Muito se discutiu sobre uma possível unidade da “esquerda” brasileira desde que Marcelo Freixo (PSOL-RJ) deu entrevista à Folha de São Paulo apontando ser contrário à unidade com o PT. Freixo estava certo nesse ponto. Os petistas caíram matando e Freixo, titubeando, publicou um vídeo contraditório e vacilante, dizendo que foi mal interpretado. Em seguida, participando do debate, o prof. da USP W. Safatle publicou um texto na mesma Folha defendendo que a alternativa da “esquerda” passaria pela solução de problemas de distribuição de riqueza…
O que importa é que a polêmica recolocou a questão: o que é ser de esquerda? Com quem uma verdadeira esquerda deve se unir?
As duas concepções sobre o termo “esquerda”
Há duas concepções sobre “esquerda”: uma concepção falsa (ultrapassada) e outra verdadeira. A concepção hegemônica hoje, amplamente difundida pelas mídias, pelos analistas, e mesmo pela própria autodenominada “esquerda”, é a falsa. A outra concepção, mais rigorosa, marxista, é a verdadeira e não é usada por quase ninguém.
Há duas concepções porque esses termos foram ressignificados historicamente ao longo de séculos, a partir da Revolução Francesa de 1789.
Como se sabe, a primeira divisão entre “esquerda” e “direita” surge nessa revolução, particularmente no período de funcionamento da chamada “Convenção” (1792). O plenário da Convenção dividia-se em duas partes principais — um grupo à esquerda da sala e outro à direita. Entre ambos havia um setor oscilante (um centro). O grupo à esquerda era o partido dos jacobinos. À direita, o dos girondinos. Os jacobinos representavam a pequena-burguesia urbana e camadas proletárias (trabalhadores e sans-culottes). Os girondinos representavam a grande burguesia (que buscava uma conciliação com a monarquia).
O que importa notar é que em sua gênese a chamada “esquerda” era formada por um bloco indistinto entre pequeno-burgueses e proletários, onde os proletários eram dirigidos pela pequena-burguesia.
Essa primeira conceituação é depois negada, ressignificada, a partir da história e dos acontecimentos do século seguinte, o séc. XIX.
A partir de meados do século XIX (mais exatamente junho de 1848, na França), o proletariado (classe trabalhadora) passa a agir de forma totalmente independente da pequena-burguesia (sem ser dirigido por ela), buscando organizar-se à parte e trazendo políticas mais radicais, mais à esquerda. Isso ressignificou a posição da pequena-burguesia, ou seja, jogou-a para o centro político. O proletariado não se contentaria mais com uma república democrático-burguesa e com reformas, mas almejaria uma república socialista ou comunista, sem propriedade privada (uma revolução). Ou seja, para o proletariado o problema não seria de mera distribuição da riqueza (como era para a pequena-burguesia), mas de produção da riqueza em sua forma capitalista, ou seja, tratar-se-ia de acabar com a exploração do trabalho decorrente da propriedade privada. A tática mais clara do proletariado diante da pequena-burguesia está expressa no texto de Marx e Engels chamado “Mensagem do CC à Liga dos Comunistas” (março de 1850). Seria preciso saber fazer unidade com a pequena-burguesia para derrotar a grande burguesia, mas com a pré-condição de total independência do partido do proletariado em relação ao democrático-pequeno-burguês. Seria preciso lançar palavras-de-ordem sempre mais à esquerda que as da pequena-burguesia, armar o proletariado (organizado em democracia direta) e socializar pela força os meios de produção mais importantes do país.
A partir desse momento histórico (1850), ser de esquerda não significaria mais ser um republicano pequeno-burguês, reformista, interessado em “impostos progressivos”, distribuição de renda, “humanismo”, “educação e saúde públicas” (como se Estado pudesse ser neutro), etc. A partir desse momento, ser de esquerda significaria ser comunista (realizar primeiramente a socialização dos meios de produção). Essa é a concepção verdadeira do termo esquerda hoje (ou seja, a concepção mais rica, que melhor abarca a realidade atual), concepção que é apagada conscientemente pela burguesia e seus agentes pequeno-burgueses.
É só levando-se em consideração essa concepção verdadeira (marxista) que se pode compreender como o comunista russo Leon Trotsky falou que partidos muitas vezes vistos pelo senso-comum como “ultra-radicais” são, na verdade, centristas (ou seja, partidos que capitulam à pequena-burguesia). Talvez o exemplo mais significativo seja o do partido espanhol POUM — Partido Operário de Unificação Marxista —, que lutou na Guerra Civil Espanhola durante metade da década de 1930, armando o proletariado contra a monarquia. Trotsky tachou tal partido de centrista por conta de sua posição dúbia diante da IV Internacional e diante da participação desse partido no governo republicano burguês espanhol.
Aplicação à realidade brasileira
Assim, quando a grande mídia e o senso-comum falam de “esquerda”, “direita” ou “centro”, eles na verdade têm em mente a primeira concepção, há bem mais de um século superada pela história. Para esses setores, a esquerda seria a que tem uma abstrata “preocupação com o social” (distribuição de renda, “igualdade”) e a direita a que representa apenas os interesses do mercado (capital). E assim, num passe de mágica, o senso-comum pode tachar o PT como “de esquerda”, o MDB como de “centro” e o PSDB como de “direita”! Para esses setores, o PSOL seria de “extrema esquerda”, um partido “radical”…
A verdade, no entanto, é muito diferente disso. A concepção de mundo da burguesia, como sempre, só serve pra deixar as coisas turvas e criar confusão, a ponto de hoje não se entender mais o que é direita e esquerda (e nas redes sociais chega-se a dizer, por exemplo, que o nazi-fascismo era de esquerda!). Essa total confusão é, por si só, uma prova completa da falência desses conceitos em sua forma burguesa.
A verdade é que o PT, MDB e PSDB são partidos de direita. Não há hoje nenhuma diferença no que esses partidos defendem em política econômica. São agentes corrompidos do grande capital em nosso país. O PT nunca foi de esquerda. Na concepção correta (marxista), o PT nasceu como um partido centrista. Ou seja, nasceu como um partido com programa pequeno-burguês — basta ver o programa da origem do PT — e com base na aristocracia operária (setor mais privilegiado dos operários). A aristocracia operária em geral tem posições políticas reformistas; tem uma mentalidade pequeno-burguesa. O PT migrou aceleradamente do final da década de 1980 até o final da década de 1990 do centro para a direita. Na virada para os anos 2000, o PT já era um partido hegemonicamente burguês e de direita, apresentando seus bons serviços ao grande capital (o que se consolidou com a eleição de Lula em 2003, quando o PT se tornou a espinha dorsal da nefasta ordem burguesa no país).
É curioso notar que em 1979/1980 alguns marxistas tinham clareza de que o PT seria um partido centrista. Até mesmo o argentino Nahuel Moreno, por exemplo, defendia conscientemente que o PT tinha de ser construído como um partido centrista e legal de massas (para dentro dele disputar setores operários). A ideia de que o PT seria propriamente de “esquerda” no início de 1980 só poderia ser fruto da ignorância em relação à teoria marxista.
Levando em consideração essa concepção verdadeira (marxista) do termo “esquerda”, é necessário constatar que o PSOL não é de esquerda. A direção do PSOL, seus parlamentares e a maioria desse partido não são de esquerda, mas de centro. O mesmo vale para Guilherme Boulos. Freixo e Safatle negam a unidade com o PT (devido ao alto grau de putrefação deste), mas propõem ao PSOL… o programa centrista do PT dos anos 1980! Não aprenderam nada com os erros históricos. É verdade que o PSOL tem muitas correntes diferentes, mas o setor mais próximo de uma esquerda verdadeira nesse partido é bastante minoritário.
Aliás, a constatação principal que deve ser feita, de um ponto de vista rigoroso, é a de que não existe hoje propriamente esquerda no Brasil. Existe um pequeno setor de lutadores que intenta ser de esquerda, mas é ainda minoritário, sem expressão real na luta de classes, localizado em alguns partidos, como uma ala bastante pequena do PSOL, uma parte minoritária do PCB, uma parte significativa do PSTU, e outros agrupamentos pequenos e independentes, espalhados ao redor do país (entre os quais, pensamos, estamos incluídos). Há evidentemente matizes — graus diferentes de adaptação a programas pequeno-burgueses —, mas que podem se expressar enquanto diferenças relativamente saudáveis, na medida em que apontem para uma maior unificação e superação de limitações. Só assim essa esquerda, praticamente inexistente, começará a crescer e a ter influência real entre a classe trabalhadora.
A ausência de uma esquerda de verdade em nosso país faz com que ganhe força e se amplie a confusão conceitual entre “esquerda” e “direita” produzida pela burguesia e seus lacaios pequeno-burgueses.
Quando o PT fala de “unidade da esquerda” — para defender Lula e seu “direito de ser candidato” —, isso significa apenas que quer submeter possíveis setores de esquerda à burguesia (para que nada fuja do controle). Quando nós da TS falamos de uma unidade da esquerda (veja aqui), isso significa uma possível unidade da esquerda radical do PSOL com o PSTU e outros pequenos setores, para criar melhores condições para a construção da verdadeira esquerda amanhã. São dois caminhos diametralmente opostos. O PT, para confundir — o que faz de melhor —, usa o conceito burguês e ultrapassado. Os comunistas devem saber separar o joio do trigo, ser rigorosos e atentos à verdade e à realidade. O PT não é de esquerda, o PSOL não é de esquerda, Boulos não é de esquerda. Uma verdadeira esquerda ainda nascerá neste país.
Pela unidade da esquerda para abrir um caminho novo na classe trabalhadora brasileira! Pela construção da esquerda — comunista e revolucionária — que não teme dizer seu nome, que não teme enterrar o PT junto com os demais bandidos burgueses!