramilitares destruam sindicatos, comitês de fábrica, partidos operários. E qual a composição de classe de tais bandos? São formados, principalmente, por pequeno-burgueses arruinados pela crise capitalista, falidos e engolidos pela grande burguesia financeira e industrial. Ao mesmo tempo, assustados pelo ascenso revolucionário dos trabalhadores, correm para as armas e se organizam politicamente para um combate sangrento contra os explorados. Na Itália, havia os camisas negras de Mussolini, responsáveis pelo estabelecimento do regime e depois convertidos em exército oficial. Na Alemanha, os bandos hitleristas estruturavam-se em torno da SA, a qual deu lugar à SS.

Trotsky, que já citamos aqui algumas páginas acima, observou com bastante clareza o desenvolvimento dos regimes fascistas na virada da década de 1920 para a de 1930. Reservamos um espaço para seu comentário sobre a natureza dessa forma de dominação da burguesia:

A hora do regime fascista chega no momento em que os meios militares-policiais “normais” da ditadura burguesa, com a sua capa parlamentar, se tornam insuficientes para manter a sociedade em equilíbrio. Por meio da agência fascista, a burguesia põe em movimento as massas da pequena-burguesia enfurecida, os bandos de desclassados, os “lumpen-proletários” desmoralizados, todas essas inumeráveis existências humanas que o próprio capital financeiro levou ao desespero e à fúria […]. A fascistização do Estado significa não apenas mussolinizar as formas e os processos de direção – neste domínio as mudanças desempenham, no final das contas, um papel secundário – mas, antes de tudo e sobretudo, destruir as organizações operárias, reduzir o proletariado a um estado amorfo, criar um sistema de organismos que penetre profundamente nas massas e esteja destinado a impedir a cristalização independente do proletariado. É precisamente nisto que consiste a essência do regime fascista.[7]

A Itália do início da década de 1920 estava arruinada pela Primeira Guerra Mundial. O grau de miséria no qual se encontravam os trabalhadores preparava um conflito classista de grandes proporções. Entre 1919 e 1920, inúmeras greves assolaram o país: 3544 na indústria, 397 na agricultura. Por trás disso, o Partido Socialista Italiano (PSI) crescia e se fortalecia enquanto principal organização do movimento proletário.

Essa fase de grandes conturbações sociais trouxe um elemento político novo na cena italiana: os comitês de fábrica. Tratava-se da superação dos organismos sindicais corriqueiros. Com os comitês, as greves organizavam-se em ritmo e proporção muito maiores, com maior número de integrantes. Além disso, eram instrumentos que permitiam a ocupação do local de trabalho pelos funcionários. A Cofindustria, sindicato dos patrões da indústria, chegou a ordenar que as fábricas fossem fechadas para que os trabalhadores não as ocupassem. Sem efeito. As ocupações continuaram e se alastraram pelo país.

O núcleo do capitalismo havia sido atacado. A unidade produtora de mercadorias, onde o lucro é gerado, passava a ser disputada entre capitalistas e trabalhadores, com interesses totalmente opostos. O quadro era irreversível: ou a vitória revolucionária ou a barbárie capitalista numa nova forma. As direções do movimento operário, porém, não deram consequência a esse salto qualitativo, não prosseguiram com a dualidade de poderes até o ponto em que se criam as condições imediatas para a destruição da máquina estatal burguesa.

Nesse momento de paralisia, os patrões encontram nos camisas negras a sua salvação. Uma das principais greves de 1920 na Itália, realizada na Alfa-Romeo, foi quebrada com sangue por esse bando paramilitar de pequeno-burgueses arruinados. Era a última carta no baralho da burguesia. O resultado foi a Marcha sobre Roma em 1922, ato simbólico que representou a ascensão de Benito Mussolini ao poder na Itália. Sua ditadura só chegaria ao fim no término da Segunda Guerra Mundial em 1945.[8]

A Alemanha do pós-Primeira Guerra Mundial também foi palco de profundas perturbações sociais. A hiperinflação do início dos anos de 1920 destruiu o poder de compra dos trabalhadores e jogou no fundo do poço seus níveis de vida. A economia do país ainda sofreu um duro golpe com a quebra da Bolsa de Nova York e o estouro da crise de 1929, criando uma massa de desempregados e de miseráveis. Era o pano de fundo para o estouro de grandes contradições e de conflitos de classes.

Já no biênio 1918-1919 houve uma tentativa de construir um processo revolucionário do proletariado, num levante liderado pelos “spartaquistas”, dissidentes do Partido Social-Democrata Alemão que tinham Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo como principais dirigentes. Ambos foram assassinados por matadores de aluguel a mando da social-democracia, que paralisou completamente a mobilização. Poucos anos depois, em 1923, outro processo revolucionário abria-se, numa nova chance para a classe trabalhadora tomar de assalto o Estado Burguês e derrubar a ordem capitalista. A postura vacilante da Internacional Comunista, já em vias de burocratizar-se internamente, impediu uma vitória da revolução na Alemanha.

Hiperinflação, crise econômica, desemprego, levantes revolucionários organizados. A Alemanha da década de 1920 era tudo menos tranquila para sua burguesia. A República de Weimar, constituída ao final da Primeira Guerra, era vista com desconfiança pelos patrões. A propriedade privada já havia sido ameaçada, a estabilidade dos negócios era impossível ainda mais depois da crise de 1929. O Parlamento estava desmoralizado e as instituições caminhavam para a falência. Nem mesmo governos semi-bonapartistas e bonapartistas estabelecidos na virada da década (Brüning e Franz von Papen) conseguiram segurar as contradições e aliviar o medo do capitalista.[9]

No meio de todas essas perturbações, dessa crise de dominação da burguesia em proporções inéditas, uma pequena-burguesia arruinada organizava-se política e militarmente em torno do Partido Nazista. A primeira aparição contundente do bando de Hitler foi ainda em 1923, na tentativa de derrubar o governo da Baviera, o Putsch de Munique. Por mais que as lideranças tenham sido presas, a força dos fascistas alemães foi crescendo cada vez mais ao longo dos anos. Mais que isso: forjavam-se como a única alternativa possível para capitalistas assustados diante de uma convulsão social que perdurava desde o fim da Primeira Guerra Mundial. O resultado foi a vitória eleitoral de Hitler em 1933. Sua ditadura acabou doze anos depois, no término da Segunda Guerra Mundial.

DEMOCRACIA BURGUESA, BONAPARTISMO E FASCISMO

Os três regimes acima são formas de expressão políticas da burguesia. Ou seja, são meios políticos pelos quais os capitalistas exercem a sua dominação contra o proletariado. O que eles têm em comum, portanto, é isto: proteger a propriedade do patrão e o seu lucro a qualquer custo. Esse elemento básico, porém, não nos permite, se pretendemos fazer uma análise precisa da política de um dado país ou de uma região, colocar um sinal de igualdade entre democracia burguesa, bonapartismo e fascismo.

Uma diferença significativa entre eles existe do ponto de vista dos organismos políticos dos trabalhadores. A democracia burguesa, enquanto garante estabilidade às diversas frações do capital por meio da harmonia entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, permite a existência dos sindicatos, dos partidos de esquerda e da vanguarda da classe trabalhadora. Em suma, a liberdade de movimentação política dos explorados é autorizada. É algo que não observamos nas ditaduras militares bonapartistas: a vanguarda socialista e os partidos de esquerda são perseguidos, censurados, postos na ilegalidade. Os sindicatos ou são proibidos ou então transformam-se em linha auxiliar da máquina estatal (como mostrou o Varguismo). Criam-se mecanismos de repressão centralizada a partir de um Poder Executivo que engole os demais. O fascismo vai ainda além. Organizando pequeno-burgueses arruinados em partido político, os fascistas formam bandos paramilitares responsáveis por eliminar fisicamente a vanguarda e aniquilar os mecanismos de mobilização dos trabalhadores. Acabam com qualquer oposição e dissipam até mesmo o parlamentarismo.

Isso significa que não há violência estatal no regime democrático-burguês? Ora, sendo uma forma política de dominação capitalista, seu objetivo primordial é preservar a exploração de classe e proteger a propriedade privada. A polícia segue sendo acionada sempre que os trabalhadores questionam minimamente o sistema vigente. Trata-se, no entanto, de uma violência localizada, pontual, corretiva. O bonapartismo, ao contrário, amplia e centraliza a repressão das forças armadas. É um regime policial monitorando e asfixiando qualquer mobilização da classe trabalhadora e da vanguarda. O fascismo, por seu turno, prescinde até mesmo do exército oficial. Sua violência, que chega ao nível da sanguinolência, é executada por organismos paramilitares. Não monitora nem sufoca as oposições, destrói e extermina. São quantidades e qualidades distintas de repressão.

BOLSONARO: UM FASCISTA?

A discussão anterior teve por objetivo buscar nas experiências históricas concretas das lutas de classes os elementos e as justificativas para nossa afirmação da introdução: o governo de Jair Bolsonaro não é uma ditadura militar e tampouco um regime fascista.

Bolsonaro é mais um governante de uma democracia burguesa fortemente abalada pela convulsão social de junho de 2013 que, apesar de desorganizada, desmoralizou os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Importante notar, porém, que esses últimos dois poderes se fortalecem em relação ao primeiro a partir de 2017. Especialmente o Legislativo, que se tornou a principal instância republicana do país. O Parlamento comanda a política nacional e serve como grande balcão de negócios. Bolsonaro precisou comprar o apoio do centrão com verbas obscenas de dinheiro público. O que Arthur Lira (presidente da Câmara dos Deputados) e Rodrigo Pacheco (presidente do Senado Federal) ditam, o presidente obedece. Por parte do Judiciário, quantas vezes não vimos a familícia tremer e se borrar nas calças depois de uma canetada do ministro Alexandre de Moraes?

E quanto ao apoio que Bolsonaro tem entre os militares? Ele tem origem fundamentalmente nos setores da Reserva, o conjunto de oficiais mais velhos e que não têm nenhum poder de comando nas forças armadas. Além disso, é bom ressaltar a profunda desmoralização pela qual passou o exército desde que embarcou na aventura bolsonarista da presidência da República. Em primeiro lugar, teve o filme queimado por conta da conduta criminosa e desastrosa do General Pazuello no período mais grave da pandemia de COVID-19. Também não faltaram escândalos envolvendo as diversas patentes das forças armadas, com verba pública sendo usada para compra de picanha, leite condensado e remédios para disfunção erétil.

O episódio mais emblemático dessa desmoralização aconteceu ainda em 2021, quando os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica pediram demissão conjuntamente da chefia das forças armadas. Foi a primeira vez na história da política brasileira que algo do gênero ocorreu.

E o discurso inflamado de Bolsonaro que vangloria a ditadura militar, que ataca o sistema eleitoral e que atiça seu eleitorado (cada vez menor)? É apenas e exatamente isso: um discurso inflamado. O presidente é um apoiador declarado de torturadores da estirpe de Carlos Alberto Brilhante Ustra. Não duvidamos de que seu desejo individual seja implantar um regime que perpetue sua família no poder com acesso direto às regalias estatais. O discurso, a vontade pessoal, porém, não servem de nada sem a força de fato. Golpes militares, regimes de exceção e governos fascistas não acontecem no grito de um desesperado com chance real de não ser reeleito. São produtos das lutas de classes, de contradições entre capitalistas e trabalhadores que balançam a ordem a ponto de os patrões não conseguirem segurar as rédeas dentro das instituições democrático-burguesas.[10]

Bolsonaro é a representação de um autoritarismo sem conteúdo. Lastreado em bases frágeis e localizadas, o presidente reproduziu tudo aquilo que disse que combateria durante sua campanha eleitoral. Vendeu-se ao centrão que jurou eliminar, escancarou a corrupção que supostamente iria enfrentar, não cumpriu com a promessa de acabar com a pobreza e a miséria (que, ao contrário, aumentaram). Seu governo é efeito colateral de um ascenso das lutas de classes em 2013, as quais não foram disputadas pela esquerda autodenominada “socialista”. Esta, incapaz de romper o cordão umbilical com o petismo, perdeu a oportunidade de se alçar à condição de dirigente séria da revolta dos trabalhadores. Bolsonaro viu aí a oportunidade de aparecer enquanto alternativa (apesar de sabermos que isso é pura ilusão). Sua origem, portanto, não pode ser explicada sem considerar o PT. E vamos além. Sua manutenção na presidência também não pode ser compreendida de outra forma. O PT foi uma “oposição” carinhosa a Bolsonaro. Bloqueou as manifestações e os atos pelo impeachment do presidente, permitiu a realização de grandes acordos nacionais que protegeram Lula e a familícia. Em suma, optou pela tática de uma sangria lenta que rendesse votos futuros. Por outro lado, Bolsonaro necessita de Lula. Precisa de alguém que se expresse como rival para então se colocar como o “menos pior”. O que vemos hoje é a concretização disso nas eleições. Um segundo turno em que os dois carrascos disputam palmo a palmo o apoio da população, em especial dos trabalhadores, desesperados sem enxergar uma alternativa realmente transformadora.

Reiteramos que a narrativa de que Bolsonaro comanda uma ditadura militar ou um regime fascista tem objetivos eleitoreiros. É uma falsificação da história cujo objetivo é render votos para o PT e seus satélites. Brincando com experiências sangrentas, Lula e aliados novamente se pintam como heróis nacionais contra um mal maior. Justificam sua traição à classe trabalhadora erguendo o espantalho bolsonarista em benefício próprio. Com a conversa de que “é necessário vencer o neofascismo”, pressionam a vanguarda de esquerda a capitularem novamente em época eleitoral.

Da nossa parte, afirmamos que a derrubada do bolsonarismo deve partir das ruas e dos locais de trabalho, organizando os trabalhadores e os setores mais precarizados contra a barbárie capitalista do dia a dia. Isso passa por combater os inimigos lulistas que estão dentro do movimento operário por meio das centrais sindicais pelegas e dos partidos oportunistas interessados em cadeiras no parlamento e em verbas estatais.

Entre Lula e Bolsonaro, VOTE NULO!


[1] O leitor pode conferir, caso seja de interesse, os textos “História da Classe Trabalhadora: o Bonapartismo” (dezembro de 2019) e “História da Classe Trabalhadora: o Fascismo” (setembro de 2020). Ambos estão presentes em https://transicao.org/.

[2] Napoleão Bonaparte foi imperador da França de 1804 até 1814, fruto dos desdobramentos políticos da Revolução Francesa de 1789. Em 1815, governou por mais cem dias.

[3] TS. “História da Classe Trabalhadora: o Bonapartismo” (dezembro de 2019). Disponível em: https://transicao.org/.

[4] TROTSKY, L. “Bonapartismo e Fascismo”. In. A luta contra o Fascismo: revolução e contrarrevolução. São Paulo: Sundermann, 2019, p. 358.

[5] MARX, K. As lutas de classes na França. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.

[6] MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, p. 128

[7] TROTSKY, L. “Democracia e fascismo”. In. Op. cit., pp. 208 – 209.

[8] TS. “História da Classe Trabalhadora: o Fascismo” (setembro de 2020).

[9] Idem.

[10] Conferir: “Existe risco real de golpe de Bolsonaro?” Transição Socialista, julho de 2022. Disponível em: https://transicao.org/conjuntura/existe-risco-real-de-golpe-de-bolsonaro/.