Temer, de forma inesperada e improvisada, decretou intervenção federal na área de segurança do Rio de Janeiro. O que o teria levado a isso? Por que não o fez antes do carnaval e sim depois? Dado que a medida atrapalha a aprovação da reforma da previdência, por que não esperou mais dez dias (data da votação)?
É fato que Temer baixou o decreto como diversionismo diante da incapacidade de aprovar a reforma da previdência. A medida não só muda a pauta da política nacional, mas literalmente impede a aprovação, uma vez que não pode ser realizada qualquer emenda constitucional sob vigência de intervenção federal. Alguém realmente acredita que Temer “suspenderá” a intervenção por algumas horas para que a Câmara aprove a reforma da previdência? Nem os analistas burgueses levam isso a sério. Todos os juristas já se pronunciaram contra, esclarecendo que isso — suspender por horas para aprovar emenda — contraria exatamente o espírito da lei constitucional. Rodrigo Maia já declarou que não colocará para votar sem parecer do STF sobre a suposta legalidade de tal “suspensão”. Temer, num habilidoso passe de mágica, jogou o ônus da não aprovação da reforma da previdência no colo do STF.
O presidente condenou seu próprio governo: para fazer o teatro de forma consistente, foi obrigado a baixar um decreto válido até dezembro de 2018. Ou seja, reconheceu que não fará mais nada de significativo até o final do ano; reconheceu que é inexpressivo e, se depender dele, viveremos num interregno fora do tempo por meses. O país ficará parado, sem ir a lugar algum (do ponto de vista burguês) até que as eleições supostamente salvem a governabilidade burguesa. Mas até por isso não será surpreende se Temer — depois de baixada a poeira da vergonhosa derrota na previdência — cancelar o decreto de intervenção federal.
Afinal, é só teatro e improvisação. O general do Comando Militar do Leste ficou sabendo aos 45 minutos do segundo tempo e foi contra. O Secretário de Segurança Pública do RJ não sabia. A deputada carioca Laura Carneiro (MDB), apontada pelo próprio governo para ser a relatora do decreto no Congresso (que precisa autorizar a medida), não sabe o que fazer. Perplexa, afirmou neste sábado: “Estou aqui num imbróglio porque tem alguns textos que deveriam estar no decreto e não estão. Onde estão os recursos (para a intervenção)? Qual é a estratégica básica pelo menos? (Falta) pelo menos exemplificar, determinar a base da estratégia…”
E não há nada que realmente justifique a medida. A desculpa esfarrapada do governo foi o suposto aumento da violência no carnaval deste ano. Todavia, como comprovaram dados divulgados pelo jornal O Estado de São Paulo, a maioria dos indicadores de violência caíram no RJ neste ano se comparados aos dos anos anteriores.
Na prática e no cotidiano da população carioca, pouco mudará em relação ao que o Exército já faz desde a operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) implementada por Temer em julho de 2017. É a presença midiática do Exército, sem ação clara, dando cobertura à atividade criminosa da PM nos morros. O que muda é que o controle das operações militares passa diretamente do governo civil em âmbito estadual para o governo civil em âmbito federal (o que, de quebra, atesta a falência absoluta do governo de Pezão). A operação continua a ser, portanto, de pura politicagem e absolutamente ineficaz (do ponto de vista das necessidades da Segurança Pública burguesa). Aliás, é o que bem explicou a professora Jacqueline Muniz, da UFF, especialista no assunto, em entrevista à Globo News no último dia 17. A ação da Segurança Pública é agora minada ou diluída em nome da “teatralidade operacional, que tem rendimento político e eleitoral”. Não à toa Bolsonaro se pronunciou contra a intervenção federal: ele sabe que o exército não quer fazer essa operação e busca base eleitoral.
Trata-se, portanto, de um novo grau do absorvimento das instituições do Estado na crise de dominação da burguesia. O uso do exército para politicagem vazia, sem qualquer função clara do ponto de vista da Segurança Pública burguesa, sem preparação, plano ou recurso definidos, com as altas esferas militares agindo a contragosto — tudo isso prepara a desmoralização a médio prazo das forças armadas. Aos poucos, à medida que elas se afundarem em corrupção nos morros — e aliciamento pelo crime, dado que os praças ganham um salário muito inferior ao dos policiais —, as FFAA perderão respaldo entre a população; parecerão apenas mais um elemento dentre outros desse Estado cujas instituições se mostram a cada dia mais fétidas.
Lembremos: primeiro faliu o poder Legislativo, na medida em que foi transformado em inescrupuloso balcão de negócios (mensalão, petrolão etc.) pela quadrilha PT-PMDB-PSDB (o verdadeiro crime organizado). Depois, faliu o Executivo, quando caiu Dilma e assumiu um presidente cuja aprovação está na margem de erro. Depois, e justamente pela falência dos poderes Legislativo e Executivo, o judiciário foi alçado ao protagonismo político (uma politização do judiciário, e não judicialização da política). O judiciário — último fio de sustentação do regime democrático-burguês — está cada vez mais envolto na lama geral. E assim tenderá a ser. Agora, surpreendentemente, até a pedra basilar de todo regime de Estado — a violência da classe dominante concentrada — é solapada; o próprio exército é tragado para a crise de dominação burguesa, usado na politicagem barata.
Portanto, o que se deve constatar de uma análise séria da atual situação brasileira é o aprofundamento da crise da dominação da burguesia enquanto classe, como um todo. Isso significa que a correlação de forças para a burguesia na luta de classes piora. Isso se dá desde 2013, e só não é um processo mais rápido porque não há organização política da classe trabalhadora à altura da conjuntura. Não à toa, Temer decidiu editar o decreto repentinamente após os carnavais-protesto nas ruas e três dias antes de uma nova paralisação geral da classe trabalhadora contra a reforma, chamada pelas centrais sindicais. Por mais pelegas que estas possam ser (e são), a mínima ameaça de mover a classe, em situação de crise política explosiva, aterroriza a ínfima, inútil e parasitária burguesia brasileira.
Se ficarmos na superfície do problema e valorizarmos somente a ação do exército em si — desconsiderando seu uso diversionista e de politicagem —, cairemos necessariamente na ideia de que há um “golpe” em curso no Brasil, uma “onda conservadora”, um fortalecimento do regime burguês e uma derrota da classe trabalhadora. É evidente que há um crescimento da repressão do Estado burguês, à medida que a dominação política e social da burguesia se torna mais e mais instável. Mas é preciso compreender que esse aumento da repressão se dá sobre uma base cada vez mais estreita, solapada por uma contradição de classes abismal.
O uso do Exército deve ser amplamente repudiado. Nesse sentido, é ótimo que agora muitos petistas e semi-petistas o façam. Sejam bem vindos ao nosso lado da trincheira, de onde nunca saímos. Mas não esqueçam o passado. Quando falávamos que o uso do Exército no Haiti — pelo governo Lula — prepararia ações internas ao Brasil, os petistas e semi-petistas se calavam (era naquele país “longe” e pobre, quem se importaria?). Quando denunciamos a invasão militar no Complexo do Alemão ou na Favela da Maré, dirigidas pelo PT, os petistas ficaram em silêncio com um sorriso amarelado. O mesmo se deu quando o PT usou o Exército para garantir a venda do pré-sal no Leilão do Campo de Libra. Ou na repressão a manifestações contra a Copa do Mundo em 2014 no RJ. Ou na aprovação da Lei Antiterrorismo e da Leia das “Organizações criminosas”. Ou nos vários usos pontuais do Exército para Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) por todo o país. Ou no enquadramento de companheiros manifestantes na Lei de Segurança Nacional, importada diretamente da Ditadura Militar. A lista segue. Temer não faz absolutamente nada de diferente do que seguir o nefasto precedente aberto sobretudo pelo PT. Depois de tanto tempo engolindo a seco, os petistas agora protestam. Que bom, mais um ponto a favor da queda do governo Dilma!
Fora Exército do Rio de Janeiro! Abaixo a reforma da previdência!