Transição Socialista

Sobre o voto popular em Bolsonaro e o suposto “fascismo”

1. A característica do voto em Bolsonaro

Obviamente, o voto das amplas camadas populares em Bolsonaro neste primeiro turno não é fascista. Na realidade, o grosso da classe trabalhadora vota muitas vezes de forma bastante peculiar: como quem joga algo no lixo, sem se preocupar muito com o futuro daquilo.

O voto não é a questão primordial para a classe trabalhadora, dado que, de fato, muda poucas coisas em sua vida. A classe está mais preocupada com seu trabalho, seu salário, seu emprego, e não com a politicagem, que ela sabe que pouco ou nada muda em seu cotidiano massivo. A estrutura econômica da sociedade é o fundamental e essa é a racionalidade superior da classe trabalhadora em relação à pequena-burguesia.

Ainda assim, já que é forçada a votar, vez ou outra a classe trabalhadora pensa que, se é possível sacanear e se vingar de um pilantra da política aqui ou outro ali durante a eleição, melhor. Se é possível – neste caso a que assistimos no primeiro turno – desbancar os traidores e vendidos do PT, corruptos que roubam nosso dinheiro para nada, tanto melhor. A classe trabalhadora pensa e age de forma pragmática. Ela não está votando pelo fascismo, mas para dar um pequeno castigo. E é Bolsonaro quem aparece como o melhor castigo.

Talvez se houvesse risco iminente de mudança de regime, a classe trabalhadora se importaria mais com seu voto. Ou se houvesse um partido revolucionário que ela visse como seu e quisesse registrar o apoio. Mas, por enquanto, seu voto é voto calado, pontual, para o qual ela não vê grandes consequências, e que serve mais para dar uma lição nos parasitas petistas e associados (tucanos, emedebistas etc.). Assim, o voto do povo trabalhador é volúvel e volátil, totalmente marcado pelas características gerais da participação eleitoral num processo que, todo mundo sabe, intui, ou ao menos pressente, é farsesco. O apoio a Bolsonaro não é um apoio militante, mas uma pequena concessão (forçada) de tempo de vida, que a classe trabalhadora dá à ordem burguesa em seu descanso dominical. Para esse apoio se voltar contra o próprio Bolsonaro é um-dois.

2. A hipocrisia dos petistas frente aos sintomas da barbárie

Para além das fake-news e histeria petistas, é possível que o ataque a LGBTs, negros e mulheres tenha aumentado nesta onda de eleição do Bolsonaro, ao final do primeiro turno? É possível, devido à miséria social crescente (da qual o PT é não só cúmplice, mas um dos maiores responsáveis), em meio à qual se expressa esta eleição.

Mas também é possível que tais fenômenos bárbaros sempre tenham existido em enorme grau, crescente sob os anos do PT, e os petistas e afins nunca tenham se importado ou dado conta, afinal, durante o governo do PT tal setor social pequeno-burguês estava conscientemente ou moralmente realizado.

A população carcerária negra brasileira triplicou, e esse setor social petista, adaptado, não falou um pio. O exército brasileiro invadiu o Haiti (para treinar para depois enfrentar favelas brasileiras) e esse setor não falou um pio. O exército foi usado nas favelas brasileiras, com UPP e outras formas bárbaras, e esse setor não falou um pio (ou literalmente apoiou, como no caso de importantes figuras do PSOL, como Marcelo Freixo). Dilma aprovou a lei antiterrorismo, e esse setor social ficou praticamente calado. Alckmin perseguiu os Black Blocs e a juventude, e os petistas aplaudiram em público e se regozijaram na internet.

O PT fez um reforma da previdência nefasta a partir de 2003, e os petistas não falaram um pio. Quando Dilma iniciou outra reforma nefasta, com o chicago boy Joaquim Levy (da turma de Paulo Guedes), os petistas não falaram um pio. Mas quando Dilma caiu, Temer assumiu e resolveu levar adiante as mesmas reformas, os petistas ficaram indignados como se tivesse advindo o dilúvio sobre a terra.

Não era o fim do mundo, mas apenas o fim do seu mundo.

O que se passa? Há algo realmente novo, ou esse setor social adaptado finalmente começa a enxergar as enormes contradições nacionais, a barbárie que eles próprios ajudaram a criar? Seja como for, é até bom que os pequeno-burgueses comecem a ver as contradições.

3. O grosso da classe trabalhadora não é fascista, racista, homofóbico etc.

A classe trabalhadora brasileira, é claro, tem seus preconceitos, derivados deste modo de produção culturalmente pobre. Quem não compreende isso — e agora fica com medo da maioria da nação — pelo jeito vive em outro país, numa “bolha”. Já quem frequenta importantes fábricas da grande SP e está acostumado a lidar com a massa operária reunida, não se surpreendente tanto com o voto em Bolsonaro, nem com o relativo apoio a seu discurso.

Mas o grosso da classe trabalhadora não é lgbtfóbico, feminicida ou coisa que o valha. Ele não quer atacar LGBTs, negros e mulheres pela rua. Pelo contrário, a classe trabalhadora, apesar de seus preconceitos, é bastante tolerante. É marcada pela tolerância e solidariedade dos que vivem na miséria. Quem é intolerante, histérico e desesperado é a classe média decadente – da qual, aliás, saem muitos dos apoiadores petistas.

4. O colamento das pautas identitárias com o PT o ódio é sobretudo ao PT, e não a tais pautas

“A esperança vai vencer o medo” era o lema dos petistas. Agora a classe trabalhadora fala abertamente que perdeu todas as esperanças e quer ela própria disseminar o medo entre os petistas (ou o que cheire a petismo).

O mal é que se processa um colamento (que não deveria ser necessário) entre as pautas da pequena-burguesia e o PT.

Já analisamos que o setor social militante que dá sustentação ao PT é a pequena-burguesia citadina (veja antigo e importante texto aqui). Trata-se de setor que, com base em sua própria vida e seus parâmetros, considera os problemas verdadeiramente fundamentais da sociedade já resolvidos. Como esse setor tem melhores condições de vida, lê as condições de vida da maioria da população por meio de suas lentes. Como esse setor não sofre com exploração intensa, acha que a exploração capitalista é um problema do passado. Eis que as tarefas fundamentais a serem resolvidas não seriam mais de acabar com a exploração, a extração de mais-valia, a intensidade crescente da jornada de trabalho, mas, simplesmente… resolver costumes e liberdades individuais, sexuais, culturais etc. Tudo dentro dos limites dos direitos do homem e da velha revolução burguesa. O programa pequeno-burguês tem uma base material objetiva muito bem definida.

Em meio à atual situação desesperadora e desoladora das massas trabalhadoras, o PT e seus satélites falam de coisas secundárias como se fossem prioritárias. Diante da exploração crescente, da população na rua, do desalento recorde, das sujeiras impossíveis das grandes cidades, dos lixos revirados, da prostituição crescente de homens e mulheres devido à miséria, da insegurança crescente, da violência e dos assaltos (também produtos da miséria), diante de tudo isso, os partidos de “esquerda” ficam falando de…. gênero e pautas identitárias ou culturalistas!

É mais do que compreensível e legítimo que a maioria da classe trabalhadora brasileira veja esse discurso de forma negativa, não pelo que ele significa em si (não por tais pautas em si), mas porque tira completamente o foco das questões centrais do presente. É a repulsa de quem quer resolver urgentemente seus problemas mais básicos e não aguenta mais ver frente a si pessoas que tergiversam, discursam, enrolam e não lutam nem resolvem nada do que é central.

A não aceitação popular de tais pautas (que leva a casos extremados, absolutamente repudiáveis) se dá hoje mediada pelo petismo, ou seja, graças ao colamento de tais pautas ao petismo. Não é por conta dessas pautas em si, mas pelo fato de elas, justamente por fugirem em grande medida das questões centrais da classe trabalhadora (exploração no processo de trabalho), servirem como luva nas mãos dos charlatões que querem fugir das questões centrais da classe trabalhadora. Os petistas sempre usaram isso para fazer recortes transversais e não falar de luta de classes, de conflito entre capital e trabalho.

Apesar disso tudo, a onda antipetista com essas características irracionais refluirá em pouco tempo, tão logo fique clara a farsa que representa Bolsonaro e seus ideais racistas. Ele não mudará nada de real e necessário no país, pelo contrário, e por isso a população se voltará contra ele e suas características estúpidas e extremadas.

5. É fascismo?

Não se trata de fascismo. Fascismo é o movimento organizado de grupos para-militares externos às polícias e exércitos oficiais, dado que estas deixam de ser absolutamente confiáveis para a burguesia. O fascismo é o método burguês da guerra civil interna a um país, cujo objetivo é destruir as organizações comunistas da classe trabalhadora; é o movimento organizado da classe de pequenos-proprietários, instrumentalizados pela ínfima (numericamente falando) grande burguesia, para exterminar as organizações revolucionárias (comunistas) da classe trabalhadora, que visam a findar com a propriedade privada (tanto da burguesia quanto, em última análise, também da pequena-burguesia). O que há hoje no Brasil, no máximo, é uma pequena-burguesia arruinada, se proletarizando, perdendo suas pequenas propriedades para o grande capital, que até ontem estava umbilicalmente vinculado ao PT. Eis por que a pequena-burguesia odeia o PT: vê-o como responsável pela sua ruína — o que de fato é verdade. Mas também há, além da pequena burguesia arruinada — e isso é o mais importante —, uma classe trabalhadora ainda mais arruinada e revoltada, humilhada, cansada da democracia-burguesa, exigindo resposta rápida aos seus problemas, e contando os dias para explodir como força social, mandando tudo pelos ares.

A classe de pequenos proprietários no Brasil, no campo ou nas cidades, contando em si rentistas, é pequena, pouco dinâmica e pouco capaz de criar organizações de combate contra organizações revolucionárias (até porque, aliás, estas praticamente inexistem). Ela é pouco relevante devido à formação histórica e social peculiar do Brasil e países do cone-sul da América Latina. Se tais organizações pequeno-burguesas de combate forem criadas, tendem a ser frágeis e numericamente limitadas, objetivamente. Eis por que o Brasil tem tradição de governos bonapartistas (populistas autoritários), mais do que propriamente fascistas. Mesmo os integralistas brasileiros foram um piada, expulsos das ruas por minúsculos grupos trotskistas e anarquistas nos anos 1930. Depois, os integralistas foram presos sob o Estado Novo do bonapartista Getúlio Vargas.

Mas se, por ventura, tais organizações de combate da pequeno-burguesia realmente começarem a se desenvolver, elas precisam ser literalmente exterminadas nas ruas (e não apenas em eleições), sem piedade, por grupos de combate das organizações operárias. O PT nunca fará parte disso, e impedirá, em nome da democracia, do pacifismo e da não violência (inclusive com uso da polícia oficial, onde puder) que conflitos dessa natureza se desenvolvam. Assim ele dará mais espaço para tais grupos crescerem.

6. Se não é fascismo, o que pode ser?

Há riscos na eleição de Bolsonaro? Há, não quanto a fascismo, mas quanto a bonapartismo, enquanto tendência geral e necessária do regime, seja com ele, seja com Haddad/Lula. Bonapartismo é um estágio de autoritarismo anterior ao fascismo. Bonapartismo é o recrudescimento do Estado atual. O risco atual e verdadeiro é de transição ao bonapartismo, e não ao fascismo.

Há riscos e sérios com Bolsonaro e Haddad, mas é possível que eles sejam maiores, inclusive, para a burguesia, para a desmoralização das forças armadas, para o envolvimento de todas as instituições na crise social e política, do que para o proletariado — dada a tamanha crise econômica, social e política pela qual atravessa o país.

Há risco, mas ainda, por enquanto, o que vemos, é o proletariado se manifestar, e é normal que ele faça isso com todos os seus traços de atraso, provenientes de uma sociedade miserável e doente como a capitalista, bárbara, que estupidifica os homens. O que ocorre ainda é que o grito de revolta do proletariado, com todo o atraso social contido nele, afugenta a pequena-burguesia, que fica histérica. Adiante, isso também poderá afugentar a burguesia, se esse grito de revolta se entrelaçar e fundir com uma organização proletária de combate.

Os lutadores têm de ter paciência, não sucumbir ao alarmismo e não se deixar impressionar facilmente; seguir adiante, sob fogo cruzado, cientes de que sairão à frente com o dobro de forças. Mas, para isso, somente o método marxista pode dar a calma necessária para enfrentar os desafios de frente. Análises anarquistas e semi-anarquistas (pós-modernas, foucaultianas), justamente por carecerem de instrumental teórico marxista para analisar o que de fato é o fascismo, somente prepararão a capitulação de seus adeptos a um setor burguês.