Transição Socialista

Ascensão e queda do Programa de Transição Parte 1

Por Rafael Padial

Publicamos abaixo a primeira de três de um estudo de 2012 sobre a história do Programa de Transição de Trotsky e seu lugar dentro do movimento trotskista. As próximas partes serão publicadas nas próximas semanas.

PARTE 1 – A GÊNESE HISTÓRICA DO PROGRAMA

Neste texto buscamos refletir sobre a história da IV Internacional à luz do Programa de Transição de Leon Trotsky, particularmente à luz do processo de apagamento ou esquecimento desse programa entre os próprios trotskistas, processo que se deu nas décadas de 1950 e 1960 e constitui, até hoje, nos parece, um dos motivos da fraqueza da IV Internacional (e está por trás, em parte, das suas muitas divisões).

O Programa de Transição foi escrito por Trotsky em 1938 para ser a estratégia da nova organização internacional da classe trabalhadora, ou seja, foi escrito para ocupar o lugar da estratégia geral e comum de todas as seções da IV Internacional no chamado “período de transição”, o período que se estende do presente à tomada do poder pela classe trabalhadora em âmbito mundial. Para Trotsky, a estratégia do proletariado é internacionalmente comum, pois está submetida à situação objetiva da totalidade do sistema capitalista.

O correto prognóstico de Trotsky

As duas décadas do pós Segunda Guerra Mundial foram determinantes para o futuro do movimento trotskista internacional. Nesse período a IV Internacional tentou, sem sucesso, se alçar à altura das grandiosas tarefas às quais estava destinada, segundo o prognóstico de Trotsky.

Trotsky, morto em agosto de 1940, era extremamente otimista em relação às possibilidades revolucionárias que seriam abertas pela guerra que se iniciava. Afinal, a Guerra Franco-Prussiana de 1870 conduzira à Comuna de Paris e a Primeira Guerra Mundial à Revolução Russa de 1917. Para Trotsky, uma guerra era um momento excepcional em que as condições objetivas e subjetivas da revolução poderiam confluir. Como escreveu em 1940:

“Muitas vezes na história a guerra foi a mãe da revolução, precisamente porque sacode até suas próprias bases os regimes já obsoletos, debilita a classe governante e acelera o crescimento da indignação revolucionária entre as classes oprimidas. […] A guerra, recordemos uma vez mais, acelera enormemente o desenvolvimento político. Esses grandes objetivos que ontem não mais nos pareciam estar tão longe, senão há décadas de distância, podem delinear-se a nós diretamente nos próximos dois ou três anos, ou ainda antes.” [1]

Em linhas gerais, tais previsões se confirmaram: a guerra foi mãe e rainha de um cataclisma político e econômico e o pós-guerra assistiu a um ascenso revolucionário em escala global sem precedentes. O esmagamento do nazismo deixou um vazio político em diversos países então ocupados pelas potências do Eixo. Na Grécia, por exemplo, ocupada pelas tropas alemãs e italianas até 1944, o proletariado armado durante os anos de resistência à ocupação se negou a entregar suas armas, dando início à guerra civil. [2]  A Europa arruinada se encontrava em situação dramática e os primeiros anos do pós-guerra não anunciavam recuperação econômica, afetando todo o mercado mundial. [3] Os stalinistas esforçaram-se, em todos os lugares onde puderam, para dizimar qualquer gérmen de duplo poder. Na França, por exemplo, ficou famosa a seguinte frase do dirigente do Partido Comunista Francês, Maurice Thorez: “Un seul État, une seule armée, une seule police” (“um só Estado, um só exército, uma só polícia”). Na Alemanha, apesar da desorientação do proletariado após onze anos de regime fascista e quatro de guerra, e apesar da economia desagregada, um setor relativamente grande da classe trabalhadora viu no esmagamento do nazismo e na chegada do Exército Vermelho a ocasião da própria revolução socialista. Nos bairros operários bandeiras vermelhas foram estendidas nas janelas (e em seguida retiradas por ordem do exército vermelho). Nas zonas de ocupação soviética, conselhos operários foram constituídos por empresa (Betriebsräte) para reorganizar a vida econômica e passaram a exigir também o controle político (negado pelo partido comunista). Na Tchecoslováquia, o Exército Vermelho desarmou à força milhares de operários constituídos em comitês ou conselhos de empresa. Nos países coloniais, cujas metrópoles ruíram, iniciou-se grande ascenso das massas oprimidas. A periferia do Oriente-Médio, a Indochina (compreendendo o Ceilão), a Argélia, o Irã, a China e o Vietnã são exemplos bastante conhecidos. Na América Latina, ao final da década de 1940, particularmente a Bolívia caminhou para uma situação revolucionária, que derrubou o governo burguês em 1952. O abalo atingiu também os EUA: de maio de 1945 a junho de 1946 mais de 5 milhões de trabalhadores, entre eles muitos do setor fabril, radicalizaram em greves. As tropas americanas espalhadas pelo planeta reivindicaram, em tom radical, retorno aos EUA – em alguns casos organizando comitês de mobilização e publicando declarações com caráter revolucionário –, forçando o Congresso dos EUA a reunir-se em urgência para desmobilizar o exército. [4]

Entretanto, mesmo reinando o impasse e a confusão entre a grande burguesia, mesmo havendo insatisfação e desejo de mudança na pequeno-burguesia, mesmo havendo disposição revolucionária por parte do proletariado e um programa revolucionário, o Programa de Transição, a guerra não tornou-se imediatamente revolução devido à ausência da vanguarda proletária com influência de massas e às traições sistemáticas e vergonhosas do stalinismo.

Cabe então perguntar: o que aconteceu com o trotskismo? Por que o trotskismo não conseguiu, nunca, ocupar o lugar na história que lhe havia sido reservado? Seria meramente porque era fraco, ou haveria outro elemento? Se é verdade que a realidade é sempre mais complexa que planos pré-concebidos, é verdade também que a poderosa previsão de Trotsky se confirmou com perspicácia em suas linhas gerais – exceto pela questão do partido.

Na verdade, como veremos, no pós-guerra, particularmente a partir do final de 1948 e início de 1949, o trotskismo mostrou-se cada vez mais desorientado. Em nome de uma suposta nova conjuntura política mundial, o trotskismo afastou-se seriamente, a partir do início da década de 1950, das concepções programáticas contidas no Programa de Transição e, nesse mesmo processo afastou-se de uma concepção dialética de programa e sucumbiu ao empirismo. Trata-se, como já se estudou, do processo de esquecimento do programa marxista (portanto, também da dialética), mas desta vez particularmente referente ao Programa de Transição. [5]  Como veremos, esse processo de apagamento da estratégia geral da revolução levou a alguns problemas correlacionados, que caracterizarão o trotskismo (e o caracterizam até hoje): 1) o retorno à concepção programática não dialética característica da social-democracia na Segunda Internacional (que teve relativa importância em outro período histórico, no qual as forças produtivas capitalistas ainda se desenvolviam, ou seja, até o final do século XIX); 2) ao internacionalismo concebido de forma abstrata (empírica), baseado nos “fatos” jornalísticos da conjuntura mundial, carente de estratégia comum; e 3) às divisões/polêmicas profundas em cima de questões meramente táticas ou secundárias.

É verdade que não se deve fazer um fetiche a respeito do Programa escrito em 1938; ele pode ser adaptado, caso a situação objetiva efetivamente mude, bem como caso a experiência da classe operária nos aponte outro caminho. Entretanto, até hoje, nos parece, todas as supostas atualizações do Programa de Transição fizeram a concepção programática marxista retornar aos padrões do século XIX, antes da tomada do poder pelos bolcheviques em 1917 e em geral antes, inclusive, da síntese programática contida no próprio O capital de Marx. [6] A premissa econômica fundamental de Trotsky no Programa de Transição, sempre relativizada pela chamada “esquerda”, mesmo pela trotskista, nos parece ainda completamente atual: as forças produtivas capitalistas pararam de crescer e, assim, os desenvolvimentos técnicos não levam a um aumento no nível de vida das massas. [7] O que a burguesia dá com uma mão, retira em dobro com a outra.

Sobre a importância histórica e a vigência do Programa, não se deve esquecer o próprio comentário de Trotsky em 1938:

“Este programa não é a invenção de um homem. É o resultado da longa experiência dos bolcheviques. Eu repito: este programa é a concretização da longa experiência coletiva dos revolucionários. É a aplicação dos velhos princípios à situação atual. Ele não deve ser considerado como definitivamente gravado no mármore, mas como adaptável à situação objetiva.” [8]

Gênese do Programa de Transição

Antes de avançar, porém, na análise do esquecimento do Programa de Transição, cabe retomar algumas palavras sobre a sua gênese histórica, sobre a sua ascensão.

A noção de transição, como se sabe, surge no período sadio da Terceira Internacional (ou seja, até o seu IV Congresso, de 1922) [9]; surge justamente da tentativa de se superar a compreensão não dialética da social-democracia (Segunda Internacional), que opunha ao programa máximo (tomada do poder) um programa mínimo (reivindicações básicas, usuais no movimento sindical, por salário e emprego). O problema era que, pensavam os bolcheviques, entre esses dois programas havia um abismo – o programa mínimo não levava necessariamente ao máximo, não havia ponte; a chance do proletariado se perder no meio do caminho era grande. A ponte entre um programa e outro, se é que existia, era constituída de material muito frágil, e a passagem das massas sobre ela tenderia a fazê-la desabar. O mínimo não tinha como pressuposto o máximo, necessariamente, dialeticamente, e assim a reivindicação mínima não levaria, necessariamente, à máxima. Pensavam os revolucionários educados por Lenin que era fundamental encontrar a forma de estruturar solidamente essa ponte entre as necessidades mínimas das massas e a tomada do poder. [10]

Mas entre querer encontrar essa sólida ponte, essa forma dialética que vincula necessariamente o mínimo ao máximo, e de fato encontrá-la, há uma dificuldade real, que somente a experiência de luta da classe trabalhadora poderia fazer superar. A III Internacional, no meio de seu esforço histórico por tal síntese, de superação da dicotomia “mínimo” X “máximo”, foi paralisada e tomada pelo stalinismo, e rapidamente o movimento comunista voltou a trabalhar com a oposição não dialética entre programa mínimo e máximo, característica da social-democracia, lançando por terra os esforços de Lenin e demais dirigentes bolcheviques.

Entre os que elaboravam a tática e a estratégia da III Internacional até o período sadio (período em que, reafirmamos, já se começava a trabalhar com a noção de transição, o que é uma mudança conceitual fundamental para a superação da dicotomia “mínimo” versus “máximo”), somente restou Trotsky. [11] Sua fundamental História da Revolução Russa (do começo da década de 1930) pode ser lida, sobretudo, como um esforço de síntese do processo revolucionário russo para que se compreenda o que a própria classe fez, ou melhor, para “devolver” à classe, de forma teórica sistemática, o que ela mesma produziu. [12]

Outro ponto alto dessa sistematização teórica da experiência da própria classe, mas já com alto grau de síntese, é o Programa de Ação Para a França, escrito por Trotsky em 1934 (quando se encontrava escondido na França), para ser o programa da futura seção francesa da IV Internacional. A ele vamos nos ater rapidamente, justamente por ser sempre lembrado como um proto-Programa de Transição. Nesse programa para a França já aparece o desenvolvimento geral que em 1938 constará no Programa de Transição: parte-se da luta sindical operária por salário e emprego para se abrir, por meio dela, a dualidade de poder que, ampliando-se e generalizando-se, articulando setores proletários e populares cada vez mais amplos, resulta na derrubada do Estado burguês e na tomada do poder (ou seja, o que ficou conhecido, depois, como a “via soviética” rumo à ditadura do proletariado). Entretanto, há no Programa de Ação para a França, se comparado com o Programa de Transição, uma diferença fundamental: parte-se realmente das reivindicações mínimas, das reivindicações sindicais usuais do movimento operário, para delas tentar desencadear a via da dualidade de poder. Ou seja: não se parte, como no Programa de Transição, das escalas móveis de salário e de horas de trabalho combinadas (as reivindicações que serão chamadas de “transitórias” por Trotsky) – elas nem mesmo existem nesse programa para a França –; parte-se da luta sindical pela diminuição das horas de trabalho para 40h semanais e da reivindicação de “aumento geral dos salários”, para se abrir, a partir daí, o poder operário paralelo ao poder burguês. [13]

Cabe obviamente perguntar: como superar o programa mínimo da social-democracia e abrir de fato um processo transitório de dualidade de poder se se parte, na prática, do mesmo programa que a social-democracia? Só pela vontade, pela consideração mais profunda da conjuntura? A verdade é que a experiência histórica ainda não havia dado resposta a esse problema (e, de fato, a experiência bolchevique fôra muito peculiar; misturara, desde fevereiro de 1917, reivindicações sindicais usuais com reivindicações democráticas e reivindicações contra a guerra, abrindo, a partir da combinação explosiva de todas elas, a dualidade de poder). No Programa de 1934 para a França, apesar de toda a vontade consciente, o conteúdo ainda ia além da forma; buscava-se um conteúdo transitório, mas a forma que este assumia o neutralizava, lançando, na prática, novamente, a luta para a oposição não dialética entre mínimo e máximo.

O que provocou a modificação tão profunda entre o Programa de ação para a França e o Programa de Transição? O que se passou entre 1934 e 1938 para que se mudasse definitivamente a forma inicial do programa de Trotsky? Pensamos que dois elementos fundamentais: a greve geral francesa de 1936 e a relação estreita do revolucionário russo com o movimento sindical norte-americano.

Entre 1934 e 1938 ocorreu, justamente, a importante greve geral francesa de junho 1936 (que, a rigor, se estendeu até a Bélgica). Trotsky caracterizou a situação como o início da revolução na França. Diante da crise crescente na economia francesa (e mundial) na década de 1930 e o rebaixamento do nível de vida das massas, os setores mais dinâmicos da classe trabalhadora francesa se colocaram em luta. A demissão de dirigentes sindicais fez estourar um processo de greves que logo unificaram-se em torno das reivindicações tradicionais do movimento operário (justamente as reivindicações pela diminuição da jornada para 40h e por um “aumento geral dos salários”, ou seja, as mesmas contidas no Programa de ação para a França, escrito dois anos antes). Com a radicalização do movimento, iniciou-se uma onda de ocupações de fábricas e criação de Comitês de Fábrica (os passos iniciais da dualidade de poder), que durou mais de um mês. No dia 10 de junho de 1936 os operários deram um ultimato à burguesia, ameaçando colocar as fábricas para trabalhar por conta própria, caso suas reivindicações não fossem atendidas. A situação era revolucionária e os operários estavam a um passo de dar um golpe decisivo no poder burguês no coração da Europa. A burguesia, morrendo de medo, deu os anéis para não perder os dedos; cedeu em tudo (e teve medo, inclusive, de reprimir a greve, pois isso poderia gerar uma contrarresposta e radicalização por parte do movimento operário). O “Acordo de Matignon”, firmado então, aceitava a redução da jornada para 40 horas semanais, com direito a férias, o aumento geral dos salários reivindicado, a readmissão dos dirigentes sindicais demitidos e o reconhecimento dos delegados sindicais por empresa. Os stalinistas (que dominavam os principais sindicatos metalúrgicos) e os socialistas logo aceitaram a proposta e rapidamente se lançaram na desarticulação da greve e das ocupações. Tiveram sucesso e conseguiram, assim, salvar a ordem burguesa mais uma vez.

Trotsky se pôs a refletir seriamente sobre aquela experiência. Como foi possível chegar tão perto e, entretanto, não avançar para a tomada o poder? Qual foi o passo em falso no processo? Como foi possível não avançar no caminho legado pela experiência de 1917? Teria sido apenas a capacidade desarticuladora do stalinismo? Segundo o revolucionário russo, o problema era mais profundo, era também programático: “Os operários (…) não a levaram [a pressão sobre a burguesia] até o fim. Revelaram a sua potência revolucionária, mas também sua fragilidade: a ausência de programa e de direção”. [14] Entretanto, não era exatamente aquele programa mínimo reivindicado [semana de 40h e aumento salarial] o que constava no Programa de ação para a França? Como dizer que os operários não tinham programa se, desde 1934, aquele era de fato o programa sindical da seção francesa da futura IV Internacional e, a partir de tais reivindicações, se abriu a via da dualidade de poder que se espalhou pelo país? Ao que nos parece, Trotsky se põe a refletir sobre as consequências daquele programa redigido por ele mesmo. Como diz:

“A oligarquia financeira, que realiza negócios magníficos no pior da crise, pode certamente acomodar-se com a semana de 40 horas, as férias pagas, etc., mas centenas de milhares de médios e pequenos industriais, sobre os quais se apóia o capital financeiro e sobre quem ele agora faz recair os custos de seu acordo com Blum [presidente francês pela Frente Popular] devem, seja arruinar-se docilmente, seja tentar, por seu turno, fazer cair os gastos das reformas sociais sobre os operários e camponeses, assim como sobre os consumidores em geral”. [15]

Assim, o acordo que pôs fim à greve geral era relativamente aceitável para o grande capital. Para este, era importante aceitar o acordo para não perder a propriedade dos meios de produção, mas era preciso miná-lo no médio e longo prazo, para não ver minada a su própria economia, graças à ruína dos capitais menores. Para o grande capital, tratava-se de aceitar o acordo para desbaratar o movimento grevista e preparar a contra-ofensiva, retomando o terreno econômico. O acordo tinha essa fragilidade: permitia ao capital, no médio e longo prazo, jogar os custos da crise novamente sobre os ombros da classe trabalhadora e das camadas médias. Como isso seria feito? Explicava Trotsky: “via redução dos custos de produção [ou seja, demissões] e inflação”. Como disse Trotsky, os operários já “protestam contra o fato de que o aumento dos preços, que apenas começou, possa devorar suas conquistas”. [16]

O fragilidade desse programa era a seguinte: ele podia ser momentaneamente atendido, facilitando a desarticulação da luta, e abria uma situação em que a burguesia poderia passar seu débito à classe operária. Pior: não só à classe operária, mas também às classes médias (a pequeno-burguesia do campo e da cidade), para as quais a burguesia poderia falar que a responsável pelo novo débito era a “aventureira” classe operária grevista. Dessa forma a burguesia podia jogar a pequeno-burguesia contra a classe operária, criando objetivamente as bases para o fortalecimento do fascismo (que, como se sabe, é a mobilização dos setores médios pelo grande capital contra a classe operária). Explica Trotsky:

“Tendo em suas mãos todas as alavancas fundamentais da indústria, do crédito e do comércio, os magnatas das finanças fazem recair os custos do acordo [de Matignon] sobre as ‘classes médias’, obrigando-as dessa forma a entrar em luta contra os operários. Atualmente, esse é o nó da situação”.

Trotsky levou em consideração tudo isso. Foi refletindo seriamente sobre a experiência da greve geral francesa de junho de 1936 que ele se afastou do programa redigido por ele mesmo em 1934 para a seção francesa, o Programa de ação para a França. Mas, além disso, também será determinante para a formulação do Programa de Transição, como dissemos, a relação de Trotsky, já no México (único país que o acolhera, ao final de 1936, após ser expulso da Noruega), com os operários norte-americanos, sobretudo as discussões com os dirigentes do Socialist Workers Party (SWP), a futura seção norte-americana da IV Internacional.

Lembremos uma importante passagem dessas discussões, justamente sobre a escala móvel das horas de trabalho. Diz Trotsky:

“Mas, no fundo, o que é essa reivindicação [escala móvel das horas de trabalho]? Na verdade, é a descrição do sistema de organização do trabalho na sociedade socialista. O número total de horas necessárias divididas pelo número total de trabalhadores. Mas, se apresentarmos logo de início o sistema socialista, nós seremos chamados de utopistas pelo americano médio, que dirá que essas são ideias importadas da Europa. (…) É o próprio programa socialista, mas na sua forma mais simples e mais próxima das massas.” [17]

Como se vê, Trotsky está preocupado, na sua discussão com os dirigentes do SWP [18], em estabelecer o programa que de forma mais direta e imanente se vincule à característica dos operários americanos. Não é possível, para esse meio sindical, trazer “idéias importadas da Europa”. A Europa, por todo o seu passado – revoluções pequeno-burguesas, burguesas, etc. –, tinha uma tradição de politização. Na Europa o “salto” do “econômico” ao “político” (para ainda usar a distinção mecânica, não-dialética, da segunda internacional) era mais fácil, devido à sua história política particular. Já na América, não; na América, o abismo entre o “econômico” e o “político” era gritante e exigia, necessariamente, um aparente “econômico” que fosse, em essência, “político”; um “econômico” que contivesse em si mesmo um “político”, ou seja, um programa que não fosse, ao mesmo tempo, nem econômico nem político, e fosse, ao mesmo tempo, econômico e político, ou seja: um programa dialético, transitório. Sem ele, em países como nos EUA, o “salto” que levava das reivindicações usuais para a abertura da dualidade de poder estaria muito comprometido; o que ocorrera na França em 1936, com a generalização da dualidade de poder a partir da luta sindical, dificilmente ocorreria nos EUA, e a luta tenderia a ser sempre apenas sindical em âmbito estreito (mínimo).

Nessa discussão, como em diversas outras com os membros do SWP, Trotsky desenvolve sua análise sobre o proletariado americano: “É verdade que a classe operária americana tem uma mentalidade pequeno-burguesa, que carece de solidariedade revolucionária, que está habituada a um nível de vida elevado (…)”. O próprio título original dessa discussão, significativamente, é: “O atraso político dos trabalhadores americanos”. Há outra interessante discussão, intitulada também significativamente “Comparação entre os movimentos sindicais dos EUA e da Europa”. [19] Buscava-se, portanto, um programa que partisse, de forma imanente, das próprias características dos operários norteamericanos; buscava-se estabelecer um programa justamente para as camadas mais atrasadas e conservadoras, mais “adormecidas” (do ponto de vista da consciência política, ou seja, aqueles que querem apenas conservar suas condições de vida) do proletariado mundial.

Assim, a gênese do Programa de Transição baseia-se no resgate da estratégia geral, dialética, contida em O capital de Marx; na sistematização da maior revolução feita pela classe operária até hoje, a de 1917 (sistematização, expressa na História da Rev. Russa, que consolidou de vez e legou a via soviética, da dualidade de poder); e na relação direta de Trotsky com países mais avançados que a Rússia – primeiramente a França e depois, sobretudo, os EUA –, que colocaram de forma urgente a necessidade de uma síntese programática, uma articulação e um ordenamento de reivindicações que partissem de um aparente “mínimo” (na verdade, transitório) que contivesse dentro de si, como pressuposto, o máximo: a combinação da escala móvel de salários e da escala móvel das horas de trabalho.

Fim da primeira parte. Na próxima parte deste artigo, a ser publicada na próxima semana, mostraremos em detalhes, com materiais de época, como as escalas móveis eram defendidas pelo trotskismo em seu momento sadio. Trabalharemos também como, quando e porque elas começaram a desaparecer, o que resultou no processo de declínio do Programa de Transição.


NOTAS:

1. Manifesto da Quarta Internacional sobre a Guerra Imperialista e a Revolução Proletária Mundial, preparado para a conferência de emergência de 1940 da IV Internacional. Disponível em: <http://marxists.org/portugues/trotsky/1940/05/manifesto.htm>. Em discussão com os membros do SWP sobre o Programa de Transição, Trotsky expressa muitas vezes seu otimismo em relação às possibilidades que a guerra abriria. Por exemplo: “[…] porque esta guerra começará onde a última terminou. […] E a revolução virá não após 4 anos, mas antes, após alguns meses. Se entrarmos nesta guerra temperados e fortalecidos, e se formos capazes de transpor os obstáculos do primeiro período com coragem, nos tornaremos uma força decisiva nos EUA e demais países”. “A summary of transitional demands”, in: TROTSKY, Leon. The Transitional Program for Socialist Revolution. Pathfinder Press. New York, 2001, p. 127.

2. Relata Jean-Jacques Marie que Winston Churchill, na Câmara dos Comuns da Inglaterra, em 19 de dezembro de 1944, denunciou o “trotskismo triunfante” na Grécia. Como relata o mesmo historiador, na verdade o “trotskismo” grego não era tão numeroso e se tratou de uma radicalização do proletariado, que influiu sobre o próprio Partido Comunista Grego (KKE). MARIE, JJ. Le trotskysme et les trotskystes. Armand Colind, Paris, 2004, p. 96.

3. Em 1950 o comércio mundial em relação ao PIB era ainda um terço menor que em 1913. Cf. MARIE, JJ. Ibidem, p. 108.

4. Até aqui, segundo JJ. Marie, op. cit., pp. 95-105.

5. Cf. BENOIT, Hector. “O desenvolvimento (dialético) do Programa”, in: Revista Crítica Marxista n. 4, São Paulo: Xamã, 1997. Do mesmo autor, “Reflexões sobre o esquecimento do programa marxista”, in: TROTSKY, L. O Programa de Transição. Ed. Tykhe. São Paulo, 2009.

6. Sobre ela, cf. Cf. BENOIT, H. “Sobre a crítica (dialética) de O Capital”, in Revista Crítica Marxista, número 03, São Paulo: Xamã, 1996.

7. A relativização dessa premissa fundamental do Programa de Transição foi feita pela primeira vez, de forma sistemática, pelo trotskista belga Ernest Mandel, baseado na teoria econômica das ondas longas de N. Kondratiev. Cf., de Mandel, os livros Capitalismo tardio (São Paulo: Nova Cultural, 1985, coleção os Economistas) e Le troisième age du capitalisme (Paris: Union Générale, 1976). A tese já aparece em seus artigos na primeira metade da década de 1960, como “A economia do neo-capitalismo”, de 1964, e já bem estabelecida no seu livro Iniciação à teoria econômica marxista, de 1967. Como veremos, a premissa sobre a qual baseia-se Trotsky (de que as forças produtivas não mais se desenvolvem), relativizada por Mandel, é chave para pensar o caráter das reivindicações transitórias. É justamente o questionamento dessa premissa que permite o apagamento das reivindicações transitórias, as “escalas móveis”, do programa trotskista.

8. “Discussão dos membros do SWP com Crux (Trotsky) sobre o Programa de Transição”, in: TROTSKY, L. O Programa de Transição. Op. Cit., p. 94. Ainda, sobre o peso histórico do Programa de Transição, não se deve esquecer jamais que Trotsky o concebeu durante a década de 1930, uma das décadas mais complexas do séc. XX (pós crise de 1929; durante a derrota do PSDA e do PCA para Hitler e a ascensão do nazismo; durante a Rev. Espanhola; durante a ascensão da Frente Popular na França, etc). Trotsky, como se sabe, após a ascensão do nazismo, constatou que a III Internacional, calada, estava morta para a revolução e seria necessário erguer uma nova. A partir daí começou a pensar no programa da nova internacional. Escreveu, à época, que provavelmente demoraria cerca de 3 meses para redigir o esboço geral do programa da nova internacional. Entretanto, finalizou o programa somente 5 anos depois, em 1938. Nesse período, não temos dúvida, Trotsky refletiu profundamente sobre a questão do programa, elaborou e reelabrorou suas análises e sínteses. O Programa, escrito para orientar todas as seções da IV Internacional, é resultado de uma longa reflexão do líder bolchevique e não pode, como faz o trotskismo, ser abandonado na estante como apenas um entre seus textos; atualizado por análises superficiais de fatos conjunturais.

9. BENOIT. “O desenvolvimento (dialético) do Programa”, op. cit.

10. O esforço para se encontrar essa “ponte” é já o centro da reflexão dos marxistas revolucionários na virada do século XIX para o XX. Trata-se da luta para superar o oportunismo crescente na social-democracia. Basta ver Reforma e Revolução de Rosa Luxemburgo (onde, diga-se de passagem, não há espaço para a defesa de reformas, conforme geralmente se supõe ou se comenta), ou, ainda, Que Fazer? de Lenin, onde a reflexão central é: que fazer para a classe trabalhadora saltar da consciência sindical para a partidária? Os setores revolucionários da social-democracia buscavam superar os limites intelectuais e práticos generalizados no marxismo pela lógica dominante da Segunda Internacional na última quinzena do séc. XIX. Assim fazendo, rompendo com o marxismo vulgar, retornavam aos poucos, na verdade, ao método dialético contido em O capital, método que Marx demorou mais de 20 anos para elaborar e que foi apagado pela social-democracia alemã (não sem protestos de Marx, já em idade bastante avançada). Esse processo, desenvolvido pela ala esquerda da social-democracia e, depois, pelos bolcheviques, é paralisado pela troika Stálin-Zinoviev-Kamenev já em 1924, e não se chega numa solução conceitual para o problema entre os bolcheviques na URSS.

11. Como comenta o prof. Benoit no texto supracitado sobre o Programa, Lenin e Rádek também participaram, junto com Trotsky, da formulação da nova estratégia da III Internacional (estratégia que concebeu o programa a partir da noção de transição). Entretanto, Lenin fica debilitado em 1923 e morre em 1924, e Rádek capitula ao stalinismo durante os expurgos violentos que mataram a geração que dirigiu a revolução. Somente Trotsky se mantém como herdeiro do esforço de elaboração da estratégia que supera o programa social-democrata não dialético.

12. “Devolver” está entre aspas no corpo do texto justamente porque questionamos a ideia de que a “consciência socialista vem de fora” da classe trabalhadora. Essa ideia, ausente em Marx (para quem, como se sabe, a “emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora”), foi generalizada a partir de K. Kautsky na Segunda Internacional, no mesmo período e no mesmo processo em que se desenvolveu o programa não dialético, o marxismo vulgar no seio da social-democracia. Essa concepção é tributária da mesma lógica que separa o programa em “mínimo” e “máximo” porque caberia ao partido, enquanto um elemento externo, injetar marxismo, consciência socialista (máximo), no movimento espontâneo sindical (mínimo) da classe trabalhadora, para assim, ordenando-o de fora, fazê-lo avançar até a revolução. Essa forma de pensamento, avessa e inversa ao método dialético contido em O capital, trabalha sempre com a lógica da identidade, a lógica formal. Assim, a História da Rev. Russa de Trotsky é um esforço teórico para sistematizar o que a própria classe operária russa fez em 1917, quando constituiu a via da dualidade de poder e derrubou o poder oficial do Estado burguês.

13. As escalas móveis são duas reivindicações aparentemente apenas defensivas, aparentemente apensar conservadoras, para manter, conservar e defender as condições de vida atuais da classe trabalhadora, entretanto, elas são irrealizáveis sob o capitalismo, sobretudo se aplicadas em larga escala. “Escala móvel de salário” é o reajuste mensal dos salários (garantidos pelos contratos coletivos), de acordo com a inflação dos produtos básicos de consumo pela classe trabalhadora. “Escala móvel das horas de trabalho” é variação móvel da jornada de trabalho de acordo com a necessidade de produção, em momentos de crise, para não se aceitar nenhuma demissão (os salários, é claro, não são diminuídos com a diminuição na jornada); é a demissão zero. Ou seja: as duas reivindicações visam apenas, aparentemente, manter as condições de vida atuais da classe, sem deixar o peso da crise cair sobre seus ombros, mas, na verdade, possuem um potencial muito maior, como veremos.

14. TROTSKY. Aonde vai a França?. Editora Desafio [sem logradouro registrado], 1994, p. 156.

15. Idem, ibidem, p. 154.

16. E de fato devorou. Como diz a nota número três dessa edição, de maio a novembro de 1936 os preços dos produtos industriais aumentaram 35,1%. No varejo, de abril de 1936 a abril de 1937, os preços dos gêneros alimentícios aumentaram 29%, os do vestuário 62%, e os dos artigos de limpeza 37%. O aumento geral dos salários conquistado pela greve foi reabsorvido pelo capital em pouquíssimo tempo. Cf. TROTSKY, Aonde vai a França?, op. cit., p. 155.

17. “Discussão dos membros do SWP com Crux (Trotsky) sobre o Programa de Transição”, in: TROTSKY, L. O Programa de Transição. São Paulo: Tykhe, 2009, pp. 92-93. Grifo nosso. Cabe lembrar que também nessa discussão encontra-se uma importante passagem, que aponta a consciência, por parte de Trotsky, da solução do problema contido no Programa de ação para a França, de 1934. Diz Trotsky sobre as escalas móveis em 1938: “É mais fácil derrubar o capitalismo do que garantir efetivamente a escala móvel de salários e de horas de trabalho no interior do sistema capitalista. Nenhuma das nossas reivindicações se realizará nesses limites, e é por isso que nós as chamamos de reivindicações transitórias: elas estabelecem uma ponte que nos permite atingir os trabalhadores e uma verdadeira ponte para alcançar a revolução socialista”. Cabe comentar que isso coincide com a interpretação proposta por Benoit: “o ponto de partida do programa transitório diferencia-se daquele do programa da social-democracia, pois apesar de situar-se também no mercado e no nível da circulação, apesar de situar-se na instância da troca de equivalentes, o ponto de partida transitório possui claramente como pressuposto a conclusão do processo, o resultado da análise marxista dos momentos da produção, da reprodução e da acumulação de capital, ou seja, possui como pressuposto a superação do capitalismo”. BENOIT, H. “O desenvolvimento (dialético) do Programa”. Op. Cit., p. 36. As escalas móveis, combinadas, se atendidas pela burguesia (como a burguesia francesa atendeu a reivindicação dos operários em 1936), não a permitiria passar novamente a crise para a classe trabalhadora (via desemprego e inflação), ou seja, ampliariam ainda mais as contradições entre as classes, favorecendo (impulsionando) uma maior abertura e generalização da dualidade de poder no médio e longo prazos. As escalas móveis ampliam as contradições, em vez de temporariamente as contornar (ou abrir espaço para isso, como as reivindicações usuais). As escalas colocam os interesses entre a classe capitalista e a classe trabalhadora como inconciliáveis, como absolutamente opostos. Veja-se o caso da escala móvel das horas de trabalho: na crise, a classe capitalista quer manter a jornada de trabalho e diminuir o número de operários; os operários, com a escala de horas, querem diminuir as horas de trabalho e manter seus empregos. Um coisa é absolutamente o contrário da outra. Não há conciliação possível. É uma antinomia.

18. Muitos dos quais do meio sindical, dirigentes da histórica greve de Mineápolis de 1934.

19. Também presente em TROTSKY, Leon. The Transitional Program for Socialist Revolution. Pathfinder Press. Op. Cit. Já em Marxismo no nosso tempo (de 1939, portanto um dos últimos textos de Trotsky), Trotsky afirma que uma das especificidades da América, que conforma essa mentalidade política do operário, é seu não passado pré-capitalista, que dá as bases para uma riqueza e nível de vida superiores aos da Europa: “O que distingue os EUA dos outros países é simplesmente a maior dimensão e maior atrocidade das contradições do capitalismo. A ausência de um passado feudal, as riquezas naturais, uma população cheia de energia e empreendedora, numa palavra, os pre-requisitos para o desenvolvimento ininterrupto da democracia realmente resultaram numa concentração fantástica de riquezas”. Cf. em <https://www.marxists.org/archive/trotsky/1939/04/marxism.htm>.

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