Foi anunciada há pouco mais de uma semana a plataforma política do movimento “Vamos! Sem Medo de Mudar o Brasil!”. Trata-se de iniciativa da Frente Povo Sem Medo, hegemonizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ainda que não se diga claramente, dada a época em que é lançada a iniciativa, bem como devido às polêmicas que já transcorrem na chamada “esquerda”, a iniciativa assume ares de projeto eleitoral, voltado ao pleito de 2018.
Por ser iniciativa dirigida pelo MTST, não se deve esperar do “Vamos!” princípios teóricos muito diferentes daqueles que ostenta o primeiro. No site do “Vamos!”, argumenta-se que os “eixos” políticos do movimento ainda estão em aberto, para suposta “construção coletiva” numa série de debates a serem realizados nas próximas semanas. Eis por que uma parte da esquerda dita socialista já gira em torno da iniciativa do “Vamos!”, julgando ser possível “disputá-la”. Todavia, a partir dos textos que já constam no site do “Vamos!”, fica evidente que o horizonte político de tal iniciativa já está delimitado.
O limite político e teórico do “Vamos!”, já bem definido, é o da social-democracia. Não se trata da estratégia marxista — criação de um poder operário, contraposto ao Estado oficial, a partir do proletariado fabril —, mas da gerência “democrática” e “radical” do Estado burguês atual. É a velha ideia de sempre: “taxação das grandes fortunas, redução de juros, auditoria da dívida pública, cobrar IPVA de jatinhos, reforma tributária que taxe os lucros” (citando o “Vamos!”). Em última instância, é a ideia de que o Estado (burguês) “pode se voltar para o desenvolvimento nacional e para servir aos interesses populares”.
Tal programa é pré-marxista. O próprio Marx teve a sua fase “democrata-radical” antes de 1845, antes de se tornar propriamente marxista (por mais estranho que essa frase pareça), e fez autocrítica. É o Marx pequeno-burguês. Em primeiro lugar, portanto, cabe constatar que esse projeto, que se traveste de tão moderno — conectado às redes sociais e à produção coletiva ou horizontal de ideias — é da primeira metade do século XIX, totalmente antiquado e anacrônico.
Em segundo lugar, cabe constatar que não há espaço em nossa situação histórica para um programa antiquado desses, de tipo social-democrata. A concepção social-democrata — ou democrata-radical — surgiu na primeira metade do século XIX, vinculada a uma classe social específica: a pequena-burguesia. No período histórico de decadência do capitalismo (iniciado na passagem do século XIX para o XX) não há espaço para uma política social-democrata honesta, autônoma, que corresponda a necessidades históricas de uma classe social. A partir desse período histórico não há mais, a rigor, social-democracia; a defesa de um programa social-democrata torna-se necessariamente uma política oportunista, um instrumento da burguesia para paralisar e quebrar a classe operária.
Lembremos, a título de paralelo histórico, que, em 1980, Pierre Broué, no Brasil, falava contra a entrada dos trotskistas no PT. O importante teórico e dirigente trotskista argumentava que a construção do PT seria uma traição ao proletariado, justamente porque não era mais possível construir historicamente, em todo o mundo, partidos social-democratas. O que Broué queria dizer é que a construção de tal organização supostamente ampla apenas atrasaria os revolucionários em sua tarefa fundamental: a criação de um partido revolucionário trotskista. Hoje é mais do que evidente que ele estava correto.
Assim, podemos dizer que, além de não haver nada de relevante a se disputar no “Vamos!” — pois suas linhas de força e seu horizonte político já estão muito bem delimitados —, seu programa, neste momento histórico, é necessariamente oportunista.
No programa online de entrevistas “Nocaute”, do jornalista Fernando Morais, Guilherme Boulos — dirigente do MTST — deu mais alguns elementos interessantes para se caracterizar o programa do “Vamos!”. Tais elementos permitem não apenas compreender a matriz histórica e universal — social-democrata — da iniciativa, mas também a particularidade “brasileira” da determinação do programa.
Após Morais afirmar que as mudanças democrático-radicais propostas pelo “Vamos!” seriam uma “revolução”, Boulos, um tanto para apaziguar ou pacificar (quem, a burguesia?) afirma: “veja bem, nós usamos o termo revolução, mas a pauta democratização das comunicações … É uma revolução no Brasil, mas tem muito país capitalista que democratizou as comunicações!”.
Parodiando o discurso de Lula no dia da condenação à prisão por Moro, Boulos afirmou:
“A burguesia brasileira é tão atrasada, a classe dominante brasileira pensa com a cabeça da casa grande, é uma coisa rançosa, que não admite qualquer avanço… Nós temos uma classe dominante, uma burguesia que é escravocrata, que pensa com uma cabeça antipovo, rançosa, tem medo de qualquer coisa que envolva povo. Por isso que o termo acaba sendo esse [revolução]. Agora, a agenda que está colocada é a agenda de aprofundamento da democracia”.
Para Boulos, no Brasil haveria um caráter específico e muito particular da “nossa” burguesia: o fato de ela ser tão atrasada, tão contra a democracia, tão aquém da burguesia dos demais países capitalistas (avançados), que seria necessário fazer mudanças democrático-burguesas contra a vontade da própria burguesia:
“É um sintoma do nível de atraso político da elite do nosso país. Que fazem com que agendas como essas se coloquem como agendas quase-revolucionárias, embora, em si mesmas, não sejam. E precisam, para se sustentar, de amplo movimento de massas.”
A tese de que é preciso ser mais democrático-burguês do que a burguesia no Brasil tem uma matriz muito específica: o stalinismo. Tal tese foi definitivamente elaborada no VI Congresso da Internacional Comunista — o congresso da definitiva stalinização —, em 1928, e foi logo em seguida, no mesmo ano, adotada no III Congresso do Partido Comunista Brasileiro. Daí advém, exatamente, a tese de que o Brasil é um país atrasado, no qual é fundamental a etapa “democrática” para se acumular forças para uma suposta segunda revolução propriamente socialista (num momento não muito claro no horizonte). Essa tese stalinista do Brasil atrasado não só é hegemônica ainda hoje na esquerda brasileira, não só deu base ao programa “democrático-popular” do PT (cuja direção sempre foi apinhada de ex-stalinistas), como também influencia ainda boa parte dos grupos ditos “trotskistas”.
O programa do “Vamos!”, portanto, não só não está em disputa, não só é historicamente (e objetivamente) falido, como alimenta-se do veneno stalinista que impediu toda e qualquer revolução no Brasil.
O plano A de todos os que se baseiam nesse programa pequeno-burguês e de matriz stalinista — desde os caciques do PT, passando pelo MTST e chegando à direção do PSOL — é na prática eleger Lula. Ao menos num segundo turno, como mal-menor, diante das candidaturas da “direita rançosa e escravocrata” (como Dória ou Bolsonaro). Caso o plano A caia — com a prisão de Lula ou a impossibilidade deste participar das eleições —, surgirá uma miríade de planos B. O primeiro é o da ala majoritária do PT (à qual participa o próprio Lula): Jacques Wagner ou Fernando Pimentel. O segundo é o da ala minoritária do PT, da qual participam figuras como Lindbergh Farias e Tarso Genro. O terceiro é o do MTST, com Boulos à Frente. E o quarto, como possível apoio indireto, do PSOL (e adjacentes), que deve se centrar em Chico Alencar.
Não é à toa, por exemplo, que todos esses figurões participam das reuniões do “Vamos!”. Todos estão de olho em todos, temendo qualquer ação fora do script. Gleisi Hoffman, presidente do PT, participa representando o setor lulista. Mas também participam Lindbergh, Tarso, Chico e outros presidenciáveis. Todos os planos B ambulantes fazem um acordo de cavalheiros, todavia escondem uma faca nas costas, prontos para apunhalarem o colega ao lado. O problema ou falência do “Vamos!” (ou da esquerda que gira em torno do PT), para além do programa, consiste no problema comum da esquerda pequeno-burguesa: excesso de caciquia e ausência de caudilho. Se Lula, todavia, mantiver-se até 2018, todos se alinharão diante do caudilho, e o MTST seguirá com seu jogo duplo, seu papel de articulador entre o PT e a oposição de esquerda a este (sobretudo PSOL e PCB), ou seja, seguirá paralisando ou atrasando a esquerda de oposição ao PT, mantendo-a na prática sob as asas de Lula.
Ora, a esquerda verdadeira precisa aprender com os erros. Não bastaram os erros históricos do stalinismo no Brasil? Não bastou o erro histórico que foi construir o PT e seu programa “democrático-popular”? A esquerda precisa saber virar as costas para esse tipo de política falida historicamente e abrir um caminho para as massas. Isso é sectarismo? Sim, é sectarismo com os agentes da burguesia no movimento operário. Nada há de errado nisso. Na verdade, o problema da esquerda revolucionária não consiste no afastamento dos setores oportunistas. A esquerda revolucionária ainda é muito próxima e perde muito tempo na lama da suposta disputa com esses setores. Mas o verdadeiro problema da esquerda revolucionária consiste justa e precisamente no afastamento em relação à classe operária brasileira, aos setores de vanguarda dos principais setores da economia nacional. Eis tudo.
Perder tempo na disputa de projetos falidos como o do “Vamos!”, hoje, não é apenas ostentar memória de peixe, mas oportunismo. Não necessitamos historicamente de uma paródia do PT, nem de uma paródia do Lula. O tempo é precioso. A tarefa dos revolucionários é a de avançar, com todas as forças, rumo às fábricas, rumo ao interior das fábricas, armados do programa revolucionário da IV Internacional.