A inflação de produtos básicos coloca novamente a esquerda brasileira num dilema. É necessária uma política burguesa ou pequeno-burguesa, de controle de preços de mercadorias, ou uma política propriamente proletária, de reajuste salarial conforme a inflação?
Muito ouvimos nas últimas semanas sobre a inflação dos preços de produtos básicos. E com toda razão! Produtos como arroz, óleo de soja, feijão, leite e carne subiram entre 10% e 20% somente neste ano. No mesmo período, a média salarial passa por um achatamento histórico (o que ainda está relativamente encoberto, devido ao “auxílio emergencial”, mas logo ficará claro). Frente a isso, é necessário refletir sobre a política correta, dos revolucionários, a ser trabalhada em meio à classe trabalhadora brasileira.
Os motivos da inflação
Diz-se que o que explica o processo inflacionário de produtos alimentares básicos brasileiros é sua cotação em dólar. De fato, a maioria desses produtos nacionais é negociada na Bolsa de Chicago, que lida com a indústria agrícola (commodities). Mas essa explicação não explica muita coisa, ou nada. É necessário explicar por que o dólar se fortalece frente ao real e às demais moedas mundiais.
De fato, o dólar se fortaleceu cerca de 30% em relação ao real desde o começo do ano, mas por quê? Isso ocorre pois a economia real dos EUA, apesar do impacto do coronavírus, ainda está relativamente aquecida (a despeito de limites internos que já aparecem). O COVID-19 fez desabarem as principais bolsas mundiais em meados de março de 2020, em tombo quase nunca antes visto, mas em seguida a recuperação foi imediata e em velocidade única. Foi a maior acumulação de capital em prazo tão curto vista na história! Veja no gráfico abaixo, com dados dos últimos dois anos do índice NASDAQ (índice de acumulação de capital de empresas de avançada composição industrial, cujas ações são negociadas na Bolsa de Valores de Nova Iorque):
Como se vê na imagem, a projeção de acumulação de capital avançava até o final de fevereiro de 2020, quando atingiu um pico histórico. Entretanto, repentinamente, devido ao impacto do coronavírus, o índice caiu até atingir em meados março o seu ponto mais baixo. Em seguida, inicia-se uma nova recuperação, em velocidade assombrosa. Já no início de junho de 2020 atinge-se o pico anterior (do final de fevereiro), mas o índice não pára aí; segue até atingir um novo pico nos primeiros dias de setembro de 2020. Desde então, entretanto, paralisa a subida. Seria esse pico de setembro um teto? Seria um mero reajuste normal? Seria um ponto de virada? Ainda é incerto, e os próximos meses provavelmente responderão à seguinte questão, da maior importância: esta crise que se abre é passageira ou catastrófica?
Trata-se de saber se passamos por uma crise em “V” (quando, após a queda, dá-se uma retomada sustentada) ou uma crise em “M” (quando, após a queda e nova retomada, abre-se uma vez mais o precipício). Cremos que a segunda possibilidade é bastante provável, pois o ciclo industrial tem lastros materiais muito difíceis – senão impossíveis – de se contornar numa economia de tipo capitalista. Lá se vão mais de dez anos da última crise industrial, e o processo cíclico tem em média esse período (veja comentário nosso, aqui).
Seja como for, o dólar está alto porque a economia dos EUA ainda está relativamente aquecida. E como a força de uma moeda depende da força real de sua economia – ou seja, depende de todo o valor e mais-valor produzido em mercadorias, que tal moeda precisa circular/realizar –, o dólar é mundialmente um porto seguro. Ainda mais em situação de tão duvidoso horizonte mundial, não apenas devido à pandemia, mas também às situações de paralisia econômica nos diversos países. É o caso do Brasil. A confluência tupiniquim de crise econômica pós-2015 e crise política da burguesia explica porque é melhor fugir desta encrenca. Assim pensam os capitalistas, norteados pelos “graus de risco”.
A alta no preço do dólar é ótima para os agroexportadores brasileiros. O Brasil acaba de ultrapassar os EUA na produção de soja, por exemplo. A esmagadora maioria das toneladas de produção dessa mercadoria já está comprometida com exportação por todo o ano de 2020 e meados de 2021. Os preços da soja, por exemplo, estavam em R$ 85,00 a saca de 60kg, e agora estão em cerca de R$ 130,00. Já o arroz estava em R$ 45,00 a saca de 50kg e agora está em cerca de R$ 100,00 a saca.
O arroz tornou-se agora um vilão na inflação por diversos fatores combinados. Primeiro, porque a produção, já pequena em hectares, diminuiu nos últimos 10 anos. Hoje o Brasil é 11º produtor mundial de arroz, mas nunca teve porcentagem realmente relevante no mercado mundial desse produto. O plantio de arroz diminuiu justamente para dar lugar a outras commodities, com destaque para a soja, cujos preços e lucratividade maiores no mercado mundial tornaram ouro em grãos. Além disso, com a valorização do dólar parte maior desse já pequeno plantio de arroz nacional foi destinada à exportação (sobretudo para o México), fazendo com que a demanda ultrapassasse a oferta internamente ao nosso país. E, por fim, somou-se a tudo um relativo aumento em demanda graças ao relativo aumento em poder de compra com o “auxílio emergencial”.
Bolsonaro e nossa “esquerda” agem patrioticamente para diminuir preços
Bolsonaro agora intenta medidas econômico-políticas bem próximas às que defende a nossa “esquerda” chamada de radical ou socialista. Isso, entretanto, diz mais sobre a “esquerda” do que sobre Bolsonaro, dado que tais medidas não são realmente de esquerda, mas capitalistas, burguesas ou pequeno-burguesas.
Bolsonaro anuncia que isentará a importação de arroz, bem como reclama a associações atacadistas e varejistas, para que “sejam patriotas” e “diminuam seus lucros”, ao menos nos produtos da cesta básica. Ao passo que o “patriota” Bolsonaro esbraveja, a nossa “esquerda” promete que, no poder, congelaria os preços. Ao passo que Bolsonaro isenta o arroz externo, a nossa “esquerda” promete que, no poder, diminuiria o plantio nacional de soja em nome do de arroz. A lógica gira sempre em torno de tentar encontrar um preço mais barato para a mercadoria arroz (ou outras, importantes para o consumo do trabalhador). Não se está em questão a supressão do mundo das mercadorias, da forma econômico-social chamada “mercadoria”, mas apenas a ideia de realizar nacionalmente preços menores.
Vê-se a similaridade de ambos também no trato nacionalista da questão. A nossa “esquerda” quer garantir uma tal de “soberania nacional alimentar”. O patriota Bolsonaro, para essa “esquerda”, seria um “entreguista”, um falso nacionalista, não preocupado realmente com tal soberania. Infelizmente, é preciso dizer: essa “esquerda” sempre será derrotada por oportunistas burgueses como Bolsonaro, ou nacionalistas burgueses supostamente mais “consequentes” e “progressistas”, que falam grosso, como os da tradição brizolista (Ciro Gomes, por exemplo), pois eles são mais pragmáticos na estreita visão burguesa. A própria massa trabalhadora preferirá os originais em vez das cópias.
Afinal, temos de constatar: nada há de errado – mesmo do ponto de vista da soberania nacional-alimentar – em se produzir mais soja do que arroz. Mesmo que o arroz não baste para o consumo interno! Um nacionalista-burguês poderia muito bem: 1) aproveitar o preço alto da soja para ter superávit primário; 2) usar o dinheiro desse superávit para importar mais arroz, e; 3) garantir temporariamente a venda do arroz com subsídio estatal nos mercados populares. O pragmatismo nacionalista-capitalista não se importa com o que é produzido, mas sim em realizar uma determinada margem de lucro (que possa, por ventura, ser usada “popularmente”, ou para fortalecer o espaço da “nação brasileira” no mercado capitalista mundial).
Na medida em que luta nacionalmente para baixar os preços das mercadorias, a nossa “esquerda” é neo-ricardiana (referente ao economista clássico David Ricardo, anterior a Marx). A “esquerda” quer que o Brasil produza arroz mais barato para diminuir o valor da reprodução da força de trabalho da classe trabalhadora. Assim o país poderia, quem sabe, migrar de uma economia baseada na extração de mais-valia absoluta (aumento da exploração capitalista do trabalho, devido à extensão da jornada de trabalho) para uma economia baseada na extração de mais-valia relativa (aumento da exploração capitalista do trabalho, devido à diminuição do custo de reprodução da força de trabalho). Assim nos aproximaríamos da estrutura econômica e produtiva das potências centrais do capitalismo! Superaríamos o “colonialismo” e o “subdesenvolvimento”!
A nossa “esquerda” está mais para uma cópia mal feita (pois estatista) da inglesa “Anti-Corn Law League” (“Liga contra a Lei dos Cereais”, associação de industriais burgueses da Inglaterra, da primeira metade do séc. XIX, que lutava para baixar o preço dos cereais) do que para algo revolucionário. Inventa-se desculpas e subterfúgios teóricos para mudar apenas a forma de inserção do Brasil no mercado mundial (“colônia”, “semi-colônia”, “dependência”, “sub-metrópole”, “sub-desenvolvimento” e outras panaceias). Assim visa-se sempre a adjetivar o capitalismo, e, num quiprocó, a combater apenas a adjetivação (e nunca o capitalismo).
Nossa “esquerda” não quer acabar com o capitalismo, mas mudar o papel do Brasil no capitalismo mundial. Eis por que ela é “ricardiana de esquerda” ou “fabiana” (correntes inglesas do socialismo pequeno-burguês e reformista da Inglaterra, anteriores à corrente proletária e revolucionária desenvolvida por Marx).
Um exemplo: texto do PSTU sobre inflação
Tais concepções aparecem, por exemplo, em textos dos companheiros do PSTU, quanto à inflação (ver aqui). O texto fala de “revolução socialista”, como de uma bela frase, mas na prática apresenta apenas a necessidade de diminuir o preço das mercadorias por meio de uma melhor gestão estatal. Não se quer propriamente acabar com a forma mercadoria nem com o Estado capitalista (“pré-condição de qualquer revolução”, dizia Marx em famosa carta a Kugelmann). Os companheiros do PSTU fazem a ressalva de sempre: “estatal, mas sob controle dos trabalhadores”. Tal frase vazia foi impiedosamente combatida por Marx e Trotsky (veja-se a “Crítica do Programa de Gotha”, do primeiro, e “Os sindicatos na época da decadência imperialista”, do segundo).
O texto do PSTU apresenta a seguinte concepção geral:
“De forma imediata, é preciso estatizar sem indenização, sob gestão total dos trabalhadores, as 100 maiores empresas do agronegócio e dos supermercados. Com isso seria possível diminuir o preço dos alimentos e vendê-los a preço de custo e garantir a distribuição gratuita a milhões de famílias de baixa renda dos produtos da cesta básica.”
Enfim, se “estatizar” é uma medida da “revolução socialista” – como afirmou pouco antes o texto –, porque a produção seria “vendida a preço de custo”? Afinal, trata-se de uma economia planificada – derivada de uma verdadeira revolução socialista, na qual não há compra e venda, e sim participação individual num fundo social de consumo –, ou se trata de uma economia capitalista gerida com um Estado “forte”? Basta lembrar quantas vezes os companheiros defenderam “congelamento dos preços” para se ter uma resposta: é a segunda opção.
A tarefa dos revolucionários não consiste em baixar preços, mas em reajustar mensalmente os salários
Defender a queda dos preços é necessariamente uma visão estatal-burguesa. Portanto, leva necessariamente a uma prática burguesa ou pequeno-burguesa. Isso pois o objetivo dos revolucionários e socialistas não consiste em atingir uma sociedade de preços controlados, mas uma sociedade onde não há propriamente preços (conforme concebemos, determinados pelo tempo de trabalho abstrato), pois não há mercado nem mercadorias. Um programa realmente de esquerda, revolucionário, tem de levar a esse objetivo geral (na realidade, tem de tê-lo como um pressuposto, desde o início, para atingí-lo em seguida). Quem não sabe para onde deve ir nunca sairá no medíocre presente!
Para o trabalhador, diferentemente dos capitalistas, não importa o movimento dos preços das mercadorias, se o seu salário sempre oscilar na mesma proporção. O ponto de vista do trabalhador é diferente do da burguesia nessa questão. O trabalhador quer estabilidade, mas esta só pode ser atingida se duas condições forem respeitadas: 1) se ele se propuser a controlar a única mercadoria que realmente pode controlar (sua força de trabalho), e; 2) se ele tiver uma tática de luta tão flexível quanto a do capital. Do contrário, perderá sempre!
Diferentemente do que quer a nossa utópica “esquerda”, não é possível controlar os preços de todas as mercadorias do mundo (mesmo das básicas para o trabalhador). A economia capitalista não é determinada pela ação consciente do Estado (supostamente de “esquerda” ou “direita”), mas pela lei cega do valor, que é intrinsicamente determinada pela concorrência entre capitais. A formação dos preços se dá na estrutura capitalista (produção e circulação) e não na superestrutura capitalista (Estado e aparatos de controle). Essa é uma lição básica do marxismo. Todas as tentativas de controlar via Estado faliram historicamente. Todas as tentativas de tabelar preço (ou “congelar”) somente levaram a represamento de valores que em seguida foram repassados. O mesmo vale para toda tentativa de controlar de forma fixa o câmbio (caso se queira, por exemplo, controlar mercadorias dolarizadas, como as commodities). Não é um problema de câmbio fixo, de congelamento de preços ou de criação de estoques. Não é um problema de gestão estatal, mas de “gestão” da força de trabalho pelos próprio trabalhador e suas próprias formas organizativas (sindicatos, comitês de fábrica e organizações de desempregados)! Tudo o que tira o foco disso e leva ao Estado entra na lógica da visão burguesa.
A classe trabalhadora só pode controlar a única mercadoria que ela tem: a sua força de trabalho, cuja negociação se dá dentro da estrutura capitalista (na esfera da circulação, no mercado de trabalho, via sindicatos). A negociação real se dá na estrutura capitalista, e a superestrutura (Estado) apenas legitima o que antes foi negociado.
Além disso, se o capital tem uma tática flexível, flutuante, a classe trabalhadora não pode combatê-lo com uma tática fixa. É como lutar com uma faca contra alguém armado de uma metralhadora! Se o reajuste dos preços é automático (definido pela concorrência) e ocorre a todo instante, a classe trabalhadora só pode ter uma estratégia de luta flexível, móvel, flutuante. Do contrário, ela sempre ficará defasada, perdendo para o capital. Eis por que, como já explicamos uma série de vezes, o único programa de transição imediato para o socialismo é o seguinte, apresentado por Trotsky:
Contra a inflação: reajuste mensal dos salários de acordo com o aumento dos produtos básicos. Esta é uma tarefa dos sindicatos, a ser exigida das empresas, e não algo a ser realizado por um suposto Estado “proletário”! Os sindicatos devem lutar para conquistar isso nos acordos coletivos das categorias!
Contra todas as demissões: reajuste mensal da jornada de trabalho, de acordo com a necessidade de produção na empresa! Esta é uma tarefa dos sindicatos, a ser exigida das empresas, e não para um “decreto” do governo (como quer o PSTU, que pede um decreto de um governo que caracteriza como autoritário!). Os sindicatos devem lutar para conquistar isso nos acordos coletivos das categorias!
Contra o desemprego: Frentes Públicas de Trabalho! Realização de obras para a construção de hospitais, creches, escolas etc., de acordo com um plano de longo prazo, baseado em necessidades sociais. Isso é uma tarefa a ser exigida por organizações de desempregados (populares), em associação com organizações sindicais. E estas obras, elas sim, devem ser exigidas do Estado burguês (motivo pelo qual esta reivindicação não é propriamente transitória, como as duas acima, mas auxiliar às reivindicações transitórias).
Somente essas três reivindicações podem apontar para uma superação do capitalismo. Somente elas, apresentando para o trabalhador a total estabilidade (com uma tática flexível) podem desde já apontar para o objetivo geral da luta: a economia socialista. Retornar ao ricardianismo de esquerda, pré-marxista, é enterrar a luta da classe trabalhadora contra o capital!