Na última semana, a votação do novo marco sanitário no Senado deu muito pano para manga entre a chamada “esquerda brasileira”. Esta não perdeu a oportunidade de acusar os senadores de “entreguistas”, “vende-pátria” etc. A medida – que exige licitações para contratação de empresas públicas [nacionais ou internacionais] ou privadas [nacionais ou internacionais] – favorece, é claro, o capital. Como praticamente tudo na sociedade capitalista. Mas isso não significa que a manutenção do sistema sanitário em forma estatal, pública, visa a “atender a população”. A ideia de que “água não é mercadoria”, na sociedade capitalista, por ser estatal, é uma concepção infantil, proveniente de uma incompreensão completa do caráter do Estado e de sua função específica no capitalismo.
A “esquerda”, em geral composta por burocracias sindicais dependentes do Estado, não consegue (ou não quer) estabelecer um programa político para além do estatismo burguês. Ou seja: não atinge um programa propriamente marxista. Para arrepio da “esquerda”, Marx pensava além dessas dicotomias simplistas, tais como público versus privado. Por exemplo, em seu famoso texto “Sobre a questão do livre-comércio”, de 1848 (portanto, de uma fase já amadurecida de seu pensamento), Marx tratava da dicotomia entre protecionismo e livre-concorrência, e afirmava, contra o pensamento dicotômico:
“Não acrediteis, senhores, que fazendo a crítica da liberdade comercial temos a intenção de defender o sistema protecionista. Podeis vos declarar inimigos do regime constitucional, e nem por isso vos declarais amigos do antigo regime.”
Marx termina esse texto declarando seu voto pelo livre-comércio, contra o protecionismo estatal. Assim, argumentava ele, seriam aceleradas as condições para uma revolução socialista na Inglaterra. Isso ainda hoje choca a nossa “esquerda”, e, por isso, tal texto é em geral escondido. Seja como for, fica mais do que óbvio que é possível criar um programa além da miserável discussão política entre “coisa pública” e “coisa privada”. Tais pólos só existem um para o outro, como complemento. Para além deles, há um programa socialista.
Para Marx, no referido texto, o protecionismo era, citemos, “um meio de se estabelecer numa nação a grande indústria, isto é, de fazê-la depender do mercado mundial, e desde que se dependa do mercado mundial já se depende mais ou menos do livre-câmbio”. O protecionismo era, para Marx, uma forma de “fabricar fabricantes”, desenvolver a burguesia internamente a um país, e, curiosamente, torná-la assim mais dependente do mercado mundial.
[Note-se no trecho acima como Marx compreendia a noção de “dependência” [abhängen, em alemão]. Marx entende que quanto mais uma nação se desenvolve do ponto de vista capitalista, mais dependente ela é. É o exato contrário do que pensam, por exemplo, os teóricos da chamada “teoria marxista da dependência”. Tal compreensão Marx também expressa no Manifesto Comunista, quando afirma que o capitalismo cria “um intercâmbio de todos os lados, uma dependência das nações umas das outras” [o termo é “allseitige Abhängigkeit”]. As nações capitalistas avançadas são as mais dependentes. A visão de Marx é oposta à dos teóricos da “dependência” porque, contra os nacionalistas, ele se colocava cem por cento na via do internacionalismo proletário.]
Nos chamados Grundrisse (cerca de dez anos após o discurso sobre o livre-comércio), e em O Capital (vinte anos após tal discurso), Marx reafirma suas concepções anteriormente apresentadas. Nessas obras, ele desenvolve suas concepções sobre o monopólio legal de algumas empresas pelo Estado e sobre as privatizações. Para Marx, uma empresa é criada de forma pública onde não há rentabilidade suficiente para uma exploração capitalista. Obviamente, os capitalistas não colocarão seu sagrado capital onde não houver retorno. O mal é que, às vezes, necessita-se do desenvolvimento de certas forças produtivas em áreas pouco ou nada rentáveis (ou cujo aporte necessário ultrapassa muito as possibilidades dos capitais ali disponíveis). Então entra em ação o Estado e sua função genuína de “balcão de negócios da burguesia” (a “coisa pública”, para Marx, é sempre “pública” da burguesia). Quase como uma sociedade por ações, o Estado onera toda a população (sobretudo a classe trabalhadora, que proporcionalmente paga mais impostos) para realizar uma obra que, no médio e longo prazos, criará forças produtivas e possibilidades de rentabilidade para os diversos capitais (seja naquela própria obra, seja em obras adjacentes, vinculadas etc.). Para Marx, quando, depois de um longo tempo, tal obra estatal vira rentável, é possível “elevá-la” à forma propriamente capitalista (ou seja, privatizá-la). Diz ele, nos Grundrisse:
“O abandono dos travaux publics [trabalhos públicos] pelo Estado e sua elevação [Übergehn] ao domínio das obras empreendidas pelo próprio capital [ou seja, a privatização] indicam o grau em que a comunidade real [a sociedade capitalista] já se constituiu na forma de capital. Um país, por exemplo os Estados Unidos, pode sentir na própria esfera produtiva a necessidade de ferrovias; no entanto, a vantagem imediata que resulta para a produção pode ser muito pequena e o investimento tende a virar um ‘fonds perdu’ [fundo perdido]. Então o capital o coloca [o investimento] sobre os ombros do Estado (…), tal trabalho geralmente [é] útil, e ao mesmo tempo cria as condições gerais de produção, portanto, não como uma condição especial para qualquer capitalista.”
[Ver MARX, K., Grundrisse, segunda seção, “o processo de circulação do capital”, item “Circulação do capital”]
Contrariamente ao que pensam os nacionalistas de “esquerda”, Marx afirma que uma sociedade só se torna avançada, do ponto de vista capitalista, quando supera essa fase de estatizações e, assim, a maioria das suas obras é colocada diretamente a serviço do capital. Na mesma parte dos Grundrisse referida, ele diz que:
“O mais alto desenvolvimento do capital [höchste Entwicklung des Kapitals] ocorre quando a condições gerais do processo social de produção não se criam a partir da dedução da renda social, dos impostos estatais […] mas do capital enquanto capital [sondern aus dem Kapital als Kapital].”
Como se vê, para Marx, se as atividades públicas são uma necessidade temporária à burguesia – para desenvolver forças produtivas capitalistas internas ao país –, em determinado tornam-se, elas mesmas, um entrave ao desenvolvimento de forças produtivas capitalistas em tais ramos econômicos.
Curiosamente, os próprios “desenvolvimentistas”, se quisessem de alguma forma continuar com seus planos de “desenvolvimento”, teriam de aceitar a privatização como melhor forma de fazê-lo. Já o marxismo, na realidade, nada tem a ver com “desenvolvimentismo” ou “desenvolvimento da nação”, pois sabe muito bem que todo “desenvolvimento”, na sociedade capitalista, é aumento da exploração do conjunto da classe trabalhadora, e que a “nação” abstrata não existe – ou seja: a nação é a nação burguesa.
Outros erros comuns da nossa “esquerda” provêm da ideia de que, com a privatização, as empresas capitalistas “não quererão atender os mais pobres”, “áreas pobres serão abandonadas e só os ricos terão saneamento”. Em primeiro lugar, é preciso não esquecer que tais setores da população já estão abandonados pelo Estado. Assim, a defesa do Estado aparece, para a maioria da população – corretamente! – como motivo de vergonha (sem falar na corrupção estatal vinculada a tais empresas, nos cabides de empregos etc.). Em pleno séc. XXI, metade da população brasileira não tem acesso a saneamento básico! Defender este Estado é pedir para se desmoralizar. Mas, para além disso, a “esquerda” expressa uma ideia absolutamente sem sentido: a de que as empresas capitalistas não quererão vender seus produtos ao máximo de pessoas possível. Isso não tem lógica, pois, como ensina Marx já no primeiro capítulo de O capital, na sociedade capitalista o valor de uso é também o suporte material do valor de troca. Ou seja: os capitalistas só conseguem realizar seus lucros (trocar um produto por dinheiro, ou seja, vender) se os produtos forem consumidos enquanto bens, em sua forma útil. Achar que os capitalistas não querem vender aos “pobres” é algo sem nexo no capitalismo. Na hora de ganhar dinheiro, o capital é muito mais inescrupuloso, sem preconceito e igualitário do que crê a nossa “esquerda”. Espalhar por aí a ideia de que os capitalistas não querem atender os “pobres” cria o terreno perfeito para que, depois, apareça um oportunista como Lula e pareça fazer milagres (com o consumo das massas).
Se não compreendermos essas coisas e nos tornarmos reféns do discurso nacionalista (de diversas matizes), nos deslocaremos da realidade e não apresentaremos um programa de superação do capitalismo. Perderemos a credibilidade. Lembremos que na época da privatização da telefonia (meados da década de 1990) toda a esquerda brasileira falava que, com tal privatização, o “plano” – sempre ele, uma espécie de conspiração capitalista – era fazer com que os “pobres” não tivessem acesso a telefones. Ou que os telefones iam ficar mais caros, com tarifas exorbitantes. Nada disso se passou. A esquerda que defendeu aquilo se desmoralizou diante da população (e, com seus discursos nacionalistas contra as “empresas estrangeiras”, manchou o internacionalismo proletário).
Não estamos com isso dizendo que necessariamente o serviço sanitário será ampliado e que necessariamente as tarifas serão mais baratas. Tudo isso dependerá, obviamente, da rentabilidade capitalista do setor no médio e longo prazos. Para se verificar isso, são necessários muitos mais dados do que a “esquerda” brasileira, de forma superficial, tem recolhido e apresentado (recortando-os sempre conforme lhe agrada). Com isso, estamos dizendo que há sim a possibilidade de o serviço sanitário ser ampliado em sua forma capitalista, bem como de a tarifa ficar mais barata – e de a “esquerda” mais uma vez quebrar a cara. Com isso, estamos chamando a atenção para o fato de que um programa socialista não passa em nada por essas ideias estatistas e nacionalistas da “esquerda”.
Se o setor sanitário privado não for lucrativo, será estatizado novamente. Como, aliás, foi feito muitas vezes no Brasil (algumas empresas já foram privadas, depois se tornaram públicas, depois foram novamente privatizadas). A “esquerda” estatista precisa, antes de tudo, lidar com o fato de que foram os militares os maiores estatistas do país nas últimas décadas. Como explicar, por exemplo, que foram esses militares, no período de chumbo da última ditadura, os principais responsáveis (junto com Maluf) pela estatização de uma empresa como a Light, de eletricidade em São Paulo, vinculando-a à Eletrobras? Isso sem falar em inúmeras empresas de telefonia fortalecidas, nos crescentes aportes de investimentos na Embraer e muitas outras empresas públicas desenvolvidas pelos militares. A “esquerda” não sabe responder a essas coisas, que a vinculam (via nacionalismo) tão estreitamente à canalha militar que governou impunemente o país. Marx, como mostramos acima, responde a tudo isso muito bem, sem cair em contradições.
Outro mito que sempre aparece é o das automáticas demissões e piora das condições de trabalho. Há a seguinte ideia: “a privatização leva à piora das condições de trabalho”; “a privatização leva a mais demissões”. É como se, por um passe de mágica, uma canetada, que muda o estatuto de uma empresa de pública para privada, fosse capaz de colocar um monte de gente na rua e piorar condições de trabalho. Essa concepção abstrai a luta de classes real e baseia-se num tipo de adoração mística do Estado. Ela parece ignorar que, para pais de família irem à rua, depende de saber se aceitarão isso calados. As pessoas só são demitidas “automaticamente”, só aceitam piora nas suas condições de trabalho “automaticamente”, se não têm a menor capacidade de lutar. Essa concepção parte da impotência; pressupõe que já se está derrotado. É em geral um traço característico de sindicatos burocratizados ou pelegos, que não querem mobilizar de forma radical suas bases, e esperam salvação “de cima”, dos céus da sua amiga burocracia estatal. Ao acreditar nas forças metafísicas do Estado, quebram assim as forças de resistência do proletariado.
A “esquerda” que coloca como futuro imediato para uma empresa apenas essas duas opções – estatizar ou privatizar –, comprova estar submetida à “miséria do possível” da ordem capitalista. Essa “esquerda” não concebe mais que os trabalhadores podem lutar em suas empresas (sejam estatais ou privadas) de forma radical contra toda exploração, contra toda demissão e perda salarial, abrindo um caminho de transição para uma nova sociedade, superior à capitalista – o socialismo.
Todo o alarde, entre a “esquerda” brasileira, sobre o novo marco sanitário, só revela como é necessário construir uma nova esquerda neste país, propriamente comunista, separada de todo caráter nacionalista e estatista, e que saiba trabalhar os verdadeiros problemas da esmagadora maioria da população trabalhadora – jornada de trabalho, manutenção de salários, exigência de empregos – numa forma necessariamente socialista.