O atentado fundamentalista em Paris; o estouro das barragens da Samarco-Vale; a crise hídrica no sudeste brasileiro; as regiões das grandes cidades controladas por “Estados” paralelos — esses são, infelizmente, poucos exemplos da barbárie em que já nos encontramos. Na verdade, convivemos com altos graus de barbárie, a naturalizamos e, paradoxalmente, a consideramos um risco vindouro, não presente. É preciso dar a dimensão histórica do que se passa.
Que a violência do Ocidente sobre o Oriente retorna ao primeiro é algo relativamente óbvio. O que não se compreende é a diferença qualitativa entre o resultado dessa violência hoje e seu resultado ontem. Quando o capitalismo era um sistema econômico e social progressista em todo o planeta, sua ação sobre o Oriente – por mais reprovável que fosse do ponto de vista moral – elevava as condições de vida e de cultura da maioria da população oriental e ocidental. Nesse sentido, do ponto de vista marxista e histórico-universal, a ação do Ocidente sobre o Oriente foi civilizatória, uma vez que estabeleceu mundialmente condições econômicas e sociais para um novo modo de produção, planetário, superior ao capitalista, o socialismo, onde as diferenças das diversas formações e culturas se harmonizariam pacificamente. Nessa linha são os textos de Marx e Engels sobre o problema colonial.
Hoje, entretanto, dá-se o contrário: cada ação do Ocidente sobre o Oriente resulta num rebaixamento geral das condições de vida e de cultura tanto do Oriente quanto do Ocidente; numa espiral de conflitos cada vez maiores que interessa ao próprio capital. Cada nova ação do capital destrói as condições para superação da ordem do capital e, ao mesmo tempo, mina suas próprias bases e as bases do Ocidente.
Mas voltemos ao Brasil: em Mariana a lama tóxica da Samarco, empresa controlada pela Vale e pela BHP Billiton, acabou de matar o Rio Doce, o mais importante de Minas Gerais. Isso mesmo: o rio mais importante do estado de Minas Gerais, um dos maiores do Brasil, sucumbiu à enorme quantidade de metais pesados (chumbo, alumínio, ferro, bário, cobre, boro e mercúrio). Sua água já não serve mais para nada e o lençol freático foi contaminado. Estima-se que mais de 100 anos serão necessários para recuperar o rio, a fauna e a flora. A questão é: haverá interesse real em recuperá-los por parte das empresas e do governo?
No sudeste, a crise hídrica não é resultado da incapacidade de governantes isolados (por mais responsáveis que sejam), mas da morte de nosso ecossistema continental. A crise hídrica no sudeste é resultado da rápida destruição do cerrado nos últimos trinta anos (e de forma acintosa, curiosamente, nos anos do PT). O cerrado foi destruído para dar lugar, sobretudo, ao agribusiness. Segundo especialistas, o cerrado desaparecerá em 2030, ou seja, em 15 anos. Com ele desaparecerão grandes mananciais e o chamado “rio voador”, um fluxo de umidade advindo da Floresta Amazônica. O cerrado permitia que esse “rio” de umidade amazônica “voasse” até o sudeste brasileiro. Com seu desaparecimento, as consequências para o sudeste são o aquecimento das cidades e a falta de chuvas, ou seja, o conjunto da crise hídrica.
Em São Paulo, Rio de Janeiro e grandes cidades brasileiras, regiões significativas já foram entregues a grupos para-militares — traficantes ou milicianos — que conformam Estados paralelos. Tais grupos desenvolveram tamanho poder que hoje têm condições de estabelecer acordos com o Estado oficial, acordos que lhes garantem o domínio sobre áreas urbanas. Veja-se o acordo de cessar-fogo do Primeiro Comando da Capital com o governo do estado de São Paulo após os conflitos de 2006 (acordo recentemente reconhecido, em julho de 2015, por um delegado presente na reunião do Estado com o PCC). Para a facção, a condição era a liberdade territorial para que seguisse com seus negócios financeiros nas favelas sem ser atrapalhada pelas forças repressoras do Estado oficial. Essa condição foi aceita e permitiu-se ao PCC controlar favelas inteiras e presídios.
Tanto nas favelas quanto nos presídios sob controle do PCC, curiosamente, a violência diminuiu. Por que? Teria a facção algum projeto de igualdade? Seria ela mais competente que o Estado burguês oficial? Não: a violência diminuiu porque o PCC passou a executar suas próprias leis, muitas vezes mais sanguinárias que as do Estado burguês, incluindo até a pena de morte. No seu tribunal não há direito à defesa, ao contraditório e a outras conquistas da democracia-burguesa; vige muitas vezes a lei de talião, como entre os fundamentalistas árabes. Trata-se também de uma diluição de direitos e noções de liberdade ocidentais.
Um tipo de mutualismo desenvolveu-se entre o Estado burguês oficial e os pequenos Estados paralelos, uma vez que estes possibilitaram lançar sobre a massa empobrecida ou encarcerada um grau ainda maior de violência para controle, um grau de violência que o Estado democrático-burguês necessitava mas não sabia como aplicar sem deixar de ser o que é. Justamente por isso, na situação crescente de miséria e crise, o Estado burguês depende dos Estados paralelos. Estes, por isso, se fortalecem. Não há como não se lembrar da longa história de decadência do Império Romano após o séc. I d.C.. Por não ser capaz de resolver suas contradições internas, seus conflitos de classes, tal império foi sendo consumido por dentro, minado; seu poder central fragmentou-se em diversos territórios e pequenos poderes, até sua derrubada final no séc. V.
Tragicamente, em meio a tantos sinais evidentes da grave barbárie que já assola o planeta, a esquerda socialista ainda se aferra ao mito do capitalismo em desenvolvimento e, assim, afasta a urgência da revolução socialista. Ela, na prática, parece ignorar que as forças produtivas foram circunscritas decisivamente pelas relações de produção burguesas e, portanto, pararam de crescer; que todo desenvolvimento técnico conduz hoje necessariamente à maior destruição da natureza e da força de trabalho; que todo desenvolvimento de forças produtivas é aparente pois se dá sobre o que foi anteriormente destruído (em guerras, catástrofes, etc.); que guerras e catástrofes são bem vindas e necessárias ao sistema; que os ciclos de crise econômica são maiores e mais duradouros que os ciclos de crescimento há quase 100 anos e isso, na prática, cria uma tendência descendente na riqueza material.
Mesmo a esquerda trotskista abandona o programa elaborado por Trotsky exatamente para o período de estancamento das forças produtivas, o período de transição, e retorna aos programas reformistas e estatistas-burgueses da social-democracia. Por quanto tempo a esquerda se dará ao luxo de tentar realizar um programa político elaborado para outro momento histórico, anterior, em que o capitalismo era progressista?
A famosa divisa de Rosa Luxemburgo — “socialismo ou barbárie” — nos vem cada vez mais à mente, mas há anos já se cogita trocá-la por “barbárie, se tivermos sorte”. Em poucas décadas deixarão de existir as condições de superação da ordem do capital em todo o planeta, tão grande é a destruição realizada pelo capital sobre a força de trabalho e a natureza. O problema da revolução socialista é urgente, mas o grande empecilho ainda é a inexistência da direção revolucionária, inserida nos setores chave da classe operária, armada de um programa transitório-dialético. O tempo é escasso, mãos à obra!