A exposição programática abaixo baseia-se em diversos ensinamentos teóricos do Prof. Hector Benoit (cujos textos fundamentais podem ser verificados em bibliografia). Os possíveis erros, todavia, são de nossa inteira responsabilidade (CFNN). Este pequeno texto foi produzido tendo em vista um objetivo muito prático: facilitar grupos de estudos militantes de introdução à discussão programática socialista. Não se pretende nem pode, portanto, ultrapassar tais limites estreitos preestabelecidos.
O texto a ser analisado aqui – o Programa de Transição, de Trotsky – não é de pouca importância. É o texto de programa da IV Internacional, fundada em 1938; ou seja, é o texto que contém a estratégia que deveria orientar todas as seções (todos os partidos) da IV Internacional, em comum. Sobre ele, fala Trotsky (em discussão com membros do Socialist Workers Party, sobre a qual trataremos depois):
“Este programa não é a invenção de um homem. Ele decorre da longa experiência dos bolcheviques. Repito: este programa é a concretização da experiência coletiva dos revolucionários. É a aplicação dos velhos princípios à situação atual.”
Todavia, já na virada da década de 1940 para 1950, o Programa de Transição começou a ser abandonado pelos ditos trotskistas, cada vez mais. Essa situação dura até hoje. Diversos foram os abertamente revisionistas, com destaque para Michel Pablo, Ernest Mandel, Joseph Hansen, George Novack e Nahuel Moreno. Estes acabaram com o caráter revolucionário do programa trotskista, adaptando-o ao reformismo.
Trotsky funda a IV Internacional após a falência da III Internacional (frente à política traidora do stalinismo, que levou à ascensão de Hitler em 1933; então Trotsky começou a organizar forças para fundar a nova Internacional, o que realizou em 1938 e considerou ser a tarefa mais importante de sua vida). A III Internacional, aliás, foi fechada em 1943 para Stalin comprovar a Churchill e Roosevelt que era um aliado fiel durante a guerra; que seus partidos ao redor do mundo não desenvolveriam processos revolucionários (sobretudo nos países que saíssem derrotados da guerra pelos próprios Aliados).
A III internacional (ou Internacional Comunista) foi fundada após a Revolução Russa de 1917, mas já era clamada abertamente como necessidade histórica desde agosto 1914, quando a II Internacional (sobretudo o seu principal partido, o Partido Social-Democrata Alemão) votou pelo financiamento da Primeira Guerra Mundial (ou seja, os deputados do PSDA votaram a favor da entrada de seu país na guerra; pelos “créditos da guerra”, para que o orçamento do Estado alemão fosse destinado à participação na matança). A II Internacional era caracterizada por um programa reformista (com reivindicação “mínima”, econômica, oposta à “máxima”, a revolução – numa lógica sistematizada no Congresso de Erfurt, de 1893), o que os bolcheviques, como veremos, lutaram para superar.
A I Internacional, criada em 1864 por iniciativa de organizações operárias francesas e inglesas (sobretudo), teve entre os membros presentes em seu congresso de fundação (assistindo de longe, na plateia, sem tomar a palavra) o alemão Karl Marx, que logo foi apontado para seu Conselho Geral (Direção), e em pouco tempo se tornou seu principal dirigente. Marx dirigia a Internacional ao mesmo tempo em que redigia O Capital. A Internacional, todavia, foi tomada por contradições derivadas da Guerra Franco-Prussiana e sobretudo da derrota da Comuna de Paris (1871), à qual seguiu-se enorme repressão. Isso levou à explosão e fechamento da Internacional (processo no qual os conflitos de Marx com Bakunin são bastante secundários).
A I Internacional é, de certa forma, herdeira na Liga dos Comunistas (1847-1851), primeira organização internacional comunista, dirigida por Marx e Engels. Por sua vez, esta decorre da fusão entre o Comitê de Correspondência Comunista (dirigido por Marx, em Bruxelas, entre 1846 e 1847) e uma parte (uma fração operária) da Liga dos Justos (1836-1847).
Todas essas organizações são marcadas, portanto, pelo internacionalismo, contra diversas formas de nacionalismo (chauvinismo), em defesa da criação de uma sociedade universal, com uma cultura comum, como expressaram Marx e Engels já no Manifesto do Partido Comunista (1847/48).
Por fim, vale comentar, nesta introdução, que, para Trotsky, no Programa a ser analisado, a noção fundamental de transição não é a que vai do presente atual até um futuro comunista longínquo (uma sociedade ideal), mas o processo que vai do presente atual até a tomada do poder (iniciando a ditadura do proletariado). Ou seja, o fundamental a se refletir neste momento é sobre o processo de negação do presente. Há, evidentemente, outras possíveis noções de transição a serem discutidas, mas elas não nos interessam neste estudo.
Síntese cronológica das Internacionais:
I Internacional (Associação Internacional dos Trabalhadores), 1864-1876. Fundada, entre outros, por Marx (que assistiu ao congresso de fundação e dirigiu a organização na maioria do tempo);
II Internacional (Internacional Socialista), 1889-1916. Fundada, entre outros, por Engels (já em idade avançada). Dirigida sobretudo pela Social-Democracia alemã;
III Internacional (Internacional Comunista), 1919-1943. Fundada, entre outros, por Lenin e Trotsky;
IV Internacional, 1938 – meados da déc. 1950. Fundada, entre outros, por Trotsky.
Elementos a serem apresentados:
– Relação dialética com O Capital de Marx;
– Teoria de partido como dialética de níveis organizativos (processo ao mesmo tempo dirigido e autoemancipatório);
– Superação da noção de programa mínimo pela de transitório;
– Revolução Russa: dualidade de poder;
– Ação de março de 1921 na Alemanha: Frente Única (caso histórico não russo);
– Programa para crise geral do capital (diferenciação entre crise geral e crise parcial), sobretudo para conjuntura pós-1929;
– Greve Geral francesa de 1936;
– Relação com operários norte-americanos.
O texto é aberto com as polêmicas declarações sobre as condições objetivas e subjetivas da revolução.
O debate sobre as forças produtivas terem parado de crescer ou não é relevante, mas não entraremos nele aqui. O que importa para nós neste momento é destacar a existência de uma contradição fundamental entre forças produtivas e relações de produção no atual período histórico, contradição que cria as condições objetivas para uma superação socialista do capitalismo. Sobretudo, não se trata de constatar empiricamente uma paralisia das forças produtivas, mas de compreender sua contradição fundamental com as relações de produção.
Diferentemente de todos os partidários do desenvolvimentismo burguês, Trotsky considera que as condições objetivas para a revolução em todos os países não só estão maduras, mas começam a apodrecer. O único empecilho histórico é a direção revolucionária do proletariado, marcada pelo oportunismo e pela covardia.
Aqui já aparece, portanto, a primeira forma organizativa do Programa: o partido. O programa é o programa do partido, da organização revolucionária, mas, como veremos, esse programa abarca não apenas a organização partidária estrita, mas também as outras formas organizativas, que farão uma dialética com esta primeira (partido). É totalmente errado, portanto, considerar que o Programa de Transição seja espontaneísta (partindo magicamente da ação das massas pelas escalas móveis). Do contrário, Trotsky não iniciaria o texto exatamente por este elemento:
“A situação política mundial no seu conjunto caracteriza-se, antes de mais nada, pela crise histórica da direção do proletariado (…) Tudo depende do proletariado, ou seja, antes de mais nada, de sua vanguarda revolucionária. A crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária.” [itálico nosso]
O partido revolucionário é pressuposto de todo o processo, é condição sine qua non. Sem ele não há qualquer dialética entre as formas organizativas para a tomada do poder. O partido é o elemento do nível ilegal da dialética das formas organizativas. É ilegal não meramente no sentido jurídico-burguês, mas sobretudo porque ele tem consciência da ilegalidade histórica do sistema capitalista, e, por isso, é capaz de voltar essa ilegalidade contra o próprio sistema.
Para que essa consciência histórica da ilegalidade não se perca, o partido só pode ser estrito (fechado), ou seja, só pode admitir membros que julgue estarem preparados, à altura da tarefa histórica (teórica e praticamente). Por isso, o partido só pode funcionar sob a fórmula de organização leninista (que, vale lembrar, não se caracteriza meramente pelo centralismo democrático, mas também pela barreira clara à admissão de novos membros, sem a qual nenhum centralismo democrático funciona). Se não for estrita (fechada), a forma organizativa partidária será incapaz de fecundar as demais formas organizativas que serão aqui apresentadas, como os sindicatos, os comitês e os conselhos (portanto, não haverá qualquer dialética de níveis organizativos).
Trotsky nesse programa argumenta ser necessário
“ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas, a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de REIVINDICAÇÕES TRANSITÓRIAS que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: à conquista do poder pelo proletariado.” [negrito nosso]
Trata-se de superar a dicotomia entre programa mínimo e programa máximo, tão característica dos reformistas, que não querem nunca sair do mínimo e usam o máximo (discursos sobre socialismo) para encobrir seu oportunismo. Trata-se de encontrar o programa transitório, ou melhor, as reivindicações transitórias, cujo conteúdo conceitual supera a antiga forma dicotômica.
A discussão sobre reivindicações transitórias (e não mínimas nem parciais) foi bastante intensa dentro da III Internacional. Ignorar isso é ignorar o legado histórico do comunismo. A noção de “reivindicações transitórias” foi um ganho conceitual realizado até o IV Congresso da III Internacional (depois disso, com o stalinismo, o conceito de transição se perdeu, já no V Congresso). A noção geral de reivindicação de transição, abstratamente pensada, estava já expressa no Manifesto do Partido Comunista, como já estudamos (ver nosso Marx e O Estado, cap. 3), onde os fundadores do marxismo afirmavam ser necessário encontrar medidas que parecessem economicamente muito pouco mas que, no transcurso de seu desenvolvimento, ultrapassassem a si mesmas.
Todavia, os autores do Manifesto – a despeito do movimento dialético contido no desenvolvimento geral de O Capital de Marx – não encontraram exatamente tais reivindicações transitórias, ou não as concretizaram numa forma tão sintética quanto as do Programa de Transição. Isso só foi possível com os bolcheviques, graças à experiência da própria revolução.
Os bolcheviques discutiram detalhadamente o conceito de transição ao longo dos três primeiros congressos da III Internacional, e chegaram, de forma consciente, finalmente, à noção de “transição”. Fundamentais foram as contribuições de Trotsky, Thalheimer (pela delegação alemã, contra Bukharin), bem como Radek (este, em nome da delegação russa). Os principais teóricos dessa época, como Riazanov, passaram então a utilizar expressamente a noção de “programa de transição” (Riazanov usa este termo, por exemplo, em 1932, em suas Notas ao Manifesto do Partido Comunista). As noções de transição, de reivindicações transitórias e de programa de transição são portanto uma herança clara e direta da Revolução de Outubro de 1917. Abandoná-las é fazer a experiência histórica dos revolucionários retroceder.
Trata-se do reajuste mensal dos salários conforme a inflação dos produtos básicos. Com um mínimo assegurado (um piso), os salários devem subir de acordo com a inflação. Se quiséssemos ser ao máximo imanentes – ou seja, apresentar o programa na forma que pareça mais “inofensiva” aos capitalistas –, poderíamos até dizer que, tendo sido assegurado aquele mínimo (do qual não se desce), o salário, após ter subido, pode até diminuir em caso de deflação. O salário oscila de acordo com os preços. É a indexação. O fundamental é não haver piora das condições de vida atuais. Parece pouco, mas é explosivo.
Essa reivindicação significa a manutenção do poder de compra. É diferente da reivindicação usual da burocracia sindical – “ganho real” em datas-bases, reposição da inflação de XX% (em geral, com números altos) –, que só serve para legitimar pouco a pouco a diminuição do nível de vida. A burocracia sindical deixa a inflação comer o salário durante todo um ano (por exemplo, em 10%); chega na data-base e luta pelos 10%, mas no final da luta obtém apenas 4% (por exemplo). Assim, ela finge que luta, diante dos trabalhadores, e que consegue algo (de fato, consegue: 4% é melhor do que 0%). Mas na prática ela é ótima aos patrões, pois legitima uma perda a cada ano (nesse exemplo, de 6%).
Aqui não é o momento para desenvolver isto, mas notemos que Marx, em O Capital, combate tanto a chamada “teoria do fundo salarial” quanto a chamada “lei de ferro dos salários”. Tais são formas em que os salários dos trabalhadores eram apresentados, pela economia burguesa, como um montante fixo. Não faria sentido os trabalhadores lutarem por aumentos salariais – explicava a Economia Política da burguesia –, pois apenas perderiam de outra forma o que haviam ganhado. Contra isso, Marx esforçou-se para mostrar que nada havia de fixidez na definição dos salários. Ou seja: os salários não são regidos por regras da natureza, e sim pela luta de classes. Os salários têm uma elasticidade. É por se aproximar dessa elasticidade que compõe o próprio conceito de salários que a escala móvel de salários tem um potencial maior do que as reivindicações da burocracia sindical.
É o reajuste mensal das horas de trabalho, com um máximo assegurado (um teto). As horas totais de trabalho necessárias numa dada empresa devem ser divididas entre os que nela trabalham. Por exemplo, se uma empresa necessita de menos horas de trabalho (seja porque instalou uma máquina nova e produz o número anterior de mercadorias em menos tempo, seja porque, devido à crise, não há demanda), ela não deve demitir os seus trabalhadores. As horas a menos de trabalho devem ser reajustadas/divididas todos os meses entre os trabalhadores daquela empresa. Assim, num mês a jornada pode ser de 44h (supondo que seja o teto estabelecido), no outro pode ser de 40h, no outro de 38h, 36h, 20h, depois voltar a subir até o teto etc. O fundamental é não permitir nenhuma demissão.
É como um banco de horas, mas a serviço do trabalhador e não da empresa. Numa empresa com banco de horas, quando não há necessidade social de produção, a empresa coloca o trabalhador de “molho” (sem demiti-lo); manda-o para casa ou o faz trabalhar menos horas na jornada, mas este fica devendo horas, a serem cumpridas depois. Assim ela inclusive mina a resistência da classe trabalhadora. No caso da escala móvel de horas de trabalho, não: o operário pode trabalhar menos hoje e mais amanhã, e não fica devendo nada.
Com a diminuição móvel das horas o salário médio deve se manter o mesmo da antiga semana de trabalho (ou seja, não deve oscilar de acordo com a diminuição da jornada). É a “redução móvel da jornada, sem redução do salário”. E segue valendo, ao mesmo tempo, a escala móvel de salários, apontada acima. A burguesia poderia muito bem diminuir a jornada de trabalho (para não demitir), mas com diminuição dos salários. Ora, isso retiraria completamente o caráter transitório das reivindicações (que só é transitório, portanto, com as duas escalas funcionando juntas).
Marx, em O Capital, analisa o que chama de “mais-valia absoluta” (aumento da exploração do trabalhador via aumento da jornada de trabalho), e, concomitantemente, analisa a luta dos operários para limitar e diminuir a jornada de trabalho. Marx considera isso um avanço histórico da classe trabalhadora, todavia, não à toa passa em seguida para a análise do que chama de “mais-valia relativa” (exploração via aumento da produtividade, pois possibilita a redução dos preços das mercadorias necessárias à manutenção do trabalhador). O que Marx quer dizer com esse movimento (passagem da análise de uma forma de mais-valia a outra)? Cremos que ele nos indica que a mera luta pela redução fixa da jornada de trabalho não é suficiente. A burguesia, contra isso, desenvolve diversas formas de aumento da exploração, via formas de extração de mais-valia relativa. Não à toa, ainda hoje, o grau de exploração de um trabalhador americano ou europeu, devido à produtividade, é muito maior do que o de um trabalhador brasileiro ou asiático.
Não basta a redução fixa da jornada. É necessário pensar uma política a respeito da jornada de trabalho que também toque no problema do aumento da exploração via aumento da produtividade (aumento da mais-valia relativa). Essa política é a escala móvel das horas de trabalho (combinada com a escala móvel de salários). Ora, se os métodos de exploração do capital são móveis e elásticos, como iremos combatê-los com medidas fixas e estanques? Nossas armas têm de estar à altura das armas do inimigo!
As duas escalas servem a todas as categorias – portanto, unificam a classe trabalhadora de verdade. Mesmo tendo pisos salariais diferentes, qualquer categoria pode reivindicar a mesma coisa: reajuste mensal dos seus salários de acordo com a inflação básica e nenhuma demissão. Assim, essas reivindicações suprimem os diversos índices quebrados e particulares das diversas categorias (5,2%, 10%, 14,3%, 7,8% e tantas outras irracionalidades), e acabam com as lutas das categorias em épocas diferentes (as chamadas “datas-bases”). Estas formas irracionais foram implantadas no Brasil pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) de Getúlio Vargas, numa cópia da Carta del Lavoro da constituição fascista de Mussolini. O objetivo claro, junto ao controle direto dos sindicatos pelo Estado, foi a divisão das categorias. A palavra de ordem era “organizar o trabalho”! É o que demarca todo o movimento sindical (burocrático) até hoje. As escalas atuam exatamente em sentido contrário: unificam as reivindicações e o momento de luta.
Além disso, elas (as escalas) não podem funcionar em apenas uma localidade (senão essa região fica pouco lucrativa para o capital e este apenas migra, abandonando investimentos). Eis por que elas só podem servir para todo um país, ou melhor, para toda uma região econômica ampla (como parte do continente latino-americano, por exemplo). Eis por que esse programa deve ser aplicado por uma internacional. Esse programa pode ser um programa único para todos os trabalhadores do mundo!
É fundamental notar que no Programa de Transição Trotsky afirma que a reivindicação de escala móvel das horas de trabalho tem de ser lançada “ao mesmo tempo que a palavra de ordem de trabalhos públicos”. Não é possível realizar nada desse programa transitório se houver uma enorme fila de desempregados realizando pressão sobre os que trabalham. Acabar com a “superpopulação relativa” significa acabar com a alavanca de acumulação do capital (e com o próprio capital, portanto). Diz Marx, quanto a isso, no cap. XXIII do Livro I de O Capital:
“[…] uma população trabalhadora excedente é produto necessário da acumulação […] essa superpopulação torna-se, por sua vez, a alavanca da acumulação capitalista, até uma condição de existência do modo de produção capitalista.” [itálicos nossos]
As escalas móveis, combinadas com as Frentes Públicas de Trabalho, simplesmente paralisam a lei geral de acumulação do capital; colocam uma trava insuportável ao sistema.
Acabar com essa alavanca capitalista (a superpopulação relativa) só é possível em determinadas condições de luta. As organizações dos desempregados devem se unir às dos empregados (que estão lutando pelas escalas) para reivindicar conjuntamente emprego ao Estado (“frentes públicas de trabalho”, construção de hospitais, escolas, universidades, creches, vias, rodovias etc.). Isso só é possível se for concebido como um plano de construção para uma série de anos.
Nisso são importantes os chamados “movimentos populares”. Muito mais do que serem movimentos meramente por “direitos” (à moradia, à saúde, à educação, ao transporte etc.), as organizações sociais e populares (não de categorias organizadas sindicalmente) devem se tornar movimentos contra o desemprego (por frentes de trabalho). Elas devem ter como centralidade o problema do desemprego, e não o problema do mero “direito”. Só assim auxiliarão os trabalhadores produtivos na luta contra o aumento da exploração. Do contrário, apontarão para resoluções adstritas ao âmbito do Estado burguês; a classe trabalhadora será reforçada em seu aspecto de mera consumidora, e não como produtora.
Tais obras públicas (hospitais, escolas etc.), à medida que passam a funcionar, absorvem também “profissionais liberais” (proletários melhor remunerados), como professores, médicos, engenheiros etc., setores “médios” que também têm de ser ganhos à causa revolucionária.
Mas note-se como fundamental o seguinte, referente ao problema do Estado: obras públicas podem ou não favorecer o proletariado. Elas podem ser meras medidas keynesianas, de ampliação da demanda efetiva para tirar os setores produtivos da crise (a maior de todas as obras públicas é a própria guerra promovida por uma nação). Obras públicas podem ser algo como o programa New Deal, de Roosevelt.
Trabalho estatal, para Marx, não é produtivo (não produz mais-valia), como já explicamos (ver o nosso Marx e o Estado, cap. 2). Trabalho público pode favorecer e pode não favorecer o conjunto dos capitalistas, a depender da situação da luta de classes. Se eles servem para quebrar a alavanca de acumulação do capitalismo (diminuindo muito a superpopulação relativa), podem servir à luta do proletariado. Se servem de forma meramente pontual, para contornar um crise capitalista (ou para aumentar as forças produtivas numa dada empreitada, ramo produtivo ou região), servem no final das contas apenas ao capital.
Essas condições muito específicas – que dependem da pressão e da luta entre as classes –fazem com que a reivindicação de frentes públicas de trabalho não seja, em si e por si mesma, transitória (socialista). Tal reivindicação deve ser definida, portanto, não como transitória, mas como auxiliar ao processo transitório (às escalas móveis).
Tanto com a diminuição da jornada com diminuição de salários quanto com o banco de horas, a burguesia usa o caráter “móvel” a seu favor. Ela adequa sua produção à “necessidade social” (“demanda” de mercadorias), mas faz tal adequação ser determinada, antes de tudo, pela necessidade do seu próprio lucro. A determinação não se dá pelo social em si (“demanda” da sociedade), mas pelo social mediado pelo privado (pela necessidade do lucro). A necessidade de um valor de uso (um bem) só é atendida se o valor-capital (lucro) for atendido. Assim é no capitalismo.
No Programa, do que se trata, com as escalas móveis (combinadas), é de adequar propriamente a escala da produção social à necessidade social, sem intermediários privados. Eis por que as escalas móveis são transitórias: elas têm um caráter socialista porque emulam já, no presente, a forma de funcionamento da sociedade socialista, regida não pela lei do valor e sim pelo valor de uso (necessidade social que determina a escala da produção).
Com as escalas móveis (somadas às frentes públicas), não há inflação, nem demissão, nem desemprego, e se produz de acordo com a necessidade social (todo aumento na produtividade leva à diminuição das horas de trabalho). As escalas móveis, por assim dizer, emulam ao máximo o socialismo. Eis por que podemos dizer que elas “presentificam” o socialismo. E, por isso, elas abrem de forma ainda mais explosiva as contradições do capitalismo; colocam a oposição entre interesse do trabalhador e interesse do patrão como inconciliável, abertamente como oposição entre classes. Elas trazem em si o conflito entre dois mundos: o capitalista e o socialista.
Eis por que Trotsky afirma – na discussão com membros do SWP intitulada “Sobre o atraso político dos trabalhadores norte-americanos” – que as escalas móveis são
“na realidade a descrição do sistema de organização do trabalho na sociedade socialista.”
Eis por que também, nessa mesma entrevista, ele completa:
“É mais fácil derrubar o capitalismo do que garantir efetivamente a escala móvel de salários e horas de trabalho no quadro do sistema capitalista. Nenhuma das nossas reivindicações será realizada nesse quadro, é por isso que lhes chamamos reivindicações transitórias: estabelecem uma ponte que nos permite atingir os trabalhadores, e uma verdadeira ponte para ir à revolução socialista.”
Não à toa essa discussão se realiza com membros do SWP (Socialist Workers Party, a seção norte-americana da IV Internacional). E não à toa o nome dessa entrevista é exatamente “Sobre o atraso político dos trabalhadores norte-americanos”. Trata-se de formular um programa para o país capitalista mais avançado do planeta (os EUA), o mais próximo – do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas – do socialismo. E trata-se de elaborar um programa exatamente para o país onde o operário é aparentemente o mais “conservador”, ou seja, para aquele país sem tradição de revolução (que não teve revolução burguesa, como a inglesa ou a francesa, e não teve revolução proletária, como a de junho de 1848 na França ou a Comuna de Paris, ou, ainda, a Revolução Russa).
Trata-se de adaptar o programa socialista à consciência do operário mais “despolitizado”, mais “atrasado”, o operário para o qual menos é possível ficar falando (doutrinando) sobre “socialismo”, o operário mais avesso a cair nas charlatanices (discurso vazio) da pseudo-esquerda. Para esse operário, o palavrório sobre socialismo aparece como realmente é: algo externo. É necessário, pelo contrário, fazer o socialismo na prática, “presentificá-lo”; fazer o socialismo brotar dentro da própria realidade, a partir dos problemas mais básicos (salário e emprego) dos operários.
Por tudo isso, Trotsky diz, nessa mesma entrevista com os membros do SWP, que
“se apresentássemos de uma vez o sistema socialista seríamos chamados de utopistas pelo americano médio que nos dirá que são ideias importadas da Europa.”
O conservadorismo dos trabalhadores – a vontade de conservar as condições de vida atuais, os empregos e salários – tem de ser colocado a serviço do socialismo.
Em suma: as escalas móveis são dialéticas porque contêm em si a diferença entre essência e aparência: elas não aparecem para a massa como socialistas (aparecem apenas como “manutenção” de sua condição de vida atual), mas são em essência socialistas (estão lastreadas na forma de funcionamento da economia socialista). As escalas móveis aparecem como defensivas, mas são na realidade ofensivas. Elas suprimem toda dicotomia estanque e não dialética dos programas anteriores (como mínimo e máximo, como defensivo e ofensivo, como econômico e político). Eis por que elas abrem potentes contradições na realidade e potencializam a dialética das formas organizativas (dirigidas pelo partido, é claro) que serão apresentadas.
Trotsky concebeu tais reivindicações no processo que vai de 1936 a 1938. Isso porque em 1936 ocorre a Greve Geral francesa. Nela, o movimento dos trabalhadores ocupou fábricas e se preparou para tomá-las. Todavia, as reivindicações dos trabalhadores – reposição da inflação com “ganho real” e diminuição fixa da jornada – foram atendidas. Isso fez com que as direções stalinistas tivessem mil vezes mais facilidade para quebrar o movimento grevista e de ocupação. Trotsky, que em 1934 defendia exata e abertamente tais reivindicações – ganhos reais e diminuição fixa da jornada (como pode-se ver em seu Programa de Ação para a França) –, refletiu sobre essa derrota e passou a buscar conceitualmente reivindicações que não pudessem ser atendidas pelo capitalismo, que não pudessem ser usadas para contornar ou conciliar a luta, que tendessem ao socialismo (ver, sobre esses elementos, texto “Ascensão e queda do Programa de Transição”, em nosso site).
Há de se considerar, ainda, que Trotsky concebe tais reivindicações para terem grande potencial especialmente numa conjuntura de crise geral do sistema capitalista. Trotsky está refletindo sobre a situação do sistema capitalista após a enorme crise de 1929, que não foi uma crise parcial ou localizada, mas sim uma crise geral, ou seja, uma crise que paralisou a acumulação do sistema por muitos anos (e só foi resolvida pela enorme destruição de forças produtivas na II Guerra Mundial). A diferença entre crise parcial e crise geral (ou relativa e universal) do sistema capitalista está contida em Marx – veja-se, por exemplo, itens 8 e 14 do cap. XVII (“Teoria da Acumulação de Ricardo”) da parte 2 da obra chamada de Teorias da Mais-valia (nome convencionado). Uma crise geral difere-se da parcial justamente por ser de superprodução absoluta (e não relativa), por uma erupção coletiva de todas as contradições do capital (inclusive as da superestrutura), deixando a burguesia momentaneamente impotente. Tal crise, por isso, dificulta a recomposição de capital e o reinício de um novo ciclo de acumulação. Numa crise geral, a situação da inflação foge absolutamente do controle, bem como o desemprego mostra-se persistente (o exército de desempregados não dá base a nova acumulação em grau satisfatório para o capital).
Isso quer dizer que Trotsky escreveu o Programa para uma conjuntura do passado? Não, pois as crises geral e parcial são duas possibilidades permanentes sob sistema capitalista. O Programa de Transição foi escrito sob essa experiência (pós crise de 1929) para dar um golpe mortal no capitalismo na hora em que a burguesia se sente mais frágil, como um todo, em sua dominação de classe.
Como efetivar esse programa? Depende dos sindicatos, o primeiro organismo de frente única da classe trabalhadora. Diz Trotsky na mesma (já referida) discussão com membros do SWP:
“PERGUNTA [membro SWP]: Como organizar a campanha por essa reivindicação [escalas]?
CRUX [codinome de Trotsky]: Poder-se-ia imaginar essa campanha do seguinte modo: vocês começam a agitação, por exemplo, em Minneapolis. Ganham um ou dois sindicatos para este programa. Depois enviam delegados a outras cidades, a diferentes sindicatos. Desde o momento em que o programa tenha saído do partido para penetrar nos sindicatos, a batalha estará meio ganha.”
Por que os sindicatos? Por dois motivos: eles são organizações do conjunto da classe trabalhadora (organismos de frente única) e correspondem ao nível da legalidade burguesa. Eles são do conjunto da classe porque foram criados pela própria classe trabalhadora, anonimamente (pelo “trabalhador coletivo”, como diz Marx n’O Capital), em sua resistência mínima ao capital. Os sindicatos representam a força do conjunto da classe, como classe (e não como partido), contra o conjunto da classe burguesa.
Note-se aqui, en passant, que Marx diferencia partido em sentido estrito de partido amplo, do conjunto da classe, como o movimento geral da classe trabalhadora. Ele nunca negou uma forma em nome da outra – como pode parecer numa leitura desatenta, sobretudo de algumas de suas cartas ao poeta F. Freiligrath –, mas sempre buscou uma dialética entre as duas formas. Para Marx, uma revolução necessita tanto do movimento da ampla maioria trabalhadora, quanto dos partidos dos setores trabalhadores mais avançados, os partidos em sentido estrito. Não à toa ele construiu a Primeira Internacional, com seu alto grau de centralismo, cujos militantes tinham por objetivo intervir nos sindicatos então existentes.
O movimento comunista, no período sadio da III Internacional, também compreendeu a necessidade das formas organizativas das amplas maiorias (e sua disputa dentro delas), sobretudo após a falida “ação de março” de 1921, na Alemanha. Nesse ano, o Partido Comunista Alemão tentou realizar uma ação revolucionária – um putsch (golpe) completamente irresponsável, dirigido pelo setor da internacional vinculado a Zinoviev –, sozinho, sem as massas e até contra as massas (ver as críticas do dirigente Paul Levi ao processo). Tratou-se de ação desesperada, frente às condições miseráveis em que a URSS se encontrava em 1921 (condições que deram base ao recuo tático da NEP). O resultado do putsch alemão de 1921 foi a completa desmoralização do partido alemão, a perda de centenas de milhares de membros em poucas semanas, a quebra de sua direção, o fortalecimento do governo social-democrata e das forças de direita (que abriram espaço pouco depois à ascensão de Hitler). Eis o preço que pagaram por não valorizarem a disputa das massas em sua forma mais ampla!
A questão da valorização dos organismos de frente única é portanto fundamental. Trata-se de processo que os bolcheviques, devido a condições específicas da Rússia em 1917 (ausência de partidos socialistas-reformistas de massas, ausência de sindicatos de massas), não vivenciaram em seu país de origem (mas somente nos países da Europa Ocidental). Esse elemento, absorvido após a derrota alemã em 1921, tornou-se então parte do programa comunista em geral. Ou seja: sem organismos de frente única é impossível fazer um processo revolucionário que conquiste e mantenha o poder. Eis por que Trotsky no Programa diz que
“o autoisolamento capitulador fora dos sindicatos de massa, equivalente à traição da revolução, é incompatível com a militância na IV Internacional”.
Mas os sindicatos têm a característica ainda de corresponder às formas mais atrasadas de consciência dos trabalhadores, dado que estão no nível da legalidade burguesa, ou seja, dado que negociam com os sindicatos patronais, sob auspícios da justiça burguesa, o valor da força de trabalho. Dado que está vinculado à esfera de compras e vendas (no caso, da mercadoria específica força de trabalho), o sindicato está na esfera de circulação do sistema capitalista.
Deve-se tomar, aponta Trotsky, uma série de medidas organizativas para impedir a burocratização dos sindicatos (rotatividade, não dependência do Estado, não utilização de impostos, depender apenas de sua própria base). E, mesmo assim, os sindicatos não organizam mais do que os setores mais bem pagos das categorias (cerca de 20%). Por isso mesmo, eles têm forte tendência à burocratização e à conciliação (a serem comprados pelo Estado e pelas empresas). Os comunistas devem encontrar seus quadros sindicais entre os setores mais explorados e oprimidos da classe, garantir rotatividade e estar sempre prontos para propor formas organizativas mais radicais, dinâmicas e democráticas, no calor dos movimentos reais, que ultrapassem a forma sindical (como comitês de greve, por exemplo). Ficar refém da burocracia sindical é um crime.
Para Trotsky, no atual período histórico (de contradição fundamental entre as forças produtivas e as relações de produção), não é mais possível aceitar que os sindicatos tenham programa reformista ou lutem por sua “autonomia” em relação aos partidos (velho discurso anarquista ou anarcossindicalista). Não: ou os sindicatos têm programa revolucionário ou não têm nenhum e, portanto, acabam caindo sob influência das forças do Estado e servem ao capital (ver texto “Sindicatos na Época da Decadência Capitalista”, de Trotsky).
Ter programa revolucionário no sindicato significa ter o programa de um partido? Sim e não. Não é todo o programa (desde a luta mais básica até a expropriação da burguesia e conquista do poder) que deve ser apresentado no sindicato. O sindicato deve ter a forma aparente do programa (as escalas móveis e a luta contra o desemprego), a forma que já aponta para o socialismo como algo latente. Somente o partido é a forma organizativa que contém todo o programa, por completo (toda a concepção do desdobramento de formas organizativas e formas de luta, até a tomada do poder).
Os sindicatos devem lutar, dirigidos pelos comunistas (IV Internacional), pela efetivação das escalas móveis nos contratos coletivos das categorias. Para isso, devem valer-se de formas de luta como greves e ocupações.
Todavia, os sindicatos têm grandes limites. Como apontamos, eles não abarcam grandes setores da classe (só uma minoria, mais privilegiada). E mais: eles não entram propriamente dentro do âmbito interno das fábricas. Os sindicatos são organizações fisicamente externas às fábricas; têm em geral sua sede, legalizada, localizada num local próximo às fábricas que representam, mas externos a elas. Seus diretores, aliás, são “liberados” do trabalho.
Os sindicatos, enquanto esfera organizativa, correspondem, como vimos, à legalidade e à esfera da circulação de mercadorias do capitalismo. Fazendo uma analogia com O Capital de Marx, trata-se do movimento que vai do capítulo I ao capítulo IV (seções I e II) do Livro I, antes portanto da exposição do livro adentrar a fábrica. São as partes iniciais do texto, em que Marx (como consciência da ilegalidade do sistema, do processo geral de exposição do livro) conduz a consciência mais atrasada do leitor desde a esfera da circulação de mercadorias (legalidade, de onde os burgueses tiram seus valores liberais abstratos) até a esfera da produção de mercadorias (onde aqueles valores abstratos se mostram como exploração e ditadura). Assim, Marx apresentou uma forma (circulação), revelou suas contradições internas, e estas necessariamente nos levaram a outra forma (produção). Agora, aqui, na dialética das formas (níveis) organizativas, também faremos o mesmo processo. Devemos avançar para além dos limites dos sindicatos (externalidade em relação a como e o que é produzido, mera negociação do valor da força de trabalho, sem interferir propriamente no processo de trabalho). Isso só pode ser feito com outra forma organizativa.
Trata-se de nova forma organizativa, ou melhor, de novo organismo de frente única da classe: o comitê de fábrica. Este se diferencia não só por estar dentro da fábrica, mas por – justamente – conseguir abarcar mais trabalhadores, os mais explorados de cada fábrica, aqueles que mais sofrem o drama cotidiano da exploração, para quem não apenas as questões de salário são fundamentais, mas também as de intensidade da jornada e condições de trabalho no geral. Os comitês de fábrica não têm legalidade completa ou bem admitida (juridicamente), e, por isso, demarcam já outra situação: a semilegalidade. Eles significam, do ponto de vista organizativo, o avanço da consciência legal (mais atrasada, representada nos sindicatos) para uma mais avançada, que todavia ainda não é a consciência ilegal (partidária, compreensão da necessidade de derrubada do sistema capitalista).
O movimento de passagem dos sindicatos aos comitês de fábrica não pode nem deve significar que os sindicatos perdem seu sentido e devem ser abandonados. Pelo contrário, os comitês, existindo ao mesmo tempo, darão uma nova vida e força aos sindicatos, afastando-os das tendências de conciliação com o Estado e a burguesia. E só é possível chegar aos comitês, de forma estável, duradoura e ampla (numa região econômica mais relevante), tendo antes passado pela forma do sindicato! Não há aqui qualquer tipo de obreirismo que nega os sindicatos como ferramentas condenadas historicamente. As negações unilaterais dos sindicatos só servem à burocracia sindical; só facilitam a esta controlar a classe trabalhadora. A burocracia agradece quando se abandona a luta por tirar os sindicatos de suas mãos.
Enquanto um sindicato abarca diversas (às vezes centenas de) fábricas, um comitê de fábrica organiza em maior profundidade os trabalhadores de uma só fábrica. Como ele surge? Das greves e, propriamente, das greves com ocupação. Da mera luta, portanto, pela efetivação das escalas móveis, desencadeadas inicialmente nos sindicatos. Aí aparece como fundamental a questão do partido, da direção revolucionária (o pressuposto organizativo). O partido deve propor que aquela luta pelas escalas móveis, a partir dos sindicatos, torne-se uma greve (forma de luta); que se crie, na hora certa, um comitê de greve (forma organizativa) na fábrica. São os comitês de greve que, assentando-se (e sobretudo em processos de ocupação), tornam-se comitês de fábrica.
O comitê de greve não é uma forma organizativa que corresponde necessariamente à esfera da circulação (como os sindicatos) ou à esfera da produção (como os comitês de fábrica). Os comitês de greve são criados para cada greve, para determinado fim (seja qual for). É uma forma organizativa, portanto, sem conteúdo claro, e, por isso mesmo, fugidia. Trata-se de forma que por tal característica pode ser uma intermediária, ou seja, pode conduzir a luta da forma do sindicato até a forma do comitê de fábrica (os comitês estão materialmente lastreados em esferas propriamente ditas, objetiva e materialmente existentes, seja a da circulação, seja a da produção de mercadorias). Existindo a direção revolucionária, a luta pelas escalas móveis (impossíveis de serem atendidas), a partir dos sindicatos, deve se tornar greve; deve-se criar um comitê de greve, e este, ampliando significativamente a participação dos operários daquela fábrica (sobretudo funcionando com formas democráticas de representação), deve dirigir um processo radical que leve à ocupação da fábrica. Ocupação não meramente pela ocupação, obviamente, mas como necessidade para obtenção das reivindicações que mantêm as condições de vida dos trabalhadores (escalas móveis).
Trotsky ensina no Programa que
“toda greve com ocupação de fábrica coloca na prática a questão de saber quem é o dono da fábrica: o capitalista ou os operários.”
Assim, surge pela primeira vez a questão do poder. Surge pela primeira vez o que ficou conhecido como dualidade de poder, ou poder dual, ou, ainda, poder paralelo. Note-se que o nome correto é dualidade de poder, e não dualidade de poderes. Trata-se de entender que poder é a força que provém da apropriação dos meios de vida, os meios de produção. A classe que os detém é por isso poderosa. Quando a apropriação da fonte do poder começa a ser questionada, este mesmo fica partido (reparte-se ou manifesta-se de forma repartida).
A Revolução Russa de 1917 assentou de forma absolutamente clara essa estratégia da dualidade de poder como algo que parte das fábricas e depois se estende a toda a sociedade (a obra História da Revolução Russa, de Trotsky, é o registro monumental disso, inclusive como reflexão para compreensão desse processo, para depois efetivá-lo em programa). Tal processo não havia ficado tão claro na experiência da Comuna de Paris, que não tivera tempo de realizar uma experiência propriamente dual no âmbito da produção.
Diz ainda Trotsky no Programa:
“se a greve com ocupação suscita esta questão [do poder] episodicamente, o COMITÊ DE FÁBRICA confere a esta mesma questão uma expressão organizada. Eleito por todos os operários e empregados da empresa, o comitê da fábrica cria de uma só vez um contrapeso à vontade da administração.”
Veja-se, por exemplo, entrevista na revista Maisvalia #1 com o operário Gazito, da Volkswagen da Av. Anchieta (ABC paulista), que nela trabalhou nos anos 1980 e foi da Comissão de Fábrica. Ele aponta que primeiramente a própria empresa criou uma comissão de fábrica de fachada, para tentar controlar a peãozada (algo muito comum ainda hoje), mas logo os lutadores começaram a entrar na comissão e mudar seu caráter. Ele fala:
“Apesar de a fábrica ter feito a proposta de criar a comissão de fábrica, a maioria dos trabalhadores que entrou ali já era trabalhador de luta, já tinha feito greve”.
Ou seja, eram de luta porque já tinham passado pelo estágio da greve, que antecede logicamente a comissão de fábrica. E, explicando o que faziam – enquanto contraponto à vontade da administração da fábrica –, diz Gazito:
“Tinha a operação tartaruga, oitenta e pouco, oitenta e quatro [1984]. A gente comandava a produção. A gente dizia: então hoje nós vamos ter que tirar tantos carros, e a gente tirava tantos carros. E a peãozada assumia mesmo, não tinha jeito. Era bonito demais! Ou vamos diminuir para 50%. Passava lá, fazia um carro, largava um sem fazer… A fábrica via que não tinha jeito, tinha que fazer por conta dela. Porque se você faz um carro e deixa um sem fazer, aquele carro lá passa. Que vai acontecer? O carro fica danificado, ele passa na pintura, passa na estufa, depois traz. Então no fim a própria fábrica já estava fazendo o trabalho de tirar. Ela já colocava 50%, senão estragava, o prejuízo era maior, não teve jeito pra ela. E a gente que decidia: hoje é 50%, amanhã é 30%, depois é 40%. (…) A gente discutia, saía da fábrica, ia pro sindicato, chamava-se comissão de mobilização. (…) Aquele pessoal discutia a proposta do dia seguinte. Todo dia a gente fazia [reunião e planejamento] (…) Você falava ‘faz um carro, larga um, faz um carro, larga um’. E a peãozada fazia certinho: fazia um, largava um, fazia um, largava dois… No final da tarde ia lá pra ponta da linha ver quantos carros tinha produzido, era legal, bem legal. (…) E a gente fazia relatório todo dia. Todo dia fazia um relatorinho na mão, e depois apresentava para a comissão de fábrica (…) A gente tinha mural. Não era o mural da empresa, onde a empresa põe o que quer, que nem é hoje, era o mural da comissão, pra peãozada mesmo (…)”
No número três da revista Maisvalia há uma entrevista interessante com operários da Cobrasma de Osasco, que tinham uma comissão de fábrica forte no final dos anos 1960. Vale destacar um trecho longo:
“A Cobrasma aceitou a comissão de fábrica da seguinte maneira: tem a acearia, onde derrete o ferro pra virar aço. E quando o ferro cai na caldeira ele explode. Tinha um poço lá que era preciso sempre limpar aquilo se não enchia… Um dia, faltou a pessoa que tinha prática nisso e colocaram uma pessoa sem experiência nenhuma. O coitado ficou atrapalhado lá e acabou caindo e morrendo queimado. Aí, a comissão de fábrica — que era clandestina ainda, chamavam de Rádio Peão —, eles avisaram toda a fábrica. No dia seguinte, na hora da saída do enterro do rapaz, alguém ia puxar o apito da Cobrasma e ia parar cinco minutos. Aí, chegou lá, o cara puxou… Aquela barulheira, aí parou tudo. O pessoal, o gerente, os engenheiros, ficaram todos apavorados. Teve um homem que disse: ‘O que tá acontecendo? O que é isso? Não sei o quê… É greve? É greve?’ Aí, o cara falou: ‘Não, senhor! Cinco minutos em homenagem ao companheiro que morreu ontem’. Aí, ele tirou o chapéu e pôs em cima da mesa. A direção da empresa falou: ‘Esses homens estão organizados!’ Em 10, 12 horas podíamos conquistar toda a fábrica e parar tudo como se fosse apagar uma lâmpada… Aí, a direção da empresa chamou a comissão, tinham 10 reivindicações, aceitaram todas. Eles reconheceram a comissão de fábrica, mas só oralmente, assim, não era nada escrito, o acordo não foi registrado no Ministério do Trabalho. Eram 18 seções na Cobrasma, em cada seção tinha um titular e um suplente, eram 36 pessoas que faziam a comissão de fábrica. Essa comissão de fábrica se reunia todo mês com a direção da empresa.”
Tudo isso para destacar tanto o caráter de dualidade de poder – contraponto ao poder oficial, burguês – quanto o elemento da semilegalidade frente à própria justiça burguesa (pouco reconhecimento legal). É fundamental que a organização revolucionária não espere ganhar os sindicatos para iniciar, desde já, mesmo que clandestinamente, a preparação das comissões de fábrica nos locais de trabalho.
Trotsky, no Programa, ensina-nos algo muito importante sobre os comitês/comissões de fábrica. Ele diz:
“Desde que o comitê aparece, estabelece-se de fato uma DUALIDADE DE PODER na fábrica. Por sua própria essência, esta dualidade de poder é transitória, porque encerra em si própria dois regimes inconciliáveis: o regime capitalista e o regime proletário. A importância principal dos comitês de fábrica consiste, precisamente, no fato de abrir senão um período diretamente revolucionário, ao menos um período pré-revolucionário entre o regime burguês e o regime proletário.”
Aqui há uma base real (objetiva) para se caracterizar uma situação política num país como pré-revolucionária: a existência de comitês de fábricas em um número razoável de importantes empresas produtivas. Se não há isso – dois mundos estabelecidos, dualidade de poder –, qualquer discussão sobre situação pré-revolucionário é mero palavrório.
Na relação com O Capital de Marx, trata-se do momento equivalente às seções III a VI do Livro 1, nas quais Marx conduziu o leitor por dentro da esfera da produção. Marx começou ali a reproduzir documentos de comitês de greve e de comitês de fábrica de sua época (como aquele famoso documento do comitê de greve da construção civil, no capítulo VIII). Os operários aqui começam a entender um pouco melhor a exploração capitalista, o segredo da mais-valia (absoluta e relativa, analisadas por Marx), mas ainda de forma isolada em cada empresa.
No Programa de Transição, é fundamental, para a compreensão da mais-valia, a reivindicação de abertura dos livros de contabilidade das empresas. Trata-se de uma reivindicação auxiliar (ou seja, não necessariamente socialista) à reivindicação de escalas móveis. Na luta pelas escalas (desde a paralisação sindical, que vira greve, que vira ocupação, que vira comitê), os operários sempre se depararão com as palavras dos burgueses, dizendo ser impossível atender a tais reivindicações. A isso, os operários têm de exigir que a empresa prove ser impossível; portanto, que publicize seus livros de contabilidade. Assim, com a pressão operária, algumas informações novas da empresa tenderão a ser disponibilizadas, e os operários entenderão melhor o seu funcionamento. É o início da compreensão da anarquia da economia capitalista.
Os comitês de fábrica, entretanto, ao negarem a ampla localização dos sindicatos (que abarcam várias empresas, mas poucos operários de cada), pecam pelo elemento inverso: falta de articulação mais ampla. Eles dão conta de muitas questões de produção internas às fábricas, mas não dão conta de articulação entre diversas fábricas. É necessário iniciar, então, o movimento de saída das fábricas (mas sem ignorar os ganhos da entrada realizada anteriormente nas fábricas). Somente assim, na relação entre os diversos comitês de fábrica (cada qual com informações de suas empresas), é possível realizar uma verdadeira contabilidade do conjunto da economia capitalista; somente assim é possível compreender o que é produzido, em qual quantidade e em quanto tempo, em várias empresas conjuntamente.
Começa-se a compreender mais a fundo, assim, a irracionalidade de todo o sistema e a origem do próprio capital (enquanto meramente mais-valia capitalizada). Assim, na relação entre os diferentes comitês de fábrica e sua solidariedade, surge o que Trotsky chama de Escola da Economia Planificada (controle operário sobre a indústria). Vejamos:
“A elaboração de um plano econômico, mesmo elementar – do ponto de vista do interesse dos trabalhadores e não dos exploradores –, é inconcebível sem controle operário, sem que os operários voltem seus olhos para todas as energias aparentes e veladas da economia capitalista. Os comitês de diversas empresas devem eleger, em oportunas conferências, comitês de trustes, de ramos de indústrias, de regiões econômicas, enfim, de toda a indústria nacional em seu conjunto. Assim, o controle operário tornar-se-á a ESCOLA DA ECONOMIA PLANIFICADA. Pelas experiências do controle, o proletariado preparar-se-á para dirigir diretamente a indústria socializada quando tiver chegado a hora.”
Na relação com O Capital de Marx, tal situação no programa corresponde à seção VII do Livro I, iniciando-se pelo capítulo XXI, quando Marx nos reconduz da esfera da produção à esfera da circulação de mercadorias, e analisa as novas contradições que surgem desse retorno. A partir dali, mostra Marx – quando analisa o sistema capitalista em sua reprodução (primeiro simples, depois ampliada), quando analisa a capitalização da mais-valia –, as leis de propriedade burguesas se tornam, na realidade, leis de apropriação (leis de roubo), pois fica claro que todo o capital que o burguês tem em sua mão é, na realidade, apenas mais-valia capitalizada.
O capitalista não tem agora nada de “legitimamente” seu (senão apenas um antigo capital inicial, talvez de sua família… capital que também será deslegitimado no capítulo XXIV, e também se mostrará como roubo, expropriação originária). Ao ficar claro ao conjunto da classe trabalhadora que o burguês não tem nada de legitimamente seu no presente (senão o “direito” de roubar a classe trabalhadora), serão criadas as condições para as primeiras expropriações.
Não à toa, tanto em O Capital (capítulo XXIV) quanto no Programa de Transição, abre-se agora o momento das primeiras expropriações.
Do nosso ponto de vista, as expropriações não são propriamente reivindicações. Elas são formas de luta para se atender as reivindicações principais, inicialmente apresentadas: a mera manutenção das condições de vida (escalas móveis). Ou, como diria Trotsky no Programa:
“Se o capitalismo é incapaz de satisfazer às reivindicações que surgem infalivelmente dos males que ele mesmo engendrou, que morra!”
Assim se apresenta algo fundamental: a classe trabalhadora não expropriará a classe capitalista porque gosta ou foi convencida das ideias socialistas. Não se trata de apresentar positivamente uma ideia ou uma utopia (o que é idealismo); não se trata de fazer doutrinação, e sim de desenvolver as contradições do capitalismo a partir das reivindicações mais básicas e sentidas pelas massas, reivindicações que o capitalismo não pode atender. Isso tudo, é claro, sob direção do partido, que tem consciência do caminho como um todo (porque absorveu as experiências históricas da classe operária). A esmagadora maioria da classe trabalhadora chegará ao socialismo sem ter consciência do que isso significa.
As expropriações são, a princípio, daquelas pequenas empresas que de fato não poderão atender as reivindicações das escalas móveis (as grandes poderão resistir por um pouco mais de tempo). Elas já estarão ocupadas ou já terão seus comitês de fábrica, e começarão a ser socializadas. Ou seja, elas se tornarão de propriedade do conjunto dos trabalhadores daquela fábrica, associados, dirigidos pelo comitê de fábrica. A isso pode-se dar o nome – se se quiser uma forma mais ou menos legal, semilegal – de “cooperativa”.
Marx era contra a defesa das “cooperativas” como panaceia utopista (ou seja, a concepção de que bastaria abrir várias empresas cooperativas e as coordenar, para tirar mais e mais espaço do mercado, e assim chegar ao socialismo). Mas Marx nunca desprezou por completo as cooperativas de produção. Para ele, as cooperativas, além de mostrarem que os trabalhadores não necessitam de patrões, poderiam ter importância dentro de um movimento geral de superação do capitalismo (veja-se seus apontamentos na Mensagem Inaugural da I Internacional, bem como trechos do livro terceiro de O Capital). Dado que não se sabe quanto tempo pode durar uma situação de dualidade de poderes, as cooperativas podem aparecer como a forma inicial mais ou menos legal das expropriações. Não se trata, portanto, de expropriação para o Estado (como nos vagos programas social-democratas da nossa “esquerda”), mas de expropriação para o Comitê de Fábrica, visando a ampliar um movimento da classe trabalhadora contra o capital.
Isso, evidentemente, cria um problema legal, que só pode ser resolvido pela força do movimento. Ao se ampliar um processo assim, chega o momento de se apresentar publicamente – e novamente, para isso, o papel do partido é fundamental – a necessidade de expropriação de grandes grupos capitalistas, ramos inteiros, trustes etc., em nome dos comitês de seus trabalhadores. Deve-se apresentar que, se tais grandes grupos não forem expropriados, nenhuma reorganização das pequenas fábricas e nenhum plano social mais sério poderá ser elaborado (nem mesmo, a rigor, um plano de obras públicas de longo prazo).
Trotsky, neste momento do Programa, atenta para um elemento importante:
“A diferença entre essas reivindicações e a vaga palavra de ordem reformista de ‘nacionalização’ consiste em que:
1 – rejeitamos a indenização;
2 – prevenimos as massas contra os charlatães da Frente Popular que, propondo a nacionalização em palavras, continuam de fato agentes do capital;
3 – conclamamos as massas a contar apenas com sua própria força revolucionária;
4 – ligamos o problema da expropriação à questão do poder dos operários e camponeses.”
Não há aqui indenizações – como fez, por exemplo, Hugo Chávez na Venezuela, com empresas espanholas de petróleo (o que não se tratou de expropriação, mas de compra pelo Estado burguês). Não se deve cair no palavrório de figuras charlatãs e populistas “de esquerda”, “caudilhos” que propõem “nacionalização” mas seguem de fato agentes do capital (seja de governos de Frentes Populares, seja de governos bonapartistas). Deve-se contar apenas com as próprias forças (somente dos sindicatos e comitês, e não com qualquer força do Estado ou vinculada a ele). Deve-se ligar tudo sempre ao problema do poder. Note-se que Trotsky opõe a socialização (expropriação) dos comitês à vaga noção de “nacionalização”. Não se trata, portanto, de realizar a nacionalização de nada, mas a expropriação da burguesia, a socialização de meios de produção para os que neles trabalham diretamente.
A expropriação do setor produtivo é irrealizável se não for acompanhada da expropriação no setor responsável pela gestão do capital social à disposição da classe burguesa. Isso é fundamental tanto para estrangular a grande burguesia industrial e comercial (não lhes fornecer crédito), quanto para potencializar as expropriações de setores produtivos (dar crédito para o funcionamento das empresas expropriadas, para que mantenham sua produção), como também para a realização de obras públicas (financiando o próprio Estado burguês somente nos planos que interessam à classe trabalhadora).
Considerando-se que ainda se está sob a dualidade de poder – ou seja, que subsistem lado a lado os mundos da burguesia e do proletariado, o Estado burguês e o poder proletário nascido nos comitês –, o crédito tem um papel fundamental como arma, para subtrair a liquidez de capital à burguesia e fornecer a mesma liquidez ao movimento operário (evidentemente, depois disso, num sistema comunista avançado e mundial, o crédito desaparecerá, bem como o dinheiro, a moeda etc., dado que desaparecerão as trocas internas à comunidade, em nome da noção de planejamento econômico).
A expropriação dos bancos caberá aos Comitês de Empresa dos trabalhadores bancários (note-se, não de “fábrica”, pois tais empresas não são fábricas, não são produtivas). Tais comitês também devem entrar na luta pelas escalas móveis.
A expropriação dos bancos também permitirá o fornecimento de crédito barato à massa da sociedade no período de transição à tomada do poder, o que fará com que o movimento reivindicatório ganhe todos os setores populares empobrecidos e os setores médios em via de empobrecimento.
É importante notar, todavia, que há até aqui, no programa, um encadeamento da importância dos setores proletários. Esse encadeamento vai dos setores produtivos fundamentais aos setores proletários não produtivos. Esse movimento não pode ser tomado como algo arbitrário, mas sim estratégico (para inserção da organização revolucionária). Há pesos de importância no proletariado.
A formação do exército revolucionário da classe trabalhadora, do ponto de vista estratégico/transitório, nada tem a ver com teorias de guerrilha ou delírios de ofensividade. O exército proletário não se cria para “expropriar a burguesia” (derrotar o exército burguês), mas, sim, novamente, como uma mera forma (agora militar) de luta para atender as reivindicações mais básicas apresentadas ao início: as escalas móveis.
A célula mais básica desse exército a ser criado são os piquetes de greve. Por ocasião de cada greve, como é natural, deve-se formar piquetes, para impedir agentes, infiltrados, provocadores e fura-greves de sabotar o movimento grevista. Também para manter as greves, deve-se criar o que Trotsky chama de “destacamentos de autodefesa” (por exemplo, para segurança de todos os grevistas numa manifestação de rua, para a segurança das reuniões grevistas, de sua imprensa).
Destaque-se o cuidado que Trotsky apresenta quando trata do caráter defensivo (“autodefesa”). Trata-se não de ser ofensivo em relação à ordem burguesa, mas de ser aparentemente apenas defensivo em relação às necessidades da classe trabalhadora (também aqui, o processo é imanente, similar ao que se passa com as escalas). Em sua História da Revolução Russa, Trotsky insiste diversas vezes nessa importância fundamental do elemento defensivo, e mostra como os bolcheviques fizeram um esforço enorme para realizar a própria tomada do poder enquanto algo aparentemente defensivo em 1917.
Da união de diversos destacamentos de autodefesa de empresas de uma mesma região (dirigidos ou por sindicatos ou por comitês), forma-se a milícia operária, como garantia superior de defesa dos sindicatos, suas sedes, sua imprensa, bem como dos comitês. Como já vimos, com os Comitês de Fábrica já estamos numa situação pré-revolucionária. Portanto, haverá necessariamente um amplo ataque dos órgãos repressores da burguesia (legais, semilegais e ilegais). Os bandos e destacamentos de direita passarão a agir sistematicamente de forma violenta e impune. Por isso, é necessário ampliar e reforçar as formas de autodefesa. A milícia operária será a base dos futuros batalhões do exército do proletariado (ver no próximo item). Trata-se de realizar o armamento geral do proletariado, mas num processo (e não como mera reivindicação estéril). Também o exército do proletariado tem um movimento dialético de exposição (criação).
Todas essas forças de defesa – piquetes, destacamentos, milícias, exército –, reforçamos, não são reivindicações, mas formas de luta para conquistar a reivindicação principal (a mera manutenção das condições de vida sob a sociedade existente). Note-se quão diferente isso é da concepção romantizada, pequeno-burguesa e “ofensiva” de guerrilha/foquismo! Os métodos de luta da classe trabalhadora não têm nada a ver com os métodos da pequena-burguesia.
Em tal situação pré-revolucionária, é natural que o conjunto do proletariado, bem como de todos os setores explorados, entre no movimento geral contra o capital. Não há outra forma organizativa que os possa abarcar senão a forma dos Conselhos Populares (Assembleias Populares), os Sovietes.
Os sindicatos e comitês de empresas, por estarem vinculados aos elementos da estrutura da economia (esferas da produção e circulação de mercadorias), não conseguem organizar todos os setores populares, que escapam da estrutura produtiva. Nascem então os Sovietes (Conselhos), a culminação do poder dual. Trata-se da instalação do poder dual em âmbito superestrutural.
Quanto à questão militar, caberá aos Conselhos propriamente juntar as diversas milícias proletárias e iniciar a construção dos batalhões do exército proletário. Agora, com a dualidade de poder em âmbito superestrutural (nacional ou em grande região econômica), entramos finalmente numa situação revolucionária (e não mais apenas pré-revolucionária, como a situação em que existia o poder dual apenas vinculado aos Comitês de Fábrica).
Como resume Trotsky:
“Os conselhos só podem nascer onde o movimento das massas entra em um estágio abertamente revolucionário. Como pivô em torno do qual se unem milhões de trabalhadores na luta contra os exploradores, os conselhos, desde o momento de sua aparição, tornam-se os rivais e os adversários das autoridades locais e, em seguida, do próprio governo central. Se o comitê de fábrica cria elementos de dualidade de poder na fábrica, os conselhos abrem um período de dualidade de poder no país.”
Em situações assim, como é natural, setores políticos pequeno-burgueses e charlatães (em geral autodenominados “socialistas”) entrarão no governo de Estado da burguesia (por via eleitoral ou qualquer outra), visando justamente a realizar a conciliação entre o poder oficial (Estado burguês) e o poder paralelo proletário (Conselhos). Com seu falatório e bravatas radicais, sua função é a de enrolar o poder proletário para dar tempo ao poder burguês derrotá-lo. Tais são os chamados governos de Frente Popular (que só podem existir onde já há dualidade de poder nacional, generalizada). As Frentes Populares se expressam com certa lógica de necessidade histórica universal (embora não absoluta).
Nos casos em que tais governos sejam criados, deve-se exigir dos charlatães – dado que as massas ainda têm, em geral, ilusões em tais figuras e governos “populares” e “radicais” – a ruptura completa com os setores burgueses que compõem o governo, bem como a formação de um governo somente de partidos operários. Trata-se de uma reivindicação auxiliar – “governo operário” –, apresentada no Programa de Transição, para desmascarar os setores conciliadores, e serve como ponte para a tomada do poder (constituição de um verdadeiro governo operário, de tipo soviético).
Trotsky diz a esse respeito:
“De todos os partidos e organizações que se apoiam nos operários e nos camponeses falando em seu nome, nós exigimos que rompam politicamente com a burguesia e entrem no caminho da luta pelo governo operário e camponês. Nesse caminho prometemos-lhe um apoio completo contra a reação capitalista.”
Trata-se, aqui também, de absorção da experiência dos bolcheviques frente ao governo provisório de Kerensky, bem como da experiência (negativa, pelo erro) dos comunistas alemães frente ao governo provisório social-democrata em 1918/19 (na Alemanha, os comunistas foram esquerdistas, não dialogaram com a ilusão que as massas mantinham frente ao governo provisório social-democrata, e assim não o desmascararam, entregando-o facilmente às mãos da reação).
Assim, as massas verão que os únicos que podem realizar o governo operário são os sovietes, e não o governo provisório de conciliação, vinculado à estrutura do Estado burguês. Assim será preparada, de forma imanente, a derrubada deste governo pelos sovietes, na hora certa, derrubada que aparecerá como necessidade real às próprias massas.
Mas essa derrubada não será apenas a realização de um “governo operário”, e sim propriamente o início da ditadura do proletariado, ou seja, uma forma de manutenção do poder de classe absolutamente diferente e inversa em relação à forma burguesa. A ditadura do proletariado é outro elemento que não se deve exigir, mas realizar. Ela é, a rigor, mais democrática que a democracia burguesa (uma vez que dela participam ativamente as amplas massas); ela é a realização, via sovietes (e não Estado burguês), do próprio governo operário.
Assim – recapitulando –, com o surgimento dos Conselhos, a situação se torna insustentável, e a derrubada do poder de Estado da burguesia surge quase que naturalmente, como necessidade objetiva da contradição exposta a toda a sociedade. Como diz Trotsky:
“A dualidade de poder [nacional, com os sovietes] é, por sua vez, o ponto culminante do período de transição. Dois regimes, o regime burguês e o regime proletário, opõem-se irreconciliavelmente um ao outro. O choque entre eles é inevitável. Do resultado desse choque depende a sorte da sociedade. No caso de derrota da revolução, a ditadura fascista da burguesia. No caso de vitória, o poder dos conselhos, isto é, a ditadura do proletariado e a reconstrução socialista da sociedade.”
Aqui realiza-se, portanto, ao final do Programa, o mesmo que se realiza ao final do livro primeiro de O Capital de Marx (falamos apenas do livro primeiro, pois é o único que teve sua exposição terminada cuidadosamente pelo autor). Esta parte corresponde ao item 7 do capítulo XXIV de O Capital, o item da expropriação dos expropriadores ou negação da negação. Esse movimento geral análogo entre o Programa e O Capital não é mera coincidência. Ele é assim porque somente assim, sob essas formas objetivas (lastreadas nas esferas da produção, circulação, e na superestrutura), pode-se dar um movimento dialético geral, que expõe um conteúdo cada vez mais contraditório por meio de formas organizativas que se sucedem.
Note-se que a apresentação geral aqui realizada de uma estratégia socialista prescinde totalmente da esmagadora maioria das reivindicações da chamada “esquerda” socialista, em geral limitada à democracia burguesa (desde “Assembleias Constituintes”, até os mais diversos direitos democráticos).
Note-se também que desse desenvolvimento geral comprova-se que uma teoria de partido é inseparável de uma teoria programática (estratégica), ou, o que dá no mesmo, uma teoria de partido tem de conter em si também a teoria de articulação das diversas formas organizativas das massas proletárias (organismos de frente única), e não pode ser nunca uma teoria estreita, de funcionamento do partido fechado, isoladamente considerado.
A consciência da ilegalidade histórica do sistema capitalista é exposta pelo partido nas diversas formas organizativas que se apresentam, até se tornar posta. Ou seja, o elemento ilegal (partido, pressuposto do processo) expõe as contradições capitalistas (no quesito salários e empregos, por meio das escalas móveis), abrindo cada vez mais tais contradições e fazendo, assim, as massas caminharem da legalidade (sindicatos) até a semilegalidade (comitês, primeiro, depois, sovietes), terminando ao final com a instauração da ditadura do proletariado (ilegalidade, onde a consciência das massas coincide, ao final, com a consciência histórica resguardada pelo partido desde o início). Assim, o pressuposto ilegal (o partido) é posto historicamente (e imanentemente) por meio da exposição das contradições capitalistas.
O quadro abaixo, embora modificado, baseia-se em quadro similar, presente no artigo de DILLENBURG citado na bibliografia.
Formas políticas organizativas | Reivindica-ções transitórias | Reivindicações auxiliares | Formas (“econômicas”) de luta | Formas (militares) de luta |
1. Partido (pressuposto) – ilegal 2. Sindicatos (esfera da circulação) – legal 3. Comitês de fábrica (esfera da produção) – semilegal 4. Comitês de empresas (retorno à circulação) –semilegal 5. Conselhos – semilegal 6. Governo operário – ilegal (retorno superior do pressuposto inicial), enquanto ditadura do proletariado | 1. Escalas móveis | 1. Frentes Públicas de Trabalho 2. Abertura dos livros de contabilidade | 1. Greve 2. Ocupação 3. Expropriações | 1. Piquetes 2. Destacamentos de autodefesa 3. Milícia Operária 4. Batalhões 5. Exército Vermelho |
BENOIT, H., “Sobre o desenvolvimento (dialético) do Programa”;
_________, “Sobre a crítica (dialética) de O Capital”;
_________, “Teoria (dialética) de partido ou a negação da negação leninista”;
DILLENBURG, F., “Sobre uma estratégia geral da revolução proletária”;
GAIDO, D., “Los orígenes del Programa de Transición en la Internacional Comunista”;
MARX, K., O Capital, Livro I;
PADIAL, R., “Ascensão e queda do Programa de Transição”;
TROTSKY, L., O Programa de Transição;
_________, “Os sindicatos na época da decadência imperialista”.