Transição Socialista

Teto de gastos: Bolsonaro rouba programa da “esquerda”?

Bolsonaro furou o teto de gastos para turbinar o bolsa-família. Agora, toda a dita “esquerda” o denuncia, falando que é uma medida apenas eleitoreira. Será que é por aí mesmo que se deve criticá-lo? O que tal crítica frágil revela sobre a própria esquerda?

Todos viram Bolsonaro (com Guedes) furar o chamado “teto de gastos” na última semana. O “teto de gastos” foi implementado por Michel Temer, em 2016, visando a limitar os gastos públicos federais com base na inflação. O propósito de Bolsonaro agora é turbinar o programa Bolsa Família, rebatizado de Auxílio Brasil (bem como outros programas menores, como um “auxílio-diesel” a caminhoneiros). O valor do novo bolsa família será de R$ 400, pouco mais do que o dobro do valor atual. Sua vigência inicialmente prevista é até o final de 2022. Isso revela um caráter eleitoreiro, como tem denunciado toda a “esquerda”. Mas será que é a partir daí que uma esquerda de verdade
deve fazer a crítica a tais medidas?

Na eleição de 2018, diversos candidatos de “esquerda” – como Boulos – diziam que o “teto de gastos” de Temer era criminoso, pois impediria o desenvolvimento de medidas sociais. Como explicar, agora, que Bolsonaro esteja fazendo o que essa “esquerda” ontem defendia como correta? Teria Bolsonaro se tornado de “esquerda”? Ou tais programas não são propriamente de esquerda? Em O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, Karl Marx revela como os gastos públicos estatais, especificamente com bolsas a miseráveis, era parte do projeto autoritário-populista de Bonaparte. Diz Marx que Bonaparte buscava acessar

“reservas secretas que estavam apenas temporariamente impedidas pela situação de porem seus tesouros ocultos à disposição do povo francês. Para isso, […] propôs a criação de um banco para conceder créditos de honra aos operários. Dinheiro como dádiva e dinheiro como empréstimo, era com perspectivas como essas que esperava atrair as massas. Donativos e empréstimos – resume-se nisso a ciência financeira do lúmpen proletariado, tanto de alto como de baixo nível. Essas eram as únicas alavancas que Bonaparte sabia movimentar. Nunca um pretendente especulou mais vulgarmente com a vulgaridade das massas.” (Marx, O 18 de Brumário, cap. IV)

Na realidade, conceder bolsas aos setores populares em situação de miséria nada tem a ver com um projeto propriamente de esquerda, ou seja, revolucionário/comunista. Na sociedade capitalista – explicou também Karl Marx – dinheiro não se cria por mágica; dinheiro é, invariavelmente, mais-valia capitalizada. O próprio salário pago hoje aos trabalhadores é, na realidade, mais-trabalho operário surrupiado ontem pelos capitalistas (veja-se demonstração clara de Marx em O capital, capítulos XXI e XXII do livro primeiro). Essa é a essência de todos os diversos impostos que mantêm o Estado. De tal forma que conceder bolsas, via Estado, nada mais significa que fazer um setor da classe trabalhadora (produtivo) sustentar outro (improdutivo e miserável). Se se quiser aumentar as bolsas, os “programas sociais”, a “saúde”, a “educação” públicos etc., isso, invariavelmente, sob o capitalismo, significará o aumento do grau de exploração sobre o setor produtivo dos trabalhadores. Somente fora (além) do capitalismo é possível romper com esse ciclo vicioso.

E mais: como também ensinou Marx (capítulo XXIII do livro primeiro de O capital), o sistema econômico capitalista necessita de um amplo setor popular vivendo nas raias da miséria. É o que Marx chamou de superpopulação relativa, que se divide em diversas franjas. A lei geral de acumulação capitalista só pode se manter operante se se mantém um amplo setor miserável pressionando o setor proletário produtivo de valor e de mais-valor. Tal setor miserável, mantido também artificialmente com ajuda do Estado, é fundamental para garantir a elevação do grau de exploração dos que seguem trabalhando. Assim, estes aceitam piores condições de trabalho a cada dia, com o temor da miséria batendo à porta. A concessão de bolsas é necessária para a acumulação capitalista.

Uma esquerda revolucionária, mais do que apoiar criticamente tais bolsas, como “paliativos”, como algo “menos pior” etc., deveria denunciar o caráter essencialmente capitalista dessas medidas; deveria esclarecer que, em nome desse “menos pior” o grau de exploração da classe trabalhadora aumenta ano a ano. E mesmo a miserabilidade não dá trégua, pois a cada crise cíclica milhões de trabalhadores são lançados rapidamente na miséria, desconstruindo todo o suposto “progresso” das “medidas sociais”. Esclarecer tais posições à vanguarda da classe trabalhadora é uma das tarefas mais importantes de uma esquerda que se diga revolucionária. A ilusão no Estado burguês, por parte da chamada “esquerda”, é muito mais deletéria – para a vida dos trabalhadores no longo prazo – do que a manutenção do “teto de gastos”. A ilusão nas mágicas do Estado impede a construção de uma esquerda revolucionária no Brasil.