Transição Socialista

Em memória da Comuna de Paris

Como parte da rememoração dos 150 anos da Comuna de Paris, publicamos três textos, dois de Lênin e um de Trotsky, que fazem balanços sobre essa fundamental experiência histórica de luta da classe trabalhadora, a primeira vez em que o proletariado foi capaz de tomar o poder e destruir o aparelho do Estado burguês – mas, infelizmente, não foi capaz de mantê-lo e expandi-lo. Os textos dos revolucionários procuram refletir sobre as grandiosas perspectivas abertas pela Comuna e pelos limites com os quais ela se deparou, que levaram à sua derrota militar e sangrenta repressão pela burguesia. Todos os textos foram traduzidos do inglês.

O breve texto de Lênin, “Lições da Comuna”, de 1908, que traça semelhanças entre o processo revolucionário da Comuna e o da Rússia de 1905, e destaca como “erro fatal” dos socialistas franceses a combinação de tarefas contraditórias: a do patriotismo e a do socialismo, erro que os bolcheviques, sob sua direção, não cometeriam em 1917: “a tarefa do proletariado era lutar pela emancipação socialista dos trabalhadores do jugo da burguesia” – tarefa que estava colocada já há 150 anos e permanece atual.

Já o texto “Em Memória da Comuna”, de 1911, também de Lênin, é uma reflexão sobre o legado da Comuna, seu ineditismo e o temor que ela inspirou à burguesia, que a reprimiu brutalmente, acreditando que poderia, com isso, enterrar a ameaça que o proletariado revolucionário, que pela primeira vez tomara o poder, lhe representar. Seus piores temores, entretanto, se confirmariam seis anos após esse texto, com a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia.

Finalmente, o texto de Trotsky, “Lições da Comuna de Paris”, escrito em fevereiro de 1921, é, em certo sentido, um balanço da derrota da Comuna de Paris à luz da experiência vitoriosa da Revolução Russa, em que o líder do Exército Vermelho, então envolvido na Guerra Civil, destaca que a ausência de uma direção política centralizada foi o que levou, em uma análise, à derrota da Comuna (e que fora, inversamente, o que possibilitara a vitória do proletariado na Rússia, tanto na tomada do poder quanto na posterior vitória militar contra os exércitos coligados da burguesia internacional).


1) Lições da Comuna

Vladimir Lênin

(março de 1908)

Após o golpe de estado que marcou o fim da revolução de 1848, a França caiu sob o jugo do regime napoleônico por um período de 18 anos. Este regime trouxe ao país não apenas a ruína econômica, mas também a humilhação nacional. Levantando-se contra o regime antigo, o proletariado assumiu duas tarefas – uma delas nacional e a outra de caráter de classe –, a liberação da França da invasão alemã e a emancipação socialista dos trabalhadores do capitalismo. Esta união de duas tarefas constitui uma característica única da Comuna.

 A burguesia formou uma “defesa nacional do governo” e o proletariado teve que lutar por independência nacional sob sua liderança. Na verdade, foi um governo de “traição nacional” que viu sua missão na luta contra o proletariado de Paris. Mas o proletariado, cego por ilusões patrióticas, não percebeu isso. A ideia patriota tem sua origem na Grande Revolução do século XVIII; ela influenciou as mentes dos socialistas da Comuna; e Blanqui, por exemplo, sem dúvidas um revolucionário e um apoiador ardente do socialismo, não pode achar melhor título para seu jornal do que o grito burguês: “O país está em perigo!”.

Combinar tarefas contraditórias – patriotismo e socialismo – foi o erro fatal dos socialistas franceses. No manifesto da Internacional, lançado em setembro de 1870, Marx advertiu o proletariado francês contra ser enganado por uma falsa ideia nacional [2]; na Grande Revolução, os antagonismos de classe se acirraram, e enquanto naquela época a luta contra toda a reação europeia unia toda a nação revolucionária, agora o proletariado não podia mais combinar seus interesses com os interesses de outras classes que lhe eram hostis; deixe a burguesia assumir a responsabilidade da humilhação nacional – a tarefa do proletariado era lutar pela emancipação socialista dos trabalhadores do jugo da burguesia.

E, de fato, a verdadeira natureza do “patriotismo” burguês não demorou a se revelar. Tendo concluído uma paz vergonhosa com os prussianos, o governo de Versalhes seguiu para sua tarefa imediata – lançou um ataque para arrancar das mãos do proletariado de Paris as armas que tanto o aterrorizavam. Os trabalhadores responderam proclamando a Comuna e a guerra civil.

Embora o proletariado socialista estivesse separado em numerosas seitas, a Comuna foi um exemplo esplêndido da unanimidade com que o proletariado foi capaz de cumprir as tarefas democráticas que a burguesia só poderia proclamar. Sem nenhuma legislação complexa particular, de uma forma simples e direta, o proletariado que tomou o poder concretizou a democratização do sistema social, aboliu a burocracia e tornou eletivos todos os cargos oficiais.

Mas dois erros destruíram os frutos dessa vitória esplêndida. O proletariado parou no meio do caminho: ao invés de se lançar à “expropriação dos expropriadores”, deixou-se levar pelo sonho de instaurar no país uma justiça superior unida por uma tarefa nacional comum; instituições como os bancos, por exemplo, não foram tomadas, e as teorias proudhonianas sobre uma “troca justa” etc. ainda prevaleciam entre os socialistas. O segundo erro foi a magnanimidade excessiva por parte do proletariado: ao invés de destruir seus inimigos, procurou exercer influência moral sobre eles; subestimou a importância de operações militares diretas na guerra civil, e ao invés de lançar uma ofensiva resoluta contra Versalhes, que poderia ter coroado sua vitória em Paris, demorou e deu tempo ao governo de Versalhes para reunir as forças das trevas e se preparar para a semana de banho de sangue em maio.

Marx deu grande valor ao significado histórico da Comuna – se, durante a tentativa traiçoeira da gangue de Versalhes de tomar as armas do proletariado de Paris, os trabalhadores tivessem se deixado desarmar sem luta, o efeito desastroso da desmoralização que esta fraqueza teria causado no movimento proletário teria sido muito, muito maior do que as perdas sofridas pela classe trabalhadora na batalha para defender suas armas [3]. Os sacrifícios da Comuna, por mais pesados ​​que fossem, são compensados ​​por sua importância para a luta geral do proletariado: ela agitou o movimento socialista em toda a Europa, demonstrou a força da guerra civil, dissipou as ilusões patrióticas e destruiu a crença ingênua em quaisquer esforços da burguesia para objetivos nacionais comuns. A Comuna ensinou o proletariado europeu a apresentar concretamente as tarefas da revolução socialista.

A lição aprendida pelo proletariado não será esquecida. A classe trabalhadora irá usá-la como já o fez na Rússia durante o levante de dezembro.

O período que precedeu e preparou a Revolução Russa carrega certa semelhança com o período do jugo napoleônico na França. Na Rússia, também, a camarilha autocrática trouxe sobre o país a ruína econômica e a humilhação nacional. Mas a eclosão da Revolução foi contida por muito tempo, uma vez que o desenvolvimento social ainda não havia criado as condições para um movimento de massas e, apesar de toda a coragem demonstrada, as ações isoladas contra o governo no período pré-revolucionário estouraram contra a apatia das massas. Somente os sociais-democratas, por meio de um trabalho extenuante e sistemático, educaram as massas para o nível das formas superiores de luta – ações de massa e guerra civil armada.

Os sociais-democratas foram capazes de quebrar as ilusões “nacionais” e “patrióticas” do jovem proletariado e mais tarde, quando o Manifesto de 17 de outubro [4] foi arrancado do czar devido a sua intervenção direta, o proletariado começou vigorosa preparação para a próxima e inevitável fase da Revolução – o levante armado. Tendo se livrado das ilusões “nacionais”, ele concentrou suas forças de classe em suas próprias organizações de massa – os Sovietes de deputados operários e soldados etc. E, apesar de todas as diferenças nos objetivos e tarefas da Revolução Russa, em comparação com a Revolução Francesa de 1871, o proletariado russo teve que recorrer ao mesmo método de luta que o primeiro usado pela Comuna de Paris – a guerra civil. Consciente das lições da Comuna, sabia que o proletariado não deveria ignorar os métodos pacíficos de luta – eles servem aos seus interesses ordinários do dia a dia, são necessários nos períodos de preparação para a revolução -, mas nunca deve esquecer que, em certas condições, a luta de classes assume a forma de conflito armado e guerra civil; há momentos em que os interesses do proletariado exigem o extermínio implacável de seus inimigos em confrontos armados abertos. Isso foi demonstrado pela primeira vez pelo proletariado francês na Comuna e brilhantemente confirmado pelo proletariado russo no levante de dezembro.

Notas

[1] O artigo “Lições da Comuna”, publicado em Zagranichnaya Gazeta (Gazeta Estrangeira), N. 2, 23 de março de 1908, é o relato literal de um discurso feito por Lênin. Os editores do jornal fizeram a introdução do artigo com a seguinte observação: “Uma reunião internacional foi realizada em Genebra em 18 de março para comemorar três aniversários proletários: o vigésimo quinto aniversário da morte de Marx, o sexto aniversário da revolução de março de 1848 e o aniversário da Comuna de Paris. Camarada Lênin, em nome do POSDR, falou na reunião sobre o significado da Comuna”.

Zagranichnaya Gazeta – um jornal publicado por um grupo de emigrantes russos em Genebra em março-abril de 1908.

[2] Ver K. Marx and F. Engels, Selected Works, Vol. 1, 1958, p. 497.

[3] Para a avaliação de Marx do papel histórico da Comuna de Paris, como uma precursora da nova sociedade, ver A Guerra Civil na França (K. Marx e F. Engels, Selected Works, Vol. 1, 1958, pp. 473-545) e cartas para Kugelmann de 12 e 17 de abril de 1871 (K. Marx e F. Engels, Selected Correspondence, Moscow, pp. 318-20).

[4] Refere-se ao Manifesto de 17 de outubro de 1905, no qual o czar, assustado com a revolução, prometeu ao povo as liberdades cívicas e uma constituição.


2) Em memória da Comuna

Vladimir Lênin

(abril de 1911)

Quarenta anos se passaram desde a proclamação da Comuna de Paris. De acordo com seu costume, o proletariado francês está homenageando a memória dos operários revolucionários de 18 de março de 1871, por meio de reuniões e manifestações. No final de maio, eles irão trazer novamente coroas de flores para os túmulos dos communards que foram fuzilados, as vítimas da temível “Semana de Maio”, e sobre seus túmulos farão mais uma vez o juramento de lutar incansavelmente até que suas ideias sejam conquistadas, até que sua causa seja completamente vitoriosa.

Por que o proletariado, não apenas na França mas também por todo o mundo, homenageia os proletários da Comuna de Paris como seus precursores? Qual foi a herança da Comuna?

A Comuna eclodiu espontaneamente. Ninguém a preparou conscientemente de forma organizada. A guerra malsucedida com a Alemanha, as privações durante o cerco, o desemprego do proletariado e a ruína da pequena burguesia; a indignação das massas contra as classes altas e contra as autoridades que demonstraram sua completa incapacidade, uma fermentação indefinível entre a classe trabalhadora, que estava descontente com sua sorte e lutava por um sistema social diferente; a composição reacionária da Assembleia Nacional, que despertou temores quanto ao destino da república – tudo isso e muitas outras coisas se combinaram para conduzir a população de Paris à revolução em 18 de março, que inesperadamente colocou o poder nas mãos da Guarda Nacional, nas mãos da classe trabalhadora e da pequena burguesia que se juntou a ela.

Este foi um acontecimento sem precedentes na história. Até então, o poder costumava estar nas mãos de senhorios de terras e capitalistas, ou seja, nas mãos de seus agentes de confiança que constituíam o chamado Governo. Depois da revolução de 18 de março, quando o governo Thiers fugiu de Paris com suas tropas, sua polícia e seus agentes, o povo permaneceu senhor da situação e o poder passou para as mãos do proletariado. Mas na sociedade moderna, escravizada economicamente pelo capital, o proletariado não pode dominar politicamente a menos que ele rompa as correntes que o prendem ao capital. Esta é a razão pela qual o movimento da Comuna teve inevitavelmente de assumir uma coloração socialista, ou seja, começar a lutar pela derrubada do poder da burguesia, o poder do capital, para destruir os próprios fundamentos da ordem social atual.

No primeiro momento, o movimento estava extremamente indefinido e confuso. A ele se juntaram os patriotas que esperavam que a Comuna fosse renovar a guerra com os alemães e a levasse a uma conclusão bem-sucedida. Era apoiado pelos pequenos lojistas ameaçados de ruína, cuja salvação seria um adiamento dos pagamentos de dívidas e aluguel (o governo não queria lhes conceder tal adiamento, mas a Comuna o concedeu). Por fim, teve, num primeiro momento, a simpatia dos republicanos burgueses, que temiam que a reacionária Assembleia Nacional (os caipirias, latifundiários ignorantes) restaurasse a monarquia. Mas o papel principal neste movimento foi, naturalmente, desempenhado pelos trabalhadores (especialmente os artesãos de Paris), entre os quais a propaganda socialista foi energeticamente realizada durante os últimos anos do Segundo Império e muitos dos quais até pertenciam à Primeira Internacional.

Apenas os trabalhadores se mantiveram leais à Comuna até o fim. Os republicanos burgueses e a pequena burguesia logo se separaram dele, os primeiros temendo o caráter proletário socialista revolucionário do movimento, e os outros desistiram ao ver que o movimento estava condenado à derrota inevitável. Só o proletariado francês apoiou o seu governo sem medo e incansavelmente, só eles lutaram e morreram por ele, pela causa da emancipação da classe operária, por um futuro melhor para todos os trabalhadores.

Abandonada por seus aliados de ontem e não apoiada por ninguém, a Comuna estava fadada à derrota inevitável. Toda a burguesia da França, todos os proprietários de terras, os corretores da bolsa, os proprietários de fábricas, todos os grandes e pequenos ladrões, todos os exploradores, se juntaram contra ela. Esta coalizão burguesa, apoiada por Bismarck (que libertou cem mil soldados franceses que haviam sido feitos prisioneiros para derrubar a Paris revolucionária), conseguiu despertar os camponeses atrasados ​​e a pequena burguesia das províncias contra o proletariado de Paris, e na metade circundante de Paris com um anel de aço (a outra metade estava nas mãos do exército alemão). Em algumas das maiores cidades da França (Marselha, Lyon, St. Etienne, Dijon etc.), os trabalhadores também tentaram tomar o poder, proclamar a Comuna e vir em auxílio de Paris, mas essas tentativas logo falharam. Paris, que primeiro ergueu a bandeira da revolta proletária, foi abandonada aos seus próprios recursos e condenada à fadada destruição.

Para a vitória da revolução social, pelo menos duas condições são necessárias: um alto desenvolvimento das forças produtivas e a preparação do proletariado. Mas, em 1871, nenhuma dessas condições estava presente. O capitalismo francês ainda estava ligeiramente desenvolvido, e a França era naquela época um país da pequena burguesia (artesãos, camponeses, lojistas, etc.). Por outro lado, não havia partido operário, a classe operária, que na massa estava despreparada e destreinada, nem sequer visualizava com clareza suas tarefas e os métodos para cumpri-las. Não havia organizações políticas sérias do proletariado, nem sindicatos fortes e sociedades cooperativas.

Mas o principal que faltou à Comuna foi o tempo para pensar e realizar o cumprimento de seu programa. Mal teve tempo de começar a trabalhar, quando o governo de Versalhes, apoiado por toda a burguesia, abriu operações militares contra Paris. A Comuna teve que pensar antes de tudo na defesa. Até o final, de 21 a 28 de maio, não houve tempo para pensar seriamente em mais nada.

Apesar de tais condições desfavoráveis, apesar da brevidade de sua existência, a Comuna encontrou tempo para realizar algumas medidas que caracterizaram seu real significado e seus objetivos. A Comuna substituiu o exército permanente, essa arma cega nas mãos das classes dominantes, pelo povo armado. Proclamou a separação da Igreja do Estado, aboliu o apoio do Estado aos órgãos religiosos (ou seja, os salários do Estado para os padres), deu à educação popular um caráter puramente secular e, dessa forma, desferiu um golpe severo nos gendarmes em mantos sacerdotais. Na esfera puramente social, a Comuna poderia fazer muito pouco, mas isso mostra claramente seu caráter de governo popular e operário. O trabalho noturno nas padarias foi proibido, o sistema de multas, esse sistema de roubo legalizado aos trabalhadores, foi abolido. Finalmente, foi emitido o famoso decreto segundo o qual todas as fábricas, obras e oficinas abandonadas ou paralisadas pelos seus proprietários deviam ser entregues a associações de trabalhadores para retomar a produção. E, como que para enfatizar seu caráter de governo proletário verdadeiramente democrático, a Comuna decretou que os salários de todos os escalões da administração e do governo não deveriam exceder o salário normal de um trabalhador, e em nenhum caso deveriam exceder 6.000 francos por ano.

Todas essas medidas mostraram com suficiente clareza que a Comuna era uma ameaça mortal ao velho mundo baseado na escravidão e na exploração. Portanto, a sociedade burguesa não poderia dormir em paz enquanto a bandeira vermelha do proletariado tremulasse sobre a prefeitura de Paris. Quando finalmente a força organizada do governo conseguiu derrotar as forças mal organizadas da revolução, os generais bonapartistas que haviam sido derrotados pelos alemães e que só foram corajosos ao lutar contra seus compatriotas derrotados, esses Rennenkampfs e Meller-Sakomelskys franceses, organizaram um massacre que Paris jamais conhecera. Cerca de 30.000 parisienses foram mortos por soldados ferozes, cerca de 45.000 foram presos e muitos deles foram executados posteriormente, milhares foram presos ou exilados. Ao todo, Paris perdeu cerca de 100.000 de seus filhos, incluindo os melhores trabalhadores de todos os ramos.

A burguesia ficou satisfeita. “Agora acabamos com o socialismo por um bom tempo”, disse seu líder, o anão sanguinário Thiers, após o banho de sangue que ele e seus generais haviam organizado contra o proletariado de Paris. Mas esses corvos burgueses grasnaram em vão. Seis anos após a supressão da Comuna, quando muitos de seus combatentes ainda sofriam na prisão ou no exílio, um novo movimento operário surgiu na França. Uma nova geração socialista, enriquecida pela experiência de seus predecessores e nem um pouco desanimada por sua derrota, pegou a bandeira que havia caído das mãos dos lutadores da Comuna e a carregou com ousadia e confiança para frente, com gritos de: “Viva a revolução social! Viva a Comuna!”. E alguns anos depois, o novo partido operário, e a agitação gerada por ele em todo o país, obrigou as classes dominantes a libertar os communards presos que ainda estavam nas mãos do governo.

A memória dos lutadores da Comuna não é homenageada apenas pelos trabalhadores da França, mas pelo proletariado de todo o mundo, pois a Comuna não lutou por nenhum objetivo restrito local ou nacional, mas pela liberdade da humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e oprimidos. Como o principal lutador da revolução social, a Comuna ganhou simpatia onde quer que haja um proletariado lutando e sofrendo. A imagem de sua vida e morte, a visão de um governo operário que tomou a capital do mundo e a manteve em suas mãos por mais de dois meses, o espetáculo da luta heróica do proletariado e seus sofrimentos após a derrota – tudo isso elevou o espírito de milhões de trabalhadores, despertou suas esperanças e atraiu suas simpatias pelo socialismo. O estrondo do canhão em Paris despertou de um sono profundo as camadas mais atrasadas do proletariado e deu impulso ao crescimento da propaganda socialista revolucionária. É por isso que a causa da Comuna não morreu. Ela vive até os dias atuais em cada um de nós.

A causa da Comuna é a revolução social, a causa da emancipação política e econômica completa dos trabalhadores. É a causa do proletariado de todo o mundo. E, nesse sentido, é imortal.


3) Lições da Comuna de Paris

 Léon Trotsky

(fevereiro de 1921)

CADA VEZ que nós estudamos a história da Comuna, nós a enxergamos sob um aspecto novo, graças à experiência adquirida pelas lutas revolucionárias anteriores e, acima de tudo, pelas últimas revoluções, não apenas a russa, mas também as revoluções alemã e húngara. A guerra franco-prussiana foi uma explosão sangrenta, prenúncio de uma imensa matança mundial; a Comuna de Paris, um prenúncio luminoso de uma revolução proletária mundial.

A Comuna nos mostra o heroísmo das massas trabalhadoras, sua capacidade de se unificar em um bloco único, seu talento para se sacrificarem em nome do futuro, mas, ao mesmo tempo, nos mostra a incapacidade das massas de escolher seu caminho, sua indecisão na liderança do movimento, a sua inclinação fatal de parar após os primeiros sucessos, permitindo, assim, que o inimigo recupere seu fôlego, para que restabeleça suas posições.

A Comuna veio muito tarde. Ela tinha todas as possibilidades de tomar o poder em quatro de setembro, e isso teria permitido ao proletariado parisiense se colocar, em um golpe só, na direção dos trabalhadores do país na sua luta contra todas as forças do passado, contra Bismarck bem como contra Thiers. Mas o poder caiu nas mãos dos tagarelas democráticos, os deputados de Paris. O proletariado parisiense não tinha nem um partido nem líderes aos quais fosse fortemente vinculado graças a lutas passadas. Os patriotas pequeno-burgueses que se consideravam socialistas e buscavam o apoio dos trabalhadores não tinham, de fato, nenhuma confiança em si mesmos. Eles abalaram a fé do proletariado em si mesmo, eles estavam continuamente em busca de advogados renomados, jornalistas, deputados, cuja bagagem consistia apenas em uma dúzia de frases vagamente revolucionária, de modo a confiar a eles a liderança do movimento.

O motivo pelo qual Jules Favre, Picard, Gamier-Pages e companhia tomaram o poder em Paris em quatro de setembro é o mesmo que permitiu que Paul-Boncour, A. Varenne, Renaudel e vários outros fossem, por determinado período, os mestres do partido do proletariado. Os Renaudels e os Boncours, e mesmo os Longuets e os Pressemanes, estão muito mais próximos, por conta de suas simpatias, seus hábitos intelectuais e sua conduta, de Jules Favres e Jules Ferrys do que do proletariado revolucionário. Sua fraseologia socialista não é nada senão uma máscara histórica que lhes permite se impor sobre as massas. E é porque Favre, Simon, Picard e os outros usaram e abusaram de uma fraseologia democrática-liberal que seus filhos e netos são obrigados a recorrer a uma fraseologia socialista. Mas os filhos e netos permaneceram fiéis a seus pais e continuam sua obra. E, quando for necessário decidir não a questão da composição de uma claque ministerial, mas a questão muito mais importante questão de saber qual classe na França deverá tomar o poder, Renaudel, Varenne, Longuet e seus pares estarão no campo de Millerand – colaborador de Galiffet, o açougueiro da Comuna… Quando os revolucionários de salão e do parlamento se deparam cara a cara, na vida real, com a revolução, eles nunca a reconhecem.

O partido dos trabalhadores – o verdadeiro – não é uma máquina para manobras parlamentares, é a experiência acumulada e organizada do proletariado. É somente com a ajuda do partido, que se assenta em toda a história do seu passado, que prevê teoricamente os caminhos do desenvolvimento, todos os seus estágios, e que extrai deles todas as fórmulas necessárias de ação, que o proletariado se livra da necessidade de sempre recomeçar a sua história: suas hesitações, sua falta de decisão, seus erros.

O proletariado parisiense não tinha um partido dessa espécie. Os burgueses socialistas que abundaram na Comuna levantavam seus olhos para o céu, esperavam por um milagre ou, então, por uma palavra profética, hesitavam e, durante esse período, as massas tateavam e perdiam suas cabeças por conta da indecisão de uns e da fantasia de outros. O resultado foi que a revolução estourou bem no meio deles, tarde demais, e Paris foi cercada. Seis meses haviam se passado antes de o proletariado ter restabelecido em sua memória as lições das revoluções passadas, de batalhas de outrora, das reiteradas traições da democracia – e ele tomou o poder.

Esses seis meses mostraram ser uma perda irreparável. Se o partido centralizado de ação revolucionária estivesse na direção do proletariado francês em setembro de 1870, toda a história da França e, com ela, toda a história da humanidade, teria tomado outro rumo.

Se o poder caiu em mãos do proletariado em 18 de março de Paris, não foi porque foi deliberadamente tomado, mas porque seus inimigos haviam abandonado Paris.

Estes estavam perdendo terreno continuamente, os trabalhadores os desprezavam e detestavam, a pequena-burguesia não tinha mais confiança neles e a grande burguesia temia que eles não fossem mais capazes de defendê-la. Os soldados eram hostis aos oficiais. O governo fugiu de Paris de modo a concentrar suas forças em outro lugar. E foi aí que o proletariado se tornou o senhor da situação.

Mas ele entendeu esse fato nos dias seguintes. A revolução caiu sobre ele inesperadamente.

Esse primeiro sucesso foi uma nova fonte de passividade. O inimigo havia fugido para Versalhes. Não era isso uma vitória? Naquele momento, a banda governamental poderia ter sido esmagada quase sem o derramamento de sangue. Em Paris, todos os ministros, com Thiers na sua liderança, poderiam ter sido feitos prisioneiros. Ninguém teria levantado uma mão para defendê-los. Isso não foi feito. Não havia uma organização de um partido centralizado, que tivesse uma versão geral das coisas e órgãos especiais para executar suas decisões.

Os restos da infantaria não queriam voltar para Versalhes. O fio que unia os oficiais e os soldados era muito frágil. E, tivesse havido um partido que atuasse como centro dirigente em Paris, ele teria incorporado nas tropas que estavam em retirada – já que havia a possibilidade de retiradas – umas centenas ou mesmo umas dezenas de trabalhadores dedicados, e dado a eles as seguintes instruções: aumentem a insatisfação dos soldados contra os oficiais, aproveitem o primeiro momento psicologicamente favorável para livrar os soldados de seus oficiais e leve-os a Paris para se unirem com o povo. Isso poderia ter sido facilmente realizado, de acordo com as confissões dos próprios apoiadores de Thiers. Ninguém nem pensou nisso. Nem havia ninguém para pensar nisso. No meio de grandes eventos, além disso, tais decisões só podem ser adotadas por um partido revolucionário que tem em vista uma revolução, que se prepara para ela, não perde sua cabeça, por um partido que está acostumado a ter uma visão geral das coisas e não tem medo de agir.

E um partido de ação era justamente o que o proletariado francês não tinha.

O Comitê Central da Guarda Nacional é, de fato, um Conselho de Deputados dos trabalhadores armados e da pequena-burguesia. Tal Conselho, eleito diretamente pelas massas que tomaram a via revolucionária, representa um excelente aparato de ação. Mas, ao mesmo tempo, e justamente por conta de sua conexão imediata e elementar com as massas que estão no estado no qual o revolucionário as encontrou, ele reflete não só todos os lados fortes mas também os lados fracos das massas, e ele reflete primeiro os lados fracos ainda mais do que o faz com os fortes: ele manifesta o espírito de indecisão, de espera, a tendência a se tornar inativo após os primeiros sucessos.

O Comitê Central da Guarda Nacional precisava ser dirigido. Era indispensável ter uma organização que encarnasse a experiência política do proletariado e estivesse sempre presente – não apenas no Comitê Central, mas nas legiões, no batalhão, nos setores mais profundos do proletariado francês. Por meio do Conselho de Deputados – no caso em questão, eles eram órgãos da Guarda Nacional -, a parte poderia estar em contato contínuo com as massas, conhecido seu estado de espírito; seu centro de liderança poderia a cada dia levantar uma palavra de ordem que, por meio dos militantes do partido, teria penetrado nas massas, unificado seu pensamento e sua vontade.

Mal o governo recuou para Versalhes, a Guarda Nacional apressou-se em se eximir de suas responsabilidades, no exato momento em que essas responsabilidades eram enormes. O Comitê Central imaginou eleições “legais” para a Comuna. Ele entrou em negociações com os prefeitos de Paris de modo a se revestir, da Direita, com a “legalidade”.

Tivesse sido preparado um ataque violento contra Versalhes no mesmo momento, as negociações com os prefeitos teriam sido um ardil plenamente justificado do ponto de vista militar e em conformidade com o objetivo. Mas, na verdade, essas negociações estavam sendo realizadas apenas para evitar o combate por um milagre ou outro. Os radicais pequeno-burgueses e os idealistas socialistas, respeitando a “legalidade” e os homens que corporificavam uma parte do estado “legal” – os deputados, os prefeitos etc. – esperavam, do fundo de suas almas, que Thiers iria respeitosamente parar diante da Paris revolucionária no minuto em que esta se cobrisse com a Comuna “legal”.

A passividade e a indecisão tiveram o apoio, neste caso, do princípio sagrado da federação e da autonomia. Paris, veja você, é apenas uma comuna entre outras tantas comunas. Paris não quer impor nada a ninguém; não luta por ser uma ditadura, a não ser que seja a “ditadura do exemplo”.

Em suma, não era nada senão a tentativa de substituir a revolução proletária, que estava tomando corpo, por uma reforma pequeno-burguesa: autonomia comunal. A verdadeira tarefa revolucionária consistia em garantir que o proletariado tomasse o poder em todo o país. Paris tinha que servir como sua base, seu suporte, sua fortaleza. E, para atingir esse objetivo, era necessário subjugar Versalhes sem mais delongas, e enviar agitadores, organizadores e forças armadas em toda a França. Era necessário entrar em contato com os simpatizantes, fortalecer os hesitantes e esmagar a oposição do adversário. Ao invés dessa política de ofensiva e agressão, que era a única coisa que poderia salvar a situação, os líderes de Paris tentaram se isolar na sua autonomia comunal: eles não vão atacar os outros se os outros não os atacarem; cada cidade tem seu direito sagrado de autogoverno. Essa tagarelice idealista – do mesmo gênero que o anarquismo vulgar – encobria, na realidade, uma covardia diante da ação revolucionária que deveria ter sido conduzida de forma incessante até o fim, pois do contrário não deveria nem ter começado.

A hostilidade à organização capitalista – uma herança do provincianismo e autonomismo pequeno-burgueses – é, sem dúvida, o ponto fraco de certa parcela do proletariado francês. Autonomia para os distritos, para os bairros, para os batalhões, para as cidades, é a garantia suprema da atividade real e independência individual para certos revolucionários. Mas isso é um grande erro que custou caro ao proletariado francês.

Sob a forma de “luta contra o centralismo despótico” e contra a disciplina “sufocante”, acontece uma luta para a autopreservação de vários grupos e subgrupos da classe trabalhadora, por seus interesses mesquinhos, por seus pequenos líderes de bairro e seus oráculos locais. A classe trabalhadora inteira, embora preservando sua originalidade cultural e suas nuances políticas, pode agir de maneira metódica e firme, sem permanecer a reboque dos eventos, e pode dirigir, a cada momento, seus golpes mortais contra os setores mais fracos dos seus inimigos, com a condição de que, na sua direção, acima dos bairros, dos distritos, dos grupos, haja um aparato que seja centralizado e unificado por uma disciplina de ferro. A tendência em direção ao particularismo, qualquer forma que ele assume, é um peso morto do passado. Quanto mais cedo o comunismo francês – o comunismo-socialista e comunismo sindicalista – dele se emancipar, melhor será para a revolução proletária.

* * *

O partido não cria a revolução por vontade sua, não escolhe o momento de tomar o poder conforme queira, mas intervém ativamente nos eventos, penetra a cada momento no estado de espírito das massas revolucionárias e avalia o poder de resistência do inimigo e, assim, determina o momento mais favorável para a ação decisiva. Esse é o lado mais difícil da tarefa. O partido não tem uma decisão que é válida em todos os casos. São necessários uma teoria correta, um contato estreito com as massas, a compreensão da situação, uma percepção revolucionária, uma forte resolução. Quanto mais profundamente um partido revolucionário penetra em todos os domínios da luta proletária, mais unificado ele é pela unidade de objetivo e disciplina, mais rapidamente e melhor ele vai resolver suas tarefas.

A dificuldade consiste em ter essa organização de partido centralizada, forjada internamente por uma disciplina de ferro, vinculada intimamente com o movimento das massas, com seus fluxos e refluxos. A conquista do poder não pode ser alcançada a não ser sob a condição de uma forte pressão revolucionária das massas trabalhadoras. Mas, nessa ação, o elemento da preparação é completamente inevitável. Quanto melhor o partido entenda a conjuntura e o momento, melhor as bases da resistência serão preparadas, melhor a força e os papéis serão distribuídos, mais seguro será o sucesso e menos vítimas ele custará. A correlação de uma ação cuidadosamente preparada e um movimento de massas é a tarefa político-estratégica de tomada do poder.

A comparação de 18 de março de 1871 com 7 de novembro de 1917 é muito instrutiva, desse ponto de vista. Em Paris, há uma absoluta falta de iniciativa para a ação da parte dos círculos revolucionários dirigentes. O proletariado, armado pelo governo burguês, é, na realidade, mestre da cidade, tem todos os meios materiais de poder – canhão e rifles – à sua disposição, mas não está ciente disso. A burguesia faz uma tentativa de tomar a arma do gigante: ela quer roubar o canhão do proletariado. A tentativa falha. O governo foge em pânico de Paris para Versalhes. O campo está limpo. Mas é só no dia seguinte que o proletariado entende que ele é o senhor de Paris. Os “líderes” estão no encalço dos eventos, eles os registram quando já foram realizados, e eles fazem tudo que está em seu poder para embotar o gume revolucionário.

Em Petrogrado, os eventos se desenvolveram de maneira diferente. O partido se moveu de maneira firme, resoluta, para a tomada do poder, tendo seus homens em todos os lugares, consolidando casa posição, aumentando cada fissura entre os trabalhadores e a guarnição de um lado e o governo do outro.

A demonstração armada dos dias de julho é uma grande ação de reconhecimento conduzida pelo partido para sondar o grau de íntima proximidade entre as massas e o poder de resistência do inimigo. O reconhecimento é transformado em uma luta de postos avançados. Somos empurrados para trás, mas, ao mesmo tempo, a ação estabelece uma conexão profunda entre o partido e as massas profundas. Os meses de agosto, setembro e outubro assistem a um poderoso fluxo revolucionário. O partido dele se favorece e aumenta consideravelmente seus pontos de apoio na classe trabalhadora e na guarnição. Mais tarde, a harmonia entre as preparações conspiratórias e a ação de massas acontece quase que automaticamente. O Segundo Congresso dos Sovietes é fixado para novembro. Toda nossa agitação precedente deveria levar à tomada do poder pelo Congresso. Assim, a tomada foi preparada com antecedência ao 7 de novembro. Esse fato era bem-conhecido e compreendido pelo inimigo. Kerensky e seus conselheiros não podiam falhar em enviar esforços para se consolidar, não importa em que pequena extensão, em Petrogrado para o movimento decisivo. Além disso, eles permaneceram firmes na necessidade de retirar da capital as seções mais revolucionárias da guarnição. Nós, de nossa parte, aproveitamos essa tentativa da parte de Kerensky de modo a torná-la a fonte de um novo conflito que teve uma importância decisiva. Nós acusamos abertamente o governo Kerensky – nossa acusação subsequentemente encontrou uma confirmação por escrito em um documento oficial – de ter planejado a remoção de um terço da guarnição de Petrogrado por motivos militares, mas para fins de combinações contrarrevolucionárias. O conflito nos vinculou ainda mais fortemente à guarnição e colocou diante desta uma tarefa bem-definida, de dar apoio ao Congresso dos Sovietes fixado em 7 de novembro. E, já que o governo insistia – mesmo que de uma maneira fraca – que a guarnição fosse retirada, criamos no Soviete de Petrogrado, já em nossas mãos, um Comitê de Guerra Revolucionário, sob o pretexto de verificar os motivos militares para o plano do governo.

Assim, nós tínhamos um órgão puramente militar, que estava na direção da guarnição de Petrogrado que, na realidade, era um órgão legal da insurreição armada. Ao mesmo tempo, nós designamos comissários (comunistas) em todas as unidades militares, nas lojas militares etc. A organização militar clandestina realizou tarefas técnicas específicas e forneceu ao Comitê de Guerra Revolucionário militantes confiáveis para tarefas militares importantes. O trabalho essencial que diz respeito à preparação, à realização e à insurreição armada aconteceu abertamente, e de maneira tão metódica e natural que a burguesia, liderada por Kerensky, não entendeu claramente o que estava acontecendo debaixo dos seus olhos. (Em Paris, o proletariado só entendeu no dia seguinte que ele tinha sido verdadeiramente vitorioso – uma vitória que ele, de resto, não havia buscado deliberadamente -, que ele era o mestre da situação. Em Petrogrado, foi o contrário. Nosso partido, baseando-se nos trabalhadores e na guarnição, já havia tomado o poder, a burguesia havia passado uma noite relativamente tranquila e aprendera apenas na manhã seguinte que o leme do país estava nas mãos do seu coveiro.)

Quanto à estratégia, houve muitas diferenças de opinião no nosso partido.

Uma parte do Comitê Central declarou-se, como se sabe, contra a tomada do poder, acreditando que o momento ainda não havia chegado, que Petrogrado estava descolada do restante do país, o proletariado do campesinato etc.

Outros camaradas acreditavam que nós não estávamos atribuindo importância o suficiente para os elementos de complô militar. Um dos membros do Comitê Central reivindicou em outubro o cerco do Teatro Alexandrino onde a Conferência Democrática estava acontecendo, e a proclamação da ditadura do Comitê Central do Partido. Ele disse: ao concentrar nossa agitação bem como nosso trabalho militar preparatório para a ocasião do Segundo Congresso, estamos mostrando nosso plano ao adversário, estamos dando a ele a possibilidade de se preparar e mesmo de nos dar um golpe preventivo. Mas não há dúvida de que a tentativa de um complô militar e o cerco do Teatro Alexandrino seria um fato muito estranho ao desenvolvimento dos eventos, que seria um evento desconcertante para as massas. Mesmo no soviete de Petrogrado, onde nossa facção dominava, tal empreendimento, antecipando o desenvolvimento lógico da luta, teria provocado uma grande confusão naquele momento, sobretudo entre a guarnição, onde havia regimentos hesitantes e não muito confiantes, sobretudo os regimentos de cavalaria. Teria sido muito mais fácil para Kerensky esmagar um complô não esperado pelas massas do que atacar a guarnição que se consolidava mais e mais nas suas posições: a defesa de sua inviolabilidade no nome do futuro Congresso dos Sovietes. Assim, a maioria do Comitê Central rejeitou o plano de cercar a Conferência Democrática, e estava correto. A conjuntura foi objeto de uma apreciação muito precisa: a insurreição armada, quase sem derramamento de sangue, triunfou exatamente na data, fixada de maneira adiantada e aberta, para a convocação do Segundo Congresso dos Sovietes.

Essa estratégia não pode, entretanto, se tornar uma regra geral, ela exige condições específicas. Ninguém acreditava mais na guerra com os alemães, e os soldados menos revolucionários não queriam abandonar Petrogrado pelo fronte. E mesmo a guarnição como um todo estava do lado dos trabalhadores por esse único motivo, ela se tornava mais convicta do seu ponto de vista na medida em que as maquinações de Kerensky eram reveladas. Mas esse ânimo na guarnição de Petrogrado estava assentado em uma raiz ainda mais profunda na situação da classe camponesa e no desenvolvimento da guerra imperialista. Tivesse havido uma divisão na guarnição e tivesse Kerensky obtido a possibilidade de apoio de alguns regimentos, nosso plano teria falhado. Os elementos de complô puramente militar (conspiração e grande velocidade de ação) teriam prevalecido. Teria sido necessário, é claro, escolher outro momento para a insurreição.

A Comuna também tinha toda a possibilidade completa de ganhar mesmo os regimentos camponeses, porque os últimos haviam perdido toda a confiança e todo o respeito pelo poder e pelo comando. Ainda assim, ela não tomou nenhuma medida nesse sentido. A falha aqui não é nas relações entre o campesinato e a classe trabalhadora, mas na estratégia revolucionária.

Qual será a situação no que diz respeito aos países europeus na presente época? Não é fácil prever qualquer coisa a esse respeito. Ainda assim, com os eventos se desenvolvendo de maneira lenta e os governos burgueses se valendo de todos os esforços para se aproveitar das experiências dos passados, pode-se prever que o proletariado, de modo a atrair as simpatias dos soldados, terá que superar uma resistência grande e bem-organizada em determinado momento. Um ataque habilidoso e atempado da parte da revolução será, então, necessário. A tarefa do partido será se preparar para ele. É por isso que ele deve manter e desenvolver seu caráter de organização centralizada, que guia abertamente o movimento revolucionário das massas e é, ao mesmo tempo, um aparato clandestino da insurreição armada.

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A questão da elegibilidade do comando foi um dos motivos do conflito entre a Guarda Nacional e Thiers. Paris se recusou a aceitar o comando designado por Thiers. Varlin subsequentemente formulou a reivindicação de que o comando da Guarda Nacional, de cima a baixo, deveria ser eleito pelos próprios membros da Guarda Nacional. Foi aí que o Comitê Central da Guarda Nacional encontrou seu apoio.

A questão deve ser abordada de dois lados, o político e o militar, que estão relacionados, mas que devem ser diferenciados. A tarefa política consistia em expurgar a Guarda Nacional do comando contrarrevolucionário. A elegibilidade completa era o único instrumento para isso, já que a maioria da Guarda Nacional era composta de trabalhadores e revolucionários pequeno-burgueses. Além disso, com o slogan “elegibilidade do comando” sendo estendido também à infantaria, Thiers teria sido privado, em um golpe só, de sua arma principal, os oficiais contrarrevolucionários. De modo a realizar esse plano, uma organização partidária, com homens em todas as unidades militares, era necessária. Em uma palavra, a elegibilidade nesse caso tinha como tarefa imediata não fornecer bons comandantes aos batalhões, mas liberá-los de comandantes devotados à burguesia. A elegibilidade servia como uma cunha para dividir o exército em duas partes, entre linhas de classe. Assim se passaram as coisas conosco no período de Kerensky, particularmente na véspera de Outubro.

Mas a liberação do exército do antigo aparato de comando inevitavelmente envolve o enfraquecimento da coesão organizacional e a diminuição do poder de combate. Como regra, o comando eleito é muito fraco do ponto de vista técnico-militar e no que diz respeito à manutenção da ordem e da disciplina. Assim, quando o exército se libera do antigo comando contrarrevolucionário que o oprimia, surge a questão de fornecê-lo um comando revolucionário capaz de executar sua missão. E essa questão não pode ser resolvida de maneira alguma por eleições simples. Antes que amplas massas de soldados adquiram a experiência de escolher bem e selecionar seus comandantes, a revolução será derrotada pelo inimigo, que é guiado na sua escolha do comando pela experiência de séculos. Os métodos de democracia sem forma (simples elegibilidade) devem ser suplementados e, em alguma extensão, substituídos por medidas de seleção vindas de cima. A revolução deve criar um órgão composto de organizadores experientes, confiáveis, nos quais se pode ter absoluta confiança, dá-los plenos poderes para escolher, designar e educar o comando. Se o particularismo e o autonomismo democrático são extremamente perigosos para a revolução proletária em geral, eles são dez vezes mais perigosos para o exército. Vimos isso no trágico exemplo da Comuna.

O Comitê Central da Guarda Nacional tinha sua autoridade fundamentada na elegibilidade democrática. No momento em que o Comitê Central precisa desenvolver ao máximo sua iniciativa na ofensiva, privado da liderança de um partido proletário, ele perdeu sua direção, se apressou a transmitir seus poderes para os representantes da Comuna, que exigiam uma base democrática mais ampla. E foi um grande erro, naquele momento, de brincar com eleições. Mas, uma vez que as eleições tinham sido feitas e a Comuna agrupada, era necessário concentrar tudo na Comuna em um único golpe e fazê-la criar um órgão que possuísse poder real para reorganizar a Guarda Nacional. Não foi esse o caso. Da parte da Comuna eleita, permanecia o Comitê Central; o caráter eleito do último lhe deu uma autoridade política a qual lhe permitiu competir com a Comuna. Mas, ao mesmo tempo, isso o privou da energia e firmeza necessárias nas questões puramente militares que, após a organização da Comuna, justificavam sua existência. Elegibilidade, métodos democráticos, são um entre muitos dos instrumentos nas mãos do proletariado e seu partido. A elegibilidade não pode de forma alguma ser um fetiche, um remédio para todos os males. Os métodos da elegibilidade devem ser combinados com os das indicações. O poder da Comuna emanava da Guarda Nacional eleita. Mas, uma vez criada, a Comuna deveria ter organizado com mão forte a Guarda Nacional, de cima a baixo, fornecido a ela líderes confiáveis e estabelecido um regime de disciplina rigorosa. A Comuna não fez isso, privando-se de um poderoso centro dirigente revolucionário. Ela também foi esmagada.

Podemos, assim, folhear toda a história da Comuna, página por página, e nela encontraremos uma única lição: é necessária uma liderança partidária forte. O proletariado francês fez sacrifícios para a revolução mais que qualquer outro. Mas também, mais do que qualquer outro, ele foi enganado. A burguesia, muitas vezes, o confundiu com as cores do republicanismo, do radicalismo, do socialismo, para sempre amarrar nele os grilhões do capitalismo. Por meio dos seus agentes, seus advogados e jornalistas, a burguesia apresentou uma série de fórmulas democráticas, parlamentares, autonomistas, que não são nada além de grilhões nos pés do proletariado, impedindo seu movimento ascendente.

O temperamento do proletariado francês é uma lava revolucionária. Mas essa lava é agora coberta com as cinzas do ceticismo, resultado de numerosas decepções e desenganos. Além disso, os proletários revolucionários da França devem ser mais rigorosos com o seu partido e devem desmascarar sem misericórdia qualquer descompasso entre palavra e ação. Os trabalhadores franceses precisam de uma organização forte como o ferro, com líderes controlados pelas massas em todo novo estágio do movimento revolucionário.

Quanto tempo a História nos concederá para nos prepararmos? Não sabemos. Por cinquenta anos a burguesia francesa deteve o poder em suas mãos após ter elegido a Terceira República sob os ossos dos communards. Àqueles lutadores de 1871 não faltava heroísmo. O que lhes faltava era clareza no método e uma organização dirigente centralizada. Por isso eles foram vencidos. Meio século passou antes do proletariado francês poder se colocar a questão de vingar a morte dos communards. Mas, dessa vez, a ação será mais firme, mais concentrada. Os herdeiros de Thiers pagarão sua dívida histórica com juros.