O elemento mais importante do 03/07 parece ser a cristalização, em toda a sociedade, da imagem de Bolsonaro como corrupto. Não tratamos aqui disso por qualquer fetiche com a pauta da corrupção, apenas porque é a pedra na vidraça. A imagem com que Bolsonaro se elegeu se estilhaçou definitivamente entre amplos setores populares. Ainda que nem todos protestem, agora praticamente ninguém mais põe a mão no fogo pelo presidente. A divulgação dos escândalos com vacinas, somada aos atos do dia 03/07, cristalizou um novo humor público geral, um novo consenso social contra o presidente. Qualquer nova pesquisa de popularidade após o 3J o comprovará.
Entretanto, percebe-se também nas ruas, agora, um limite. Ao que parece, os atos, em tal formato, não crescerão muito mais. A dimensão da população com potencial de ir às ruas, todavia, não se esgotou. Apesar de ninguém mais pôr a mão no fogo por Bolsonaro, parcelas significativas dos trabalhadores ainda estão neutras, não se manifestam. Por que? Teria sido atingido um limite máximo, objetivo, desse tipo de pauta “política” (o impeachment)?
Pensamos que não. Na realidade, a história recente comprova que não. Os dois primeiros atos contra Dilma, em 2015, foram maiores do que todos os atos até agora contra Bolsonaro. Sobretudo em São Paulo, a presença das periferias foi maior. E eram atos tão “meramente políticos” – pela queda de Dilma – quanto estes. Por que então esse setor social não se movimenta agora? Os atuais lutadores têm de saber explicar esse fenômeno.
Em primeiro lugar, é evidente, há ainda um temor quanto ao vírus da Covid. Uma parcela significativa da população ainda não se vacinou (e mesmo a que se vacinou, ou se vacinou apenas com uma dose, tem ainda relativo receio de protestar).
Mas há ainda outros fatores da maior importância. O primeiro deles é claramente político: um grosso setor dos trabalhadores ainda se encontra paralisado, em confusão política. A parcela dos “bolsonaristas arrependidos” nos atos ainda é pequena (e possivelmente mais concentrada em camadas mais bem remuneradas dos trabalhadores, “profissionais liberais” etc.). Como a chamada “esquerda socialista”, dita de oposição ao PT, se negou a disputar o legítimo ódio popular contra Dilma em 2015 e 2016, a chamada “direita” (em geral, grupos que nem existiam) nadou de braçada, cresceu rapidamente, elegeu representantes etc. Hoje, quando a “direita” vai à falência, se desmoraliza (ainda bem!), a “esquerda socialista” simplesmente não tem laços com amplas camadas da população trabalhadora; e não é por isso capaz de fazê-la tirar mais rapidamente conclusões sobre toda a história recente. O processo de vinda de amplos setores da classe trabalhadora para protestos contra a “direita” demora mais do que deveria. Os erros no passado, a capitulação ao PT, cobram alto preço, inclusive trazendo o risco deste movimento ser derrotado.
Outro fator importante é a acelerada degradação das condições de vida da maioria, com o aumento acintoso da miséria. O grosso da população tem hoje menos recursos para se dar ao luxo de ir numa manifestação de final de semana, bem como está mais esgotado por condições de trabalho pioradas. Os momentos do ciclo econômico são diferentes. Em 2015, a economia estava “aquecida”, com baixo registro de desemprego oficial, inflação controlada etc. Isso hoje mudou (evidentemente, não graças à retirada do PT do poder, mas devido à natureza do ciclo econômico capitalista). A classe trabalhadora está mais ainda pressionada do que em 2015 pela luta por sua sobrevivência imediata.
Dada essa situação grave, esse impasse, é importante condenar severamente aqueles que atuam contra a massificação do movimento atual. O caso do PCO no último ato, em SP – a agressão de meia dúzia de militantes do PSDB – é o mais sintomático (mas também ocorreu em Santa Catarina, com agressões a militantes do PDT).
Não só o PCO, mas outros agrupamentos ou militantes independentes defendem que os atos devem ser puristas, só da suposta “esquerda”. Esse critério é absolutamente falso, pois parte da ideia de que o PT é de esquerda. O PT, que governou o Estado federal capitalista brasileiro por mais tempo que o PSDB, que no poder controlou a classe trabalhadora e os “movimentos sociais” como em décadas não se via (permitindo o maior grau de exploração dos trabalhadores pelo capital desde o “milagre econômico” da ditadura militar, como comprovam os dados de produtividade), que militarizou as favelas cariocas, que usou o exército no Haiti, que usou Lei de Segurança Nacional contra manifestantes em 2013 e 2014, que triplicou a população carcerária, que bateu recordes de desmatamento da Amazônia, que fez com que os banqueiros e industriais “lucrassem como nunca”… Esse partido não pode ser considerado de “esquerda” por alguém com o mínimo de compromisso com a realidade! O PT é um partido de direita, burguês, plenamente capitalista.
O PT não é um partido operário (a CUT tem bases operárias, os sindicatos desta têm base operária, mas o PT, em si, é um partido composto em sua esmagadora maioria por dirigentes burgueses corrompidos e militantes burocratas pequeno-burgueses. Não há operários a se disputar para o socialismo dentro desse partido). Se o critério fosse o de relação com centrais sindicais, também o Solidariedade, de Paulinho da Força Sindical, que apoiou o impeachment de Dilma, a eleição de Temer e de Bolsonaro, tem as suas relações e deveria ser considerado de “esquerda”. E o próprio PSDB tem relações com movimentos sindicais como a UGT, parte da Força Sindical, e com movimentos de moradia em cidades como São Paulo etc.!
Assim, ao expulsar o PSDB e o PDT do ato e não expulsar o PT, os esquerdistas apenas comprovam que seu “critério de expulsão” é absolutamente falso. E nesse mesmo ato revelam o verdadeiro conteúdo de sua política: a subserviência vergonhosa de todos eles, na prática, ao PT. Na realidade, sua política é só esta: todos os que criticam o PT devem ser excluídos. Não à toa o PT não condenou as ações do PCO.
Esse tipo de esquerdismo certamente atrapalha a massificação dos atos. A questão fundamental do momento é aplicar a tática da frente única para derrubar Bolsonaro. É preciso que fique claro que, para derrubar o presidente, hoje, é válida a unidade com todos os setores, mesmo liberais, na medida em que trazem mais gente para as ruas. Derrubar o presidente é uma tática correta pois faz crescer a confusão no seio da burguesia; fragiliza sua dominação como classe, e, por tudo isso, cria melhores condições para a luta proletária.
Quanto aos acordos práticos entre correntes políticas diferentes, o marxismo trabalha com dois conceitos fundamentais: Frente Única e Frente Popular. A primeira significa “bater juntos, marchar separados”, na clássica fórmula de Marx (1850) e de Lenin (1921). Bater junto com todos, mesmo com liberais (como reforça Lenin, no cap. 8 do seu Esquerdismo, doença infantil do comunismo), contra um inimigo mais forte, não significa perder a independência de classe. Outra coisa é a Frente Popular, a entrada de organizações operárias em governos e gestões capitalistas. Esta leva à perda da independência de classe. Todavia, os revisores esquerdistas do marxismo são obrigados, para justificar sua posição insustentável, a deformar o marxismo, a apagar os dois conceitos fundamentais – frente única e frente popular – e inventar um termo antes inexistente: o de “Frente Ampla” (que mescla os dois anteriores). Para eles, unidade pontual de ação nas ruas significa necessariamente perder a independência de classe! A isso serve a incrível “teorização” com o pseudo-conceito de “Frente Ampla”! Há maior charlatanice?
É preciso dizer claramente: os que hoje deformam o marxismo para ações esquerdistas querem Bolsonaro no poder até 2022. Eles consideram Bolsonaro o melhor candidato para concorrer com Lula num segundo turno (pois contra outros Lula corre grande risco de perder). Os que falam de “perda de independência de classe” na ida às ruas com setores liberais são na verdade os que querem um governo do PT, espaço nesse governo, verbas desse governo – ou seja, querem fazer uma frente popular. São os mais dispostos à venda da independência da classe trabalhadora. O PCO é somente o mais coerente desses grupos, pois tem coragem de expressar abertamente sua subserviência ao PT (levando sua repulsiva faixa “Lula presidente”). Os demais têm vergonha disso.
Se o movimento hoje tem risco de estagnar, é preciso refletir seriamente sobre como resolver tal problema. Além de quebrar o esquerdismo infantil, é preciso preparar conscientemente um salto de qualidade do conjunto do movimento. Isso consiste em buscar os setores mais amplos de trabalhadores onde eles estão.
Estão errados os que acham que um movimento da superestrutura (meramente político) não pode influir sobre a estrutura (sobre os locais de trabalho). Engels já ensinava que a estrutura determina a superestrutura apenas em última instância, ou seja, que é errado considerar que a superestrutura deixa de agir e mesmo preponderar, em determinados momentos, sobre a estrutura (ver a carta de Engels a Bloch, em setembro de 1890). Assim, é possível que um movimento como o atual, contra o presidente, leve categorias da classe trabalhadora ao movimento. Não há contradição entre lutar pelo impeachment e batalhar para que as categorias da classe trabalhadora entrem em movimento. Nada impede, inclusive, que à pauta do impeachment se somem pautas prementes do conjunto do proletariado, como a luta contra a reforma administrativa de Bolsonaro (que ataca violentamente os servidores públicos) e a luta contra a carestia de vida em geral, que atinge graves proporções (inflação, demissões, desemprego etc.). O movimento atual das ruas deve ser utilizado conscientemente para ajudar a colocar em movimento os batalhões da classe trabalhadora.
Nesta situação, é preciso ser realista. O que está colocado como possibilidade no horizonte não é uma “greve geral”. Essa palavra de ordem hoje é esquerdista, pois na tradição marxista a greve geral antecede a própria tomada do poder; é a paralisação do conjunto dos trabalhadores por vários dias, levando o capital à desagregação e à impotência, assentando um golpe quase mortal no poder oficial.
Isso não é possível hoje, na dimensão da contradição dada pela conjuntura e na ausência de formas de poder proletário. É preciso parar de usar palavras de ordem vazias por pressão dos esquerdistas. O que está colocado como possibilidade real hoje ainda é mais modesto: a paralisação nacional de um dia. Inicialmente uma, mas a se replicar até colocar a classe trabalhadora em movimento, criando novas possibilidades. Como exemplo, temos as paralisações que ocorreram contra Temer. Agora, entretanto, elas podem se fundir com um verdadeiro movimento de massas nas ruas (algo que antes praticamente inexistiu). A junção desses dois fatores – paralisações nos locais de trabalho e movimento de massas nas ruas – pode criar algo de impacto social absolutamente novo, não visto nos últimos muitos anos.
A bola está com as frentes que organizam os atos contra Bolsonaro. Elas são compostas por grandes e poderosas centrais sindicais. Se elas realmente quiserem derrubar o presidente, este é o momento. E ele passará (talvez não retorne). A economia pode se aquecer relativamente nos próximos meses (com a melhora de setores represados pela pandemia), devido ao avanço da vacinação. E o calendário eleitoral pode se impor como fato consumado em poucos meses. Isso tudo pode impedir na prática, em pouco tempo, a retirada do presidente. Agora é o momento de agir, dar o salto de qualidade, levar o movimento das ruas para os locais de trabalho. As atuais frentes já têm capacidade para isso. Se não o fizerem, passarão claramente o seguinte recado à nação: “preferimos lidar com Bolsonaro na urna”. Todo seu protesto contra Bolsonaro, nos últimos anos, se mostrará falso.
Impeachment já!
Bolsonaro na prisão!
Abaixo o esquerdismo que quer esvaziar os atos!
Parar os locais de trabalho contra Bolsonaro e a carestia de vida!