Transição Socialista

1968: A GREVE GERAL E A REVOLTA ESTUDANTIL NA FRANÇA (CONTINUAÇÃO)

Publicamos as partes 2, 3 e 4 do texto de Peter Schwarz, que tratam mais especificamente do problema da crise de direção revolucionário, tratando tanto do papel de bloqueio à luta revolucionária que cumpriram o Partido Comunista Francês e a sua central sindical, a Confederação Geral do Trabalho, como da desorientação das direções alegadamente “trotskistas” diante da oportunidade revolucionária que se abria – e que foi perdida.


Parte 2: A traição do PCF e CGT


A França está paralisada desde 20 de maio de 1968. Dois terços de todos os assalariados participam da greve geral; estudantes ocupam as universidades. No momento, o destino de de Gaulle e seu governo está nas mãos do Partido Comunista Francês (Parti Communiste Français – PCF) e da CGT (Confederation Generale de Travail – Confederação Geral do Trabalho) controlada por ele. São eles que garantem a sobrevivência política do presidente Charles de Gaulle e salvam a Quinta República. Em 1968, o PCF continua sendo uma força política considerável, com cerca de 350.000 membros e tendo 22,5% dos votos em 1967. Embora o número de membros da CGT tenha caído desde 1948, de 4 milhões para 2,3 milhões, esta ainda era a principal central sindical dos setores mais importantes da economia. O seu Secretário – Geral, Georges Séguy, é membro do Bureau Político do PCF.

Como já vimos, o PCF e a CGT reagiram aos protestos estudantis de forma explicitamente hostil. O famigerado artigo de 3 de maio, no qual Georges Marchais ridiculariza os estudantes chamando-os de baderneiros e agentes gaullistas não seria a exceção, mas sim a regra. O jornal do PCF l’Humanité não se cansa de suas críticas contra a “esquerda radical” (gauchistes) – entre os quais se incluem todos aqueles que se opõem a linha direitista do PCF. A CGT se recusa a participar de manifestações conjuntas entre trabalhadores e estudantes, e instrui seus membros a manterem os estudantes – que estão tentando avançar o contato com os trabalhadores – longe das fábricas.

As ocupações de fábricas e as greves gerais se desenvolveriam à revelia dos interesses da CGT e por fora dela. A ocupação da Sud-Aviation, que se tornou um modelo para todas as outras ocupações, surge através de uma iniciativa da central sindical Force Ouvrière, que tem influência entre os grupos de salários mais baixos e é liderada em Nantes por um trotskysta, o membro da OCI Yves Rocton. Apesar da CGT não impedir as ocupações, ela tenta mantê-las sob controle e limitá-las meramente às demandas econômicas. Opõe-se ao estabelecimento de um comitê central de greve e rejeita a colaboração com forças que sejam externas à fábrica. Recusa-se a sancionar a detenção dos chefes.

No dia 16 de maio, a liderança da disputada central sindical CFDT (Confédération Française Démocratique du Travail – Confederação Francesa Democrática do Trabalho) publica uma declaração, na qual tenta exercer sua influência sobre a onda de ocupações. Contrastando com a CGT, ela é favorável à revolta estudantil, a qual diz ser diretamente contra “as incrustadas e asfixiantes estruturas de classe de uma sociedade na qual eles não podem exercer seus anseios.” A CFDT levanta a palavra de ordem de “auto-gestão” das fábricas: “a monarquia administrativa e industrial deve ser substituída por estruturas administrativas baseadas na auto-gestão.”

O líder da CGT, Séguy, reage com raiva e ataca publicamente a CFDT. Ele rejeita as tentativas de dar ao crescente movimento qualquer orientação comum, única, não importando quão limitada ela fosse. A demanda da CFDT, que neste momento está sob influência do partido de esquerda-reformista de Michael Rocard, o PSU (Parti Socialiste Unifié – Partido Socialista Unificado) dirige-se para um beco sem saída. O PSU não questiona nem o governo capitalista nem a dominação do mercado capitalista.

No dia 25 de maio, a CGT finalmente apressa-se em apoiar diretamente o governo acuado. Às 15 horas, representantes do sindicato, associações patronais e o governo reúnem-se no Ministério do Trabalho, na Rue de Grenelle. Seu objetivo é assegurar a ordem nas fábricas o mais rápido possível. Embora todos os sindicatos estejam representados, as negociações são conduzidas quase que exclusivamente por dois homens: o primeiro ministro Georges Pompidou e o cabeça da CGT, Georges Séguy.

Séguy quer um aumento salarial linear, sem reduzir a diferença salarial entre as diversas categorias, o que trabalhadores de diversas fábricas exigiam. Além disso, a posição dos sindicatos tem de ser reforçada. Sobre esta questão, ele tem o apoio de Pompidou contra as associações patronais. “O governo está convencido de que a integração da classe operária através dos sindicatos, que têm o treinamento necessário e a influência apropriada, contribuem para o bom funcionamento da fábrica” é a formulação dada na ata de reunião.

Ao lado de Georges Pompidou, ao lado do governo, na mesa de negociação, está outro futuro presidente, Jacques Chirac, assim como um futuro primeiro ministro, Edouard Balladur. Assim como o atual presidente da França, Nicolas Sarkozy, eles todos apóiam o acordo no momento e utilizam os sindicatos para “integrar” a classe trabalhadora. O termo “Grenelle” tem se tornado sinônimo de negociações de alto nível entre governo, sindicatos e associações patronais.

Somente após 2 dias os negociadores entram num acordo. De manhãzinha, na segunda-feira de 27 de maio, eles assinam o “Pacto de Grenelle”. Nele estão inclusos um aumento salarial de 7%, um aumento no salário mínimo de 2,22 para 3 francos a hora de trabalho e a permissão legal para o estabelecimento dos sindicatos nas fábricas. A CGT abandona sua exigência inicial por escala móvel de salários, pagamento integral dos dias parados e a retirada das regras do governo em relação à seguridade social. Depois de saber que o PSU de Rocard, a CFDT e a UNEF (Union Nationale dês Étudiants de France – União Nacional dos Estudantes da França) estão planejando uma manifestação sem nenhum acordo prévio com o PCF e a CGT, Séguy promove um acordo imediato, fechado através de uma conversa cara a cara com Jacques Chirac.

Às 7h30min da manhã, Séguy e Pompidou aparecem diante da imprensa e anunciam o Pacto de Grenelle. Séguy explica: “O trabalho pode começar novamente sem demora”. Ele vai pessoalmente para Billancourt, com o propósito de tentar vender o acordo para os trabalhadores na fábrica da Renault. Mas os trabalhadores julgam o pacto como uma provocação e não estão preparados para serem comprados por poucos francos. Séguy é vaiado e encara um coro enfurecido. A mensagem se espalha rapidamente pelo país e ninguém está disposto a trair a luta. A manchete do Le Monde do dia seguinte diz: “CGT, incapaz de induzir grevistas a retomarem o trabalho.”

A questão do poder está posta


Neste momento a crise política chega a seu ponto mais alto. Todo país está em alvoroço. O governo foi perdendo cada vez mais sua autoridade, e a CGT o seu controle sobre os trabalhadores. Ninguém tem a menor dúvida de que a questão de quem exerce o poder, de fato, no país, está sendo, agora, abertamente posta.

Os social-democratas, que por muito tempo mantiveram-se cautelosamente na retaguarda, agora erguem suas vozes. Desde quando se tornou questionável se de Gaulle poderia manter-se no poder, preparativos para um governo alternativo burguês foram feitos. François Mitterrand organiza uma entrevista coletiva no dia 28 de maio, que é transmitida detalhadamente pela televisão. Ele defende um governo interino, assim como uma nova eleição presidencial, na qual ele será um candidato.

Mitterrand encabeça a Federação Democrática e Socialista de Esquerda (FGDS), uma aliança de partidos liberais e social-democratas que tinha desacreditado a si próprios na 4ª República e não tinha qualquer base nas massas. Em 1965, Mitterrand tinha enfrentado de Gaulle nas eleições presidenciais, apoiado também pelo PCF.

O PSU, a CFDT e a união estudantil UNEF depositam suas esperanças em Pierre Mendès-France. Em 1936, Mendès-France, então membro dos Socialistas Radicais, um partido puramente burguês, aderiu ao governo de frente popular de León Blum. Durante a guerra, apoiou o General de Gaulle. Na Quarta República, ele organizou a retirada das tropas francesas do Vietnã como chefe do governo em 1954, ganhando a aversão da direita. Em 1968 ele é próximo do PSU.

A orientação à esquerda pronunciada por Mendès-France faz com que o PCF o considere como um arquiinimigo. O alarme soa na sede do PCF no dia 27 de maio, quando ele é visto numa grande reunião entre o PSU, a CFDT e a UNEF, no estádio Paris Charléty. O medo do PCF era que Miterrand e Mendès-France pudessem formar um novo governo, sem que obtivesse qualquer influência nele.

No dia 29 de maio, o PCF e a CGT organizam sua própria manifestação em Paris; várias centenas de milhares de pessoas marcham na capital, levantando a seguinte palavra de ordem: “Por um governo popular.” O PCF nem sequer sonhava com a tomada revolucionária do poder. Sua exigência de um “governo popular” é uma tentativa para apaziguar os ânimos revolucionários das fábricas, sem levantar questões sobre as instituições da Quinta República. A CGT enfatiza sua rejeição a uma ação revolucionária insistindo na necessidade de “mudanças democráticas”.

O chefe de polícia de Paris mais tarde relata que ele não tinha preocupações quanto à manifestação da CGT e do PCF; ele esperava uma clássica e disciplinada manifestação sindical, que foi o que aconteceu. Mas o governo não tem certeza se os organizadores têm a situação sob controle. Tropas paramilitares estão em alerta e tanques estão estacionados no subúrbio de Paris como precaução.

No dia 30 de maio, o Comitê Central do PCF reúne-se para discutir a situação. Uma gravação dessa reunião confirma que o partido rejeita qualquer ambição de assumir o poder sozinho e está estritamente preocupado com a preservação da ordem existente. Seis meses depois, uma afirmação do Comitê Central justifica essa atitude com as palavras: “A correlação de forças não permitiu que a classe trabalhadora e seus aliados tomassem o poder político em maio passado.”

Na reunião do dia 30 de maio, o secretário-geral Émile Waldeck-Rochet declara sua disponibilidade para participar de um governo provisório sob François Mitterrand, se ele conceder ao PCF influência suficiente. Este governo deverá cumprir três tarefas, diz ele: recuperar o funcionamento do Estado novamente, responder às legítimas exigências dos grevistas e realizar com êxito as eleições presidenciais.

No entanto, a garantia de eleições parlamentares imediatas é a opção preferida do PCF. Um orador do partido resume a atitude geral: “nós só podemos nos beneficiar a partir de uma eleição geral.”

A situação nesse dia esteve por um fio. O General de Gaulle desapareceu na noite anterior sem deixar rastros, fugindo para Baden-Baden, onde manteve conversas com o General Massu, comandante das tropas francesas na Alemanha. Massu é conhecido por seu papel na guerra da Argélia. Questiona-se até hoje se de Gaulle estava planejando sua fuga ou apenas estava procurando apoio. Em sua biografia Massu afirma que aconselhou de Gaulle a retornar a Paris e abordar publicamente o povo francês.

Na tarde do dia 30 de maio, de Gaulle faz um pronunciamento no rádio. A república está em perigo e precisa ser defendida, disse ele. Ele anuncia a dissolução do parlamento e chama novas eleições para os dias 23 e 30 de junho. No mesmo instante, várias centenas de adeptos do general estão manifestando-se no Champs Elysées sob as cores nacionais francesas.

O PCF apóia a decisão de de Gaulle na mesma noite e a apresenta como o resultado do sucesso de sua própria política. Proferem seu apoio à estrutura legal da Quinta República e buscam aproximar-se dos gaullistas pela proclamação da união “entre bandeira vermelha e a bandeira tricolor da nação.” No dia 31 de maio, o líder da CGT, Georges Séguy anuncia seu acordo com as eleições. “A CGT não dificultará a condução das eleições”, diz ele, o que, levando-se em consideração a paralisia que toma conta do país, significa abandonar a greve geral. “É do interesse dos trabalhadores manifestarem sua vontade por mudanças.”

A CGT agora usa toda sua energia para acabar com as greves e as ocupações muito antes da data das eleições, algo que só é capaz de fazer com dificuldade. Mas, gradualmente, o front da greve desagrega-se. Trabalhadores voltam ao trabalho após a conclusão dos acordos nas fábricas, a maior parte dos setores militantes está isolada, e a polícia começa a evacuar as universidades. No dia 16 de Junho, trabalhadores da Renault-Billancourt retomam o trabalho, uma semana antes das eleições – o mesmo dia em que a Sorbonne é evacuada.

No entanto, ainda leva semanas até que as últimas greves e ocupações acabem, e o país não voltou, de fato, à calma nos meses e anos seguintes. Mas a classe trabalhadora perdeu uma oportunidade de tomar o poder. Michel Dreyfus, autor de uma obra sobre a história da CGT, resume a atitude da mais influente central sindical no momento culminante da greve da seguinte forma: “A CGT evitou intencionalmente o confronto com o Estado em maio de 1968, quando a correlação de forças parecia estar a seu favor.”

O contra-ataque da direita

Nas primeiras semanas de maio, a direita estava completamente paralisada e isolada. Agora, graças à ajuda do PCF e CGT, ela gradualmente recupera sua iniciativa e autoconfiança. Com o início da campanha eleitoral, a luta sai das ruas e das fábricas e caminha para as urnas, beneficiando de Gaulle e seus aliados. Eles agora estão numa posição para trazer as seções mais passivas e mais recuadas da sociedade para dentro do jogo, apelando para os temores da “maioria silenciosa”.

Os primeiros esforços nesse sentido já podem ser vistos em maio. O governo exerce estrita censura sobre os meios de comunicação através do Estado (não existem emissoras privadas neste momento). No dia 19 de maio, a televisão é banida por espalhar informações que podem ser úteis à oposição. No dia 23 de maio, são desligadas as freqüências usadas por emissoras estrangeiras que podiam ser recebidas na França, e cujos jornalistas estão noticiando ao vivo as manifestações.

No dia 22 de maio, o governo retira de Daniel Cohn-Bendit sua autorização de residência. O líder estudantil, que tem um passaporte alemão, vem de uma família judia que fugiu para a França para escapar dos nazistas. O fim do regime nazista deu-se somente há 23 anos, e o simbolismo desta medida pode ser visto por todos. Há uma insatisfação massiva e os protestos estudantis tornam-se mais radicais. Novamente há violentos combates de rua. Uma vez que a CGT continua a isolar os estudantes, e rejeitar qualquer ação conjunta, naturalmente os estudantes agirão sem a proteção dos trabalhadores – o que só serve para agravar a situação.

No dia 24 de maio violentos combates deixam duas vítimas. Em Lyon, um policial morre, em Paris um jovem manifestante é morto. O choque é grande e a mídia começa uma campanha ensurdecedora contra os “perpetuadores da violência estudantil.”

Alguns gaullistas criam um Comitê pela Defesa da República (CDR), que colabora com elementos da extrema direita do meio argelino-francês. A propósito, estes últimos consideravam de Gaulle um traidor, uma vez que ele garantiu a independência da Argélia, mas o perigo da revolução serviu para unir as diferentes frações da direita. No dia 30 de maio gritos de “Algérie française” (Argélia é francesa) combinam-se com os símbolos do gaullismo no Champs Elysées. A primeira grande manifestação de apoio a de Gaulle tinha sido preparada em conjunto. No dia 17 de junho, de Gaulle retribui com o perdão do General Raoul Salan assim como de 10 outros membros da organização terrorista OAS, que em 1961 tinham organizado um golpe contra ele na Argélia.

Com o início da campanha eleitoral, os órgãos de repressão estatal começam a agir com mais autoconfiança. No dia 31 de maio, o Ministro do Interior Christian Fouchet é substituído por Raymond Marcellin, que é saudado por de Gaulle com as seguintes palavras: “Finalmente, um verdadeiro Fouché” – uma referência a Joseph Fouché, que, após o declínio da Revolução Francesa de 1789, tornou-se ministro da polícia sob o Diretório e sob Napoleão, criando um amplo e temido aparato de opressão.

Marcellin age com extrema dureza. No dia em que ele é nomeado, piquetes são retirados das ruas, a partir dos depósitos de combustível, a fim de garantir o abastecimento e por o tráfego em movimento novamente. No dia 12 de junho, ele proíbe todas as manifestações de rua durante a campanha eleitoral. No mesmo dia, ele emite um decreto dissolvendo todas as organizações revolucionárias e expulsando 200 “estrangeiros suspeitos” do país. A proibição atinge a trotskista OCI, sua juventude e outras organizações estudantis como a JCR (Jeunesses Communistes Révolutionnaires – Juventude Comunista Revolucionária) de Alain Krivine, o anarquista “Movimento 22 de Março” de Daniel Cohn-Bendit, assim como organizações maoístas. O Renseignements Généraux (serviços secretos internos) é ordenado a observar e coletar informações sobre todos os membros de todas as organizações.

Marcellin permanece no cargo por seis anos e nesse tempo é capaz de desenvolver a polícia, o serviço secreto e a CRS (polícia especializada em conter manifestações) nos moldes de um aparato de guerra civil fortemente preparado. Ele dobra os gastos com a força policial, a equipa com moderna tecnologia e armas, assim como, recruta 20.000 novos policiais.

Os gaullistas conduzem uma campanha eleitoral baseada no medo. Eles salientam o perigo de uma guerra civil, advertem sobre uma tomada totalitária e comunista do poder e professam a unidade da república e da nação. Partidos de oposição e sindicatos unem-se a esse coro. A agitação contínua do PCF contra a “esquerda radical” é trigo para os moinhos da propaganda da direita. Na televisão, na véspera da eleição, François Mitterrand protesta: “Desde o primeiro dia, apesar dos ataques, só temos pensado na unidade da pátria e na preservação da paz.”

A eleição é um desastre para a esquerda oficial. Os gaullistas e seus aliados recebem 46% dos votes, o PCF, como o partido de oposição mais forte, recebe apenas 20%, muito menos que no ano anterior. O sistema de eleição proporcional mostra que, quando se trata da atribuição de assentos, o resultado é ainda mais devastador. Quatro quintos dos lugares vão para os partidos burgueses de direita – 59% para os gaullistas, 13 para os liberais e 7 para partidos do centro. A FGDS (Fédération de la Gauche Démocrate et Socialiste — Federação da Esquerda Democrática e Socialista) de Mitterrand tem 12% dos lugares e o PCF somente 7%. Sobretudo as áreas rurais conservadoras votam esmagadoramente pela direita; enquanto muitos dos mais ativos elementos – estudantes secundaristas, universitários, jovens trabalhadores e imigrantes – não são permitidos a votar. A idade oficial para o voto é de 21 anos e as regras eleitorais não foram atualizadas antes da rápida convocação das eleições.

Dois meses depois do início da crise revolucionária, a burguesia restabeleceu mais uma vez seu controle sobre o poder. Ela agora tem tempo para calmamente substituir de Gaulle e desenvolver um novo mecanismo político com o qual possa garantir seu domínio e manter a classe trabalhadora sob controle pelas próximas décadas – o Partido Socialista de Mitterrand. Para isso, deve pagar um preço econômico: o Pacto de Grenelle finalmente entra em vigor e a classe trabalhadora experimenta uma clara melhoria de seu padrão de vida nos próximos anos. Essas melhorias, no entanto, não duraram e agora foram vorazmente tomadas de volta.

Parte 3: Como a JCR de Alain Krivine acobertou as traições do stalinismo

O presidente de Gaulle e sua Quinta República deveram sua sobrevivência política em Maio de 1968 ao stalinista Partido Comunista Francês (PCF) e seu braço sindical — a Confederação Geral do Trabalho (CGT). Entretanto, a influência do PCF diminuiu visivelmente entre 1945 e 1968. A fim de sufocar a greve geral, os stalinistas contaram com o apoio de outras forças políticas — que atingiam uma camada mais radicalizada, mas, ao mesmo tempo, asseguravam seu domínio político sobre o movimento de massas.

A esse respeito, um papel importante foi protagonizado pelo Secretariado Unificado pablista, dirigido por Ernest Mandel, com seus apoiadores franceses: a Juventude Comunista Revolucionária (JCR), dirigida por Alain Krivine, e o Partido Comunista Internacionalista (PCI), encabeçado por Pierre Frank. Eles evitaram que a radicalização da juventude se desenvolvesse até uma alternativa revolucionária séria e, assim, ajudaram os stalinistas a manterem a greve geral sob controle.

No final da Segunda Guerra Mundial, o PCF adquiriu uma autoridade política considerável, devido à vitória do Exército Vermelho Soviético sobre a Alemanha nazista e o papel do próprio Partido Francês no movimento antifascista da Résistance. A burguesia francesa, na forma do regime de Vichy, desacreditou a si própria por meio de colaborações com os nazistas. Havia, também, um poderoso anseio na classe trabalhadora por uma sociedade socialista, que extendeu-se para os membros do PCF. Entretanto, o líder do PCF naquele tempo, Maurice Thorez, usou toda sua autoridade política para restabelecer o domínio burguês. Thorez participou pessoalmente do primeiro governo pós-guerra estabelecido por de Gaulle e foi essencial para assegurar o desarmamento da Résistance.

O apoio ao PCF diminuiu gradualmente, devido ao seu papel na reestabilização da sociedade burguesa do pós-guerra. O partido concedeu seu apoio às guerras coloniais contra o Vietnã e a Argélia e foi ainda mais desacreditado com as revelações dos crimes de Stalin, em 1956, no discurso feito por Nikita Khrushchev. Discurso seguido pela repressão sangrenta das tropas stalinistas às revoltas populares na Hungria e Polônia. Ao mesmo tempo em que o PCF, em 1968, era o maior partido, com membros da classe trabalhadora, ele teve uma larga perda de sua autoridade entre os estudantes e a juventude.

Particularmente, a União dos Estudantes Comunistas (Union des Étudiants Communistes, UEC) estava em crise profunda. De 1963 em diante, várias frações emergiram na UEC — a “Italiana” (apoiadores de Gramsci e do Partido Comunista Italiano), a “Marxista-Leninista” (apoiadores de Mao Tsé-Tung) e a “Trotskista” — que foram, então, expulsas, e estabeleceram suas próprias organizações. Foi esse o período do surgimento da chamada “extrema esquerda”, cujo aparecimento no cenário político marcou “o início da ruptura de uma parte dos militantes ativos da juventude com o PCF”, de acordo com a historiadora Michelle Zancarini-Fournel, em seu livro sobre o movimento de 1968. [1]

A autoridade da CGT também estava sob uma pressão crescente em 1968. Sindicatos rivais — como a Force Ouvrière e a CFDT (Confédération Française Démocratique du Travail), naquele tempo sob a influência de um partido de esquerdista-reformista, o Partido Socialista Unificado (PSU) — fortaleceram seus militantes e desafiaram a CGT. A CFDT, particularmente, recebia o apoio do setor de serviços e do funcionalismo público.

Sob essas circunstâncias, os pablistas, organizados no Secretariado Unificado, protagonizaram um papel muito importante, defendendo a autoridade dos stalinistas e preparando a liquidação da possível greve geral.

As origens do Pablismo

O Secretariado Unificado pablista surgiu no início dos anos 50, como resultado de um ataque político ao programa da Quarta Internacional. O secretário da Internacional, Michel Pablo, rejeitou todas análises do stalinismo que formaram a base para a fundação da Quarta Internacional por Leon Trotsky em 1938.

Analisando a derrota do proletariado alemão em 1933, Trotsky concluiu que a dimensão da degeneração stalinista da Internacional Comunista (III Internacional) tornava insustentável qualquer política baseada na reforma da Internacional. Desde a traição política do Partido Comunista Alemão, que possibilitou a ascensão de Hitler ao poder, e a subseqüente recusa da Internacional Comunista a tirar qualquer lição do desastre alemão, Trotsky concluiu que os partidos Comunistas tinham passado, definitivamente, para o lado da burguesia. Ele insistiu que o futuro da luta revolucionária dependia da construção de uma nova direção proletária. Assim ele escreveu no programa de fundação da Quarta Internacional: “A crise da direção do proletariado, que se transformou na crise da civilização humana, só pode ser resolvida pela Quarta Internacional”.

Pablo rejeitou essa concepção. Ele concluiu, a partir do aparecimento de novos estados operários deformados na Europa Ocidental, que o Stalinismo poderia representar um papel historicamente progressista no futuro. Tal perspectiva levou à liquidação da Quarta Internacional. Segundo Pablo, não havia razão para construir seções da Quarta Internacional independentemente das organizações stalinistas de massa. Ao invés disso, a tarefa dos trotskistas se reduzia ao entrismo nos partidos stalinistas existentes e ao apoio aos supostos elementos esquerdistas dentro de suas direções.

Pablo acabou rejeitando toda a concepção marxista a respeito do partido proletário, que consiste na necessidade de uma vanguarda consciente política e teoricamente. Para Pablo, o papel da direção poderia ser representado por forças não-marxistas e não-proletárias, como sindicalistas, reformistas de esquerda, nacionalistas pequeno-burgueses e movimentos de libertação nacional em países coloniais ou semi-coloniais, que poderiam ser levados à esquerda sob a pressão das forças objetivas. Pablo, pessoalmente, colocou-se a serviço da Frente de Liberação Nacional da Argélia, a FLN (Front de Libération Nationale), e, após sua vitória, participou do governo da Argélia por um período de três anos.

O ataque de Pablo cindiu a Quarta Internacional. A maioria da seção francesa rejeitou suas revisões e foi burocraticamente expulsa pela minoria dirigida por Pierre Frank. Em 1953, o Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP), dos EUA, respondeu às revisões pablistas com uma crítica devastadora e emitiu uma Carta Aberta, chamando a unificação internacional de todos os trotskistas ortodoxosn. Isso criou a base para surgimento do Comitê Internacional da Quarta Internacional (ICFI), que incluía a maioria francesa.

Entretanto, o SWP não manteve sua oposição ao pablismo por muito tempo. No transcorrer dos dez anos seguinte, o SWP deixou de lado suas diferenças com os pablistas e se uniu a eles para formar o Secretariado Unificado (SU), em 1963. Nesse meio tempo, a liderança do SU foi mantida por Ernest Mandel. Pablo cumpriu um papel cada vez mais secundário e deixou o Secretariado Unificado logo depois. A base para a unificação em 1963 foi, sem dúvida, o apoio a Fidel Castro e seu movimento nacionalista e pequeno-burguês, o “Movimento 26 de Julho”. Segundo o Secretariado Unificado, a tomada do poder por Castro em Cuba a transformou em um Estado Operário, com Castro, Ernesto “Che” Guevara e outros líderes cubanos protagonizando o papel de “marxistas por natureza”.

Essa perspectiva serviu não apenas para desarmar a classe trabalhadora cubana — que nunca teve seus próprios organismos de poder — ela também desarmou a classe trabalhadora internacional, ao dar apoio indiscriminado ao stalinismo e às organizações nacionalistas pequeno-burguesas, que, assim, aumentaram sua influência sobre as massas. Dessa forma, portanto, o Pablismo emergiu como uma agência secundária do imperialismo cujo papel tornou-se cada vez mais importante, nas condições onde os mais velhos aparelhos burocráticos foram sendo desacreditados aos olhos da classe trabalhadora e da juventude.

Isso foi confirmado no Sri Lanka apenas um ano depois da unificação entre o SWP e os pablistas. Em 1964, um partido trotskista com influência de massas, o Partido Lanka Sama Samaja (LSSP), formou um governo burguês de coalizão com um partido nacionalista, o Partido da Liberdade do Sri Lanka. O preço pago pelo LSSP por entrar no governo foi abandonar a minoria tâmil do país em favor do chauvinismo de dos sinhala (cingaleses). O país continua a sofrer as conseqüências dessa traição, que reforçou a discriminação da minoria tâmil e conduziu à sangrenta guerra civil que o atormenta há três décadas.

Os pablistas também protagonizaram um papel crucial na França, ajudando a manutenção do estado burguês em 1968. Quando alguém checa seu papel em eventos-chave, duas coisas ficam evidentes: sua postura apologética em relação ao Stalinismo e suas adaptações indiscriminadas às teorias anti-marxistas da “Nova Esquerda” (“New Left”), que predominaram no meio estudantil.

Alain Krivine e a JCR

A Quarta Internacional teve influência considerável na França no fim da Segunda Guerra Mundial. Em 1944, o movimento trotskista francês, que se fragmentou durante a guerra, reuniu-se para formar o Partido Comunista Internacionalista (Parti Communiste Internationaliste, PCI). Dois anos depois, o PCI tinha aproximadamente 1.000 membros e alcançou 11 candidatos nas eleições parlamentares, que receberam cerca de 2 e 5% dos votos. O jornal da organização, La Vérité, era vendido nas bancas e desfrutava de um grupo amplo de leitores. Sua influência estendeu-se a outras organizações; todas as lideranças da organização socialista da juventude, com o total de 20.000 membros, apoiavam os trotskistas. Membros do PCI cumpriram uma importante função no movimento de greve que abalou o país e forçou o PCF a deixar o governo em 1947.

Nos anos seguintes, no entanto, a orientação revolucionária do PCI sofreu repetidos ataques de elementos de suas próprias fileiras. Em 1947, a social-democrata SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária — Section Française de l’Internationale Ouvrière) passou abertamente para a direita, dissolveu sua organização da juventude e expulsou seu líder trotskista. A ala direita do PCI, liderada por Yvan Craipeau, secretário do partido na época, respondeu com o abandono de qualquer perspectiva revolucionária. Um ano depois, essa mesma ala foi expulsa por defender a dissolução do PCI em um movimento amplo de esquerda, liderado pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre (Aliança Democrática Revolucionária — Rassemblement Démocratique Révolutionnaire, RDR). Muitas das figuras da direção da ala expulsa, incluindo o próprio Craipeau, ressurgiram mais tarde no PSU.

No mesmo ano, 1948, outro grupo — Socialismo ou Barbárie (Socialisme ou barbarie), encabeçado por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort — deixa o PCI. Esse grupo, diante do início da Guerra Fria, rejeitou as análises de Trotsky sobre a União Soviética enquanto um Estado Operário degenerado, argumentando que o regime stalinista representava uma nova classe dentro de um sistema de “capitalismo burocrático”. Baseado nesse ponto de vista, o grupo desenvolveu inúmeras posições hostis em relação ao marxismo. Os textos do “Socialisme ou barbarie” tinham influência considerável no movimento estudantil. Um de seus membros, Jean François Lyotard, mais tarde desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento de ideologias associadas ao pós-modernismo.

O maior golpe no movimento trotskista francês, entretanto, foi dado pelo pablismo. O PCI foi enfraquecido, organizativa e politicamente, pela política liquidacionista de Michel Pablo, bem como pela subseqüente expulsão da maioria da seção pela minoria pablista. A maioria do PCI, dirigida por Pierre Lambert, será abordada na parte final dessa série de artigos. A minoria pablista, dirigida por Pierre Frank, centrou-se, após o racha, no apoio prático e logístico ao movimento de libertação nacional da Argélia, a FLN. Durante a década de 1960, ela teve uma grande perda de influência dentro das fábricas. Entretanto, era apoiada em círculos estudantis e desempenhou uma função importante entre essas camadas em 1968. Seu membro dirigente, Alain Krivine, foi uma das caras mais conhecidas na revolta estudantil, lado a lado com o anarquista Daniel Cohn-Bendit e o maoísta Alain Geismar.

Krivine se juntou à juventude stalinista em 1955, com 14 anos, e, em 1957, fazia parte da delegação oficial que cuidaria de um festival da juventude em Moscou. Segundo sua autobiografia, lá ele conheceu membros da FLN argelina e desenvolveu uma atitude crítica das políticas do Partido Comunista em relação à Argélia. Um ano depois, ele começou a colaborar com o PCI pablista a respeito da questão argelina. Krivine alega que inicialmente ele desconhecia o fundamento do PCI, o que é bastante improvável, uma vez que dois de seus irmãos faziam parte da direção desta organização. De qualquer forma, ele se uniu ao PCI, o mais tardar em 1961, ao mesmo tempo em que oficialmente continuava a trabalhar na organização stalinista estudantil, a UEC.

Krivine ascendeu rapidamente na direção do PCI e do Secretariado Unificado. Com 24 anos, em 1965, já estava no topo da liderança do partido, o Bureau Político, juntamente de Pierre Frank e Michel Lequenne. No mesmo ano, ele foi nomeado ao comitê executivo do Secretariado Unificado como substituto de Lequenne.

Em 1966, a seção de Krivine da UEC na Universidade de Paris (La Sorbonne) foi expulsa pela liderança stalinista por se recusar a apoiar a aliança ao candidato presidencial da esquerda, François Mitterrand. Junto a outras seções rebeldes da UEC, Krivine constrói a JCR (Juventude Comunista Revolucionária — Jeunesse Communiste Révolutionnaire), que se compunha quase exclusivamente de estudantes e, diferentemente do PCI, não se demonstrava comprometida com o Trotskismo. A JCR e o PCI, em abril de 1969, um ano depois de serem dissolvidas pelo Ministro do Interior, se unem para formar a Liga Comunista (Ligue Communiste. Esta, a partir de 1974, passa a se chamar Liga Comunista Revolucionária — Ligue Communiste Révolutionnaire, LCR).

Olhando para o passado, Krivine tenta apresentar a JCR de 1968 como uma organização nova e inocente, caracterizada pelo grande entusiasmo e pela pouca experiência política: “Nós éramos uma organização de algumas centenas de membros, onde a média de idade correspondia à maioridade da época: 21 anos. É importante salientar que, impulsionados pelas tarefas mais importantes, de um encontro e de uma manifestação a outra, nós não tínhamos tempo de considerar todos os aspectos das coisas. Em vista das nossas modestas forças, nós nos sentimos em casa nas universidades, greves e nas ruas. A solução do problema governamental ocorreu em outro nível, onde tínhamos apenas uma pequena influência”.

Na verdade, tais alegações não se sustentam. Com 27 anos em 1968, Alain Krivine continuava relativamente jovem, mas já tinha adquirido experiência política considerável. Ele tinha conhecimento das organizações stalinistas e, como um membro do Secretariado Unificado, estava totalmente familiarizado com os conflitos internacionais internos ao movimento trotskista. Nessa época, ele já havia deixado a universidade, mas então retornou para liderar as atividades da JCR.

A atividade política da JCR não era guiada, em Maio-Junho de 1968, pela inexperiência juvenil, mas, muito pelo contrário, era guiada pela linha política pablista, desenvolvida em anos de luta contra o trotskismo ortodoxo. Quinze anos depois de sua ruptura com a Quarta Internacional, o Secretariado Unificado não mudou somente sua orientação política, mas também sua orientação social. Não era mais um movimento proletário, mas um movimento pequeno-burguês. Por uma década e meia, os pablistas pediram favores aos carreiristas dos aparelhos stalinistas e reformistas, assim como cortejaram vários movimentos nacionalistas. A orientação social desses movimentos tornou-se uma segunda natureza dos próprios pablistas. O que começou como uma revisão teórica do Marxismo tornou-se uma parte orgânica de sua fisionomia política — isto na medida em que é permitido transferir, para a esfera da política, termos da fisiologia.

Marx, ao elaborar as lições da derrota das revoluções européias de 1848, distinguiu a perspectiva da pequena-burguesia daquela da classe trabalhadora. Disse ele: “Os pequeno-burgueses democratas, muito longe de pretenderem transformar toda a sociedade em benefício dos proletários revolucionários, aspiram a uma alteração das condições sociais que lhes torne tão suportável e cômoda quanto possível a sociedade existente.” Essa caracterização aplicou-se integralmente aos pablistas em 1968. Isso ficou evidente a partir de suas atitudes acríticas em relação aos anarquistas e a outros movimentos da pequena-burguesia, movimentos que combateram de forma intransigente a Marx e Engels. Também ficou evidente na forma com que eles se prendiam — e ainda se prendem — às questões de raça, gênero e orientação sexual. Como também, ainda, ficou evidente em seu entusiasmo diante dos líderes dos movimentos nacionalistas, líderes que desprezam a classe trabalhadora e — como era o caso dos populistas russos, combatidos por Lênin — a orientava em direção à pequena-burguesia rural.

“Mais Guevarista do que Trotskista”

Acima de tudo, a JCR de Krivine era caracterizada por seu completo e acrítico apoio à liderança cubana — caso que esteve no cerne da unificação de 1963. O autor de uma história da LCR, Jean-Paul Salles, refere-se à “identidade de uma organização que, antes de Maio de 68, aparentava em muitos aspectos mais guevarista do que trotskista”.

No dia 19 de outubro de 1967, dez dias após o assassinato de Che Guevara na Bolívia, a JCR, organizou um encontro-comemoração em sua homenagem na Paris Mutualité. O retrato de Guevara era difundido nos encontros da JCR. Em sua autobiografia de 2006, Alain Krivine escreve: “Nosso mais importante ponto de referência em relação às lutas de libertação nos países do terceiro mundo era, sem dúvida, a revolução cubana, o que nos fez sermos chamados de “trotskistas-guevaristas”… Particularmente, Che Guevara incorporou em nossos olhos o ideal do combatente revolucionário”.

Com sua glorificação de Che Guevara, a LCR esquivou-se de problemas urgentes, ligados à construção da direção da classe trabalhadora. Se há um único denominador comum a ser encontrado na agitada vida do revolucionário argentino-cubano, certamente é sua resoluta hostilidade à independência política da classe trabalhadora. Em vez disso, ele defendia que uma minoria armada — um foco guerrilheiro operando nas áreas rurais — poderia dirigir uma revolução socialista, independentemente da classe trabalhadora. Para isso, não seria necessária uma perspectiva política ou teórica. A ação e o desejo de um pequeno grupo seriam cruciais. Era negada, dessa forma, a capacidade da classe trabalhadora e das massas oprimidas em atingir consciência política e conduzir sua própria luta pela emancipação.

Em janeiro de 1968, o jornal da JCR, Avant-Garde Jeunesse (Vanguarda Jovem), propagandiou as concepções de Guevara da forma como segue: “Independentemente das circunstâncias atuais, os guerrilheiros são convocados a desenvolverem-se, até que, depois de um período mais longo ou mais curto, sejam capazes de atrair toda a massa dos explorados para uma luta frontal contra o regime”.

Entretanto, a estratégia de guerrilha defendida por Guevara na América Latina não poderia ser tão facilmente transferida para a França. Frank e Krivine, ao contrário de Mandel, atribuíram o papel de vanguarda aos estudantes. Eles glorificaram as atividades espontâneas dos estudantes e suas batalhas de rua com a polícia. As concepções de Guevara serviram para justificar o ativismo cego, livre de qualquer orientação política séria. Para isso, o pablistas adaptaram completamente teorias anti-marxistas da Nova Esquerda (New Left), que influenciaram enormemente os estudantes, bloqueando, assim, o caminho para uma verdadeira orientação marxista.

Raramente era possível distinguir politicamente o “trotskista” Alain krivine, o anarquista Daniel Cohn-bendit, o maoísta Alain Geismar e outros líderes estudantis que se sobressaíram nos eventos de 1968. Eles apareceram lado a lado nos conflitos de rua que tomaram o Quartier Latin. Como escreve Jean-Paul Salles: “Durante a segunda semana de maio, membros da JCR, ao lado de Cohn-Bendit e os anarquistas, estavam na linha de frente e participaram de todas as manifestações — incluindo a Noites das Barricadas”. [6] No dia 9 de maio, a JCR presidiu um encontro — preparado muito antes na Mutualité — que ocorreu no Quartier Latin, cenário dos mais violentos conflitos de rua no momento. Mais de 3.000 participaram do encontro, e um dos principais oradores foi Daniel Cohn-Bendit.

No mesmo período, na América Latina, o Secretariado Unificado apoiou incondicionalmente a estratégia de guerrilha de Che Guevara. Em seu 9º Congresso Mundial, realizado em maio de 1969, na Itália, o SU instruiu suas seções sul-americanas a seguir o exemplo de Che Guevara e unir-se aos seus apoiadores. Isso significou o abandono da base urbana da classe trabalhadora em favor da guerrilha armada, com a defesa de que a luta seria levada para a cidade através da base rural. Ernest Mandel, Pierre Frank e Alain Krivine estavam entre a maioria dos delegados do congresso que aprovaram essa estratégia. Eles a mantiveram resolutamente por nada menos que dez anos, embora tenha sido fonte de controvérsias dentro do Secretariado Unificado — na medida em que suas conseqüências catastróficas tornavam-se mais claras. Milhares de jovens que assumiram essa orientação, e tomaram o caminho da luta de guerrilha, sacrificaram suas vidas. Ao mesmo tempo, a ação das guerrilhas — seqüestros, raptos e violentos ataques contra o exército — serviu apenas para desorientar politicamente a classe trabalhadora.


Os estudantes como “vanguarda revolucionária”

Um longo artigo escrito por Pierre Frank no começo de junho de 1968 — pouco antes da dissolução da JCR pelo governo — evidencia a postura totalmente acrítica dos pablistas a respeito do papel protagonizado pelos estudantes nos eventos de maio.

“A vanguarda revolucionária em maio é atribuída geralmente à juventude” escreveu Frank, e acrescentou: “A vanguarda, que era politicamente heterogênea e onde somente as minorias eram organizadas, tinha, sobretudo, um alto nível político. Ela Reconheceu que o objeto do movimento era a derrubada do capitalismo e o estabelecimento de uma sociedade socialista em construção. Reconheceu, também, que as políticas de “caminhos passivos e parlamentares ao socialismo ” e de “coexistência pacífica” eram a traição do socialismo. Rejeitou todo o nacionalismo pequeno-burguês e expressou seu internacionalismo da forma mais notável. Tinha uma consciência anti-burocrática forte e uma feroz determinação da democracia em suas fileiras.

Frank foi longe o suficiente ao descrever a Sorbonne como a “forma mais desenvolvida de dualidade de poder”, bem como “o primeiro território livre da República Socialista da França”. Ele continuou: “A ideologia que inspira a oposição dos estudantes à sociedade de consumo neo-capitalista, os métodos que usaram em suas lutas, como também os lugares que ocuparam e ocuparão na sociedade (que fará, da maioria deles, empregados de “colarinho branco” do Estado ou dos capitalistas) deram a essa luta uma eminência socialista, revolucionária e um caráter internacionalista.” A luta dos estudantes demonstrou ter “um alto nível político, um senso marxista revolucionário”.

Na realidade, nem havia traço de consciência revolucionária no senso marxista de boa parte dos estudantes. As concepções políticas que prevaleceram entre os estudantes tinham sua origem no arsenal teórico da então chamada “nova esquerda” (New Left), e foram desenvolvidas durante muitos anos em oposição ao marxismo.

A historiadora Ingrid Gilcher-Holtev escreve o seguinte sobre o movimento de 68 francês: “Os grupos estudantis que dirigiam o processo se baseavam expressamente nos mentores intelectuais da Nova Esquerda — ou eram influenciados por seus temas e suas críticas —, particularmente pelos escritos da ‘Internacional Situacionista’, do grupo em torno do ‘Socialisme ou Barbarie’ e do ‘Arguments.’ Sua dupla estratégias de ação (direta e provocadora), e sua própria concepção (anti-dogmática, anti-burocrática, anti-organizativa, anti-autoritária) inseriram-se no sistema de orientações da nova esquerda”.

Ao invés de caracterizar a classe trabalhadora como classe revolucionária, a Nova Esquerda viu os trabalhadores como uma massa atrasada, completamente integrados à sociedade burguesa via consumo e mídia. Ao invés da exploração capitalista, a Nova Esquerda dava ênfase ao papel de alienação em suas análises sociais — interpretando-o num restrito senso psicológico e existencialista. A “revolução” seria dirigida não pela classe trabalhadora, mas por uma vanguarda intelectual e grupos à margem da sociedade. Para a Nova Esquerda, as forças motrizes não eram as contradições entre as classes da sociedade capitalista, mas “o pensamente crítico” e as atividades de uma elite esclarecida. O objetivo da revolução não era a transformação das relações de propriedade e de poder, mas mudanças sociais e culturais, assim como as alterações nas relações sexuais. Segundo representantes da Nova Esquerda, tais mudanças culturais eram pré-requisito para uma revolução social.

Dois dos mais conhecidos líderes estudantis na França e Alemanha, Daniel Cohn-Bendit e Rudi Dutschke, eram ambos influenciados pela “Internacional Situacionista”, que propagandeava a mudança de consciência através de ações provocativas. Originalmente enquanto um grupo de artistas com raízes nas tradições do Dadaísmo e do Surrealismo, os situacionistas enfatizaram a importância de atividades práticas. Como um recente artigo sobre os situacionistas colocou: “Rompimento ativista, radicalização, crueldade, valorização e reproduções humoradas das situações concretas do dia-a-dia, são os meios para elevar e permanentemente revolucionar a consciência daqueles que estão na segurança onipotente do profundo sono que resulta de todo o tédio difundido”
Tais pontos de vistas estão anos-luz distantes do Marxismo. Eles negam o papel revolucionário da classe trabalhadora, papel enraizado em suas posições numa sociedade caracterizada por conflitos de classes insuperáveis. A força motriz da revolução é a luta de classes, que está objetivamente posta. Conseqüentemente, a tarefa dos revolucionários marxistas não é a de chocar a classe trabalhadora com atividades provocativas, mas a de elevar sua consciência política, oferecendo uma direção revolucionária capaz de habilitá-los a assumirem a responsabilidade pelo seu próprio destino.

Os pablistas não apenas declararam que os grupos anarquistas, maoístas e pequeno-burgueses que desempenharam um papel de liderança no Quartier Latin tinham “um alto nível político e um senso marxista revolucionário” (Pierre Frank), eles defenderam seus pontos-de-vista e tomaram parte em suas atividades aventurosas com entusiasmo.

Os conflitos de rua inspirados pelos anarquistas no Quartier Latin em nada contribuíram para a educação política dos trabalhadores e dos estudantes, assim como nunca foram uma séria ameaça ao Estado francês. Em 1968, o Estado tinha um moderno aparato policial e um exército forjado no curso de duas guerras coloniais, e poderia, também, contar com o apoio da OTAN. Não seria derrubado pelo tipo de tática revolucionária usada no século XIX — ou seja, a construção de barricadas nas ruas da capital. Embora as forças de segurança fossem responsáveis pelos gigantescos níveis de violência que caracterizavam os conflitos de rua no Quartier Latin, havia um inegável elemento de infantilidade revolucionária e romântica no modo como os estudantes montavam ansiosamente as barricadas e jogavam seu jogo de gato e rato com a polícia.


Parte 4 – Como a JCR de Alain Krivine acobertou as traições do stalinismo

Acobertando o stalinismo

Os stalinistas do Partido Comunista Francês e da CGT, apesar de odiarem o espírito rebelde da juventude e, conseqüentemente, os grupos estudantis de esquerda — aos quais chamavam de gauchistes (radicais de esquerda) e provocadores —, não eram incapazes de conviver politicamente com eles. As ações anarquistas de Daniel Cohn-Bendit mal ameaçavam a dominação dos stalinistas dentro da classe trabalhadora. O mesmo pode ser dito em relação aos maoístas e seu entusiasmo pela Revolução Cultural Chinesa e a luta armada.

Já os pablistas, evitaram cuidadosamente entrar em conflito com os stalinistas. Eles se abstiveram de qualquer ação política que tencionasse a relação entre a classe trabalhadora e a direção stalinista, o que poderia precipitar uma crise para estes. No ápice da crise de 1968, quando os trabalhadores rejeitaram o acordo de Grenelle e a questão da tomada do poder estava na ordem do dia, a JCR (Jeunesse Communiste Révolutionnaire — Juventude Comunista Revolucionária) deu cobertura aos stalinistas. Vinte anos após esses eventos, Alain Krivine e Daniel Bensaid publicaram uma retrospectiva de 1968 que, mesmo se esforçando em apresentar a JCR com cores favoráveis, expõe claramente seu verdadeiro papel.

A JCR participou das duas grandes marchas convocadas pelos social-democratas e stalinistas no auge do movimento de massas: o encontro massivo de 27 de maio, no estádio Charléty, organizado pela UNEF (União Nacional dos Estudantes da França), pela central sindical CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho) e pelo PSU (Partido Socialista Unificado); e o ato de massas do PCF (Partido Comunista Francês) e da CGT (Confederação Geral do Trabalho) em 29 de maio.

O objetivo do encontro no estádio Charléty era preparar o terreno para um governo transitório sob controle do experiente político burguês Pierre Mendès-France, então membro do PSU. A tarefa a ser cumprida por este governo seria a de controlar a greve, restaurar a ordem e preparar uma nova eleição.

Até setores da imprensa de direita estavam, sobre isso, convencidos de que somente um governo de “esquerda” seria capaz de salvar a ordem existente. Conforme escreveu o jornal financeiro Les Echos, em 28 de maio, a única escolha era entre reforma e revolução, ou a “anarquia”. Tendo como manchete “Uma saída deve ser encontrada”, o jornal comentou:

“Ninguém mais está disposto a ouvir ou acreditar em alguém. Até agora, parecia que a CGT era um bastião da ordem e da disciplina. Mas, neste momento, ela foi desestabilizada por um bando de populares revoltosos, cuja rebelião ela havia subestimado. Os dirigentes sindicais foram desbancados pelos grevistas que não acreditam mais em nenhuma promessa, independente de quem a faça. Isso sem falar do governo… ‘Sim à reforma, não à desordem’ foi dito pelo General (de Gaulle) recentemente, de forma infeliz. Hoje temos tanto a reforma quanto a anarquia, sob condições nas quais não fica claro qual delas sairá vitoriosa.”

Naquele momento, o PCF estava bem preparado para fazer parte de um governo burguês. Seu secretário-geral, Waldeck Rochet, propôs, no dia 27 de maio, que ele e François Miterrand se encontrassem imediatamente a fim de discutir as condições para uma “substituição do regime Gaullista por um governo popular de unidade democrática, erguido sobre a base de um programa comum.” Para aqueles acostumados com a terminologia stalinista, não poderia haver dúvida que o significado de um “governo popular de unidade democrática” seria um governo burguês dedicado a defender a propriedade capitalista.

O PCF temia, porém, que Miterrand e Mendès-France formassem um governo sem ele. Assim, em conjunto com a CGT, organizou sua própria manifestação de massas no dia 29 de maio, sob a bandeira de um “Governo Popular”. Essa reivindicação adaptava-se ao estado de espírito revolucionário das massas, ainda que o PCF nunca sonhasse em tomar o poder pela derrubada do capitalismo e somente aspirasse a um governo de coalizão com Miterrand ou algum outro político burguês.

A JCR participou da manifestação do PCF-CGT com a palavra de ordem: “Governo Popular sim! Mitterrand, Mendes-France, não!” apoiando, assim, a manobra do PCF. Krivine e Bensaid escreveram, em seu ensaio retrospectivo, o seguinte sobre esta palavra de ordem:

“A formulação jogava com ambigüidades. Contrapunha um governo popular, que poderia ser interpretado como a expressão mais combativa da greve, juntamente com seus organismos, a um governo de figuras políticas. Sem rejeitar por completo um governo de coalizão dos partidos de esquerda, atacava as figuras que eram desprovidas de qualquer ligação direta com a classe trabalhadora e estavam suscetíveis a usar sua autonomia institucional existente como base para a colaboração de classes… Apesar de sua proposital falta de clareza, a formulação ‘governo popular’ apontava para um governo de partidos de esquerda, sem entrar em mais detalhes.”

Em outras palavras: a formulação utilizada pela JCR tinha como objetivo de fazer com que os “setores mais combativos” da classe trabalhadora acreditassem que um governo de esquerda burguês, que incluísse o PCF, seria o “resultado da greve e de sua organização”. Esta é uma confissão reveladora. Em um momento em que a crise revolucionária havia chegado ao seu ápice, com a CGT tendo perdido sua autoridade e de Gaulle desaparecido do mapa, isto é, em uma época em que era necessário tomar uma decisão de forma aberta e decisiva, a JCR jogava com “ambigüidades” e continuava sendo propositalmente vaga. Ela escapou da decisiva questão a respeito de quem seguraria o poder no país.

A reivindicação de um “governo popular”, tomada dos stalinistas pela JCR, recebeu um apoio considerável da população. Porém, a reivindicação permaneceu imprecisa e evasiva. O Partido Comunista a interpretava como sendo por um governo de coalizão com os social-democratas e pequeno-burgueses radicais, cuja tarefa mais importante seria a de manter a ordem existente. Nada era mais distante do pensamento do PCF do que a tomada revolucionária do poder. Os pablistas, por sua vez, nunca questionaram essa posição e foram parar atrás das fileiras dos stalinistas.

O que a JCR deveria ter feito?

É claro que a JCR não possuía o apoio suficiente para assumir o poder por si mesma. No entanto, há inúmeros precedentes históricos que demonstram como os marxistas, mesmo em minoria, podem lutar por seu programa e ganhar a maioria dos trabalhadores para o seu lado.

No início de 1917, na Rússia, a base de Lênin com os bolcheviques era consideravelmente menor do que a dos mencheviques e a dos Socialistas-revolucionários (SR). No entanto, usando uma política principista e habilidosa, os bolcheviques trabalharam para conquistar o apoio da classe trabalhadora e tomar o poder em outubro. Trotsky, quando esteve exilado na França, entre 1933 e 1935, se interessou intensamente pelas atividades da seção e apresentou propostas detalhadas de como ela poderia lutar por um programa revolucionário, mesmo sendo minoria. A questão central sempre foi a da independência política da classe trabalhadora em relação aos aparatos reformistas (e mais tarde também aos stalinistas) e a construção de um partido revolucionário independente.

Quando Lênin voltou à Rússia, em 1917, após o exílio, ele atacou a atitude centrista dos bolcheviques diante do governo provisório, onde os mencheviques e social-revolucionários haviam assumido postos ministeriais. Ele insistiu numa oposição resoluta, assim como em um programa que se dirigisse à tomada do poder através dos sovietes.

Baseados nesse programa, os bolcheviques usavam a tática de aumentar a distância entre os trabalhadores e seus líderes reformistas, direcionada, em última instância, a separá-los. Os bolcheviques exigiam que os SR e os mencheviques rompessem com a burguesia liberal e tomassem o poder em suas próprias mãos. Ainda que eles fossem incapazes de formar um governo independente da burguesia, Trotsky comenta essa experiência, tempos depois, no Programa de Transição, quando escreve que “a reivindicação dos bolcheviques endereçada aos mencheviques e socialistas-revolucionários — ‘rompam com a burguesia, tomem em suas mãos o poder’ — tinha, para as massas, um enorme valor educativo. A recusa obstinada dos mencheviques e socialistas-revolucionários de tomar o poder, que se revelou tão tragicamente nas jornadas de julho, perdeu-os definitivamente no espírito do povo e preparou a vitória dos bolcheviques.”

Em 1968, a JCR se encontrou na posição de exigir que o PCF e a CGT tomassem o poder, baseados nas mobilizações da greve geral. Junto com uma agitação sistemática contrária à atitude conciliadora dos stalinistas em relação aos partidos burgueses, esta reivindicação teria tido um enorme peso político. Ela teria acirrado o conflito entre a classe trabalhadora e a direção stalinista, ajudando os trabalhadores a romper politicamente com eles. No entanto, nada estava mais distante da mente dos pablistas do que colocar os stalinistas numa situação difícil. Tendo a crise revolucionária atingido seu ápice, eles provaram ser um sustentáculo confiável para a burocracia stalinista.

Mas os pablistas, no entanto, não podiam simplesmente ignorar o papel contra-revolucionário cumprido pelos stalinistas, num momento em que isso era discutido abertamente pela imprensa burguesa. Em junho de 1968, Pierre Frank acusou o PCF e a CGT de terem “traído 10 milhões de trabalhadores em troca de 5 milhões de votos”. Ele chegou a comparar essa “traição da direção do PCF” com a traição histórica do Partido Social-Democrata Alemão: “Se esta liderança até agora não agiu da mesma forma como os Noskes e os Eberts agiram contra a revolução alemã de 1918-1919, é simplesmente porque a burguesia não teve necessidade disso. Mas sua atitude em relação aos ‘ultra-esquerdistas’ não deixa dúvidas de que estão prontos para fazê-lo caso seja necessário”.

Porém, a JCR, ao concentrar toda sua energia política em ações aventureiras e ao defender os estudantes como vanguarda revolucionária, evitava, assim, a questão mais importante: a construção de uma nova direção revolucionária na forma de uma seção da Quarta Internacional. Eles se recusaram, propositalmente, a questionar a dominação dos stalinistas. A perspectiva liquidacionista de entrismo nos partidos stalinistas, que levou ao racha de 1953 na Quarta Internacional, também constituía a base da política pablista em 1968.

Eles não chamaram a ruptura com o stalinismo e tampouco lutaram pela construção da Quarta Internacional. Ao invés disso, sua política baseava-se na convicção de que as movimentações dos estudantes e da juventude poderiam superar espontaneamente a traição stalinista e resolver a crise de direção da classe trabalhadora. Assim, a própria JCR se transformou no pior obstáculo ao desenvolvimento da verdadeira vanguarda revolucionária.

Em 1935, Leon Trostky incentivou a construção de comitês de ação na França, para se oporem à frente popular, caracterizada por ele como uma “coalizão entre o proletariado e a burguesia imperialista na forma de um Partido Radical”.

“Em dias de luta, cada duzentos, quinhentos ou mil cidadãos aderindo à Frente Popular em uma dada cidade, distrito, fábrica, quartel e vila elegem seus delegados ao comitê de ação local”, escreveu ele. Dentre aqueles que podem fazer parte das eleições dos comitês de ação, incluem-se não somente trabalhadores, “mas também servidores públicos, funcionários, veteranos de guerra, artesãos, pequenos comerciantes e camponeses. Assim, os comitês de ação estão em harmonia com as tarefas da luta do proletariado por mais influência sobre a pequena burguesia. Eles dificultam ao máximo, desta forma, a colaboração entre a burocracia operária e a burguesia”. Trotsky ressaltou que “não é a representação democrática formal de todos e quaisquer setores das massas, mas sim a representação das massas em luta. O comitê de ação é um aparato de luta”. É a “única maneira de quebrar a oposição contra-revolucionária de partido e aparelho sindical” (ênfase no original).

Em 1968, os pablistas adotaram a reivindicação por comitês de ação. No dia 21 de maio, por exemplo, a JCR distribuiu um panfleto que fazia um chamado à construção de comitês de ação nas universidades e nos subúrbios. O panfleto chamava a construção de um governo operário e enfatizava: “O poder que queremos deve advir dos comitês de greve e de ação de trabalhadores e estudantes.” No entanto, a adaptação dos pablistas aos stalinistas e aos radicais pequeno-burgueses esvaziou essa reivindicação de qualquer conteúdo revolucionário. Ela, isolada da construção de uma nova direção revolucionária, quando levantada pelos pablistas somente fazia ressoar os ruídos daquilo que, na realidade, eram suas posições políticas totalmente oportunistas.

Trotsky versus Pierre Frank

Essa não foi a primeira vez em que Pierre Frank cumpriu tal papel na política. Trotsky o havia criticado ferozmente em 1935 por razões semelhantes, quando acabou sendo expulso do movimento trotskista. Naquela época, ele liderava um grupo junto com Raymond Molinier em torno da revista La Commune, que, em nome da “ação revolucionária”, propôs a unificação com movimentos centristas — em particular a Esquerda Revolucionária, liderada por Marceau Pivert. Pivert era um centrista incorrigível. Ao mesmo tempo em que tendia a usar uma fraseologia revolucionária, ele era, na prática, a ala esquerda do governo de Frente Popular liderado por Leon Blum, governo que estrangulou a greve geral de 1936.

Trotsky se opunha resolutamente ao centrismo de Pivert e às manobras de Molinier e Frank. “A essência da tendência de Pivert é somente esta: aceitar slogans ‘revolucionários’, mas sem tirar deles as conclusões necessárias, que são: romper com Blum e Zyromsky [um social-democrata de direita], criar um novo partido e uma nova internacional. Sem isso, todos os slogans ‘revolucionários’ tornam-se nulos e vazios.” Ele acusou Molinier e Frank de tentarem “conquistar a simpatia da Esquerda Revolucionária através de manobras pessoais, lobbismo e, acima de tudo, abandono dos nossos slogans e da crítica aos centristas”.

Em artigo posterior, Trotsky descreveu a postura adotada por Molinier e Frank como crime político. Ele os acusou de esconderem o programa e submeterem aos trabalhadores “falsos passaportes. Isso é um crime!” Ele insistiu que a defesa de um programa revolucionário tinha prioridade sobre a atividade prática unificada. “‘Papel de massas’? Ação revolucionária? Comunas em todos os lugares?… Muito bem, muito bem… Mas o programa em primeiro lugar!”.

“Sem um partido revolucionário, o proletariado francês está fadado à catástrofe”, prosseguiu ele. “O partido do proletariado somente pode ser internacional. A Segunda e a Terceira Internacional se tornaram o maior obstáculo à revolução. É necessário criar uma nova Internacional — a Quarta. Devemos proclamar isso abertamente. Eles são centristas pequeno-burgueses que vacilam a cada passo antes de sofrer as conseqüências de suas próprias idéias. O trabalhador revolucionário pode ser paralisado por sua ligação tradicional à Segunda ou Terceira Internacional, mas, assim que ele compreender a verdade, passará diretamente à bandeira da Quarta Internacional. É por isso que devemos apresentar às massas um programa completo. Através de fórmulas ambíguas só poderemos servir Molinier, que, por sua vez, serve Pivert, que dá cobertura a Leon Blum. Este último dispende todas as suas energias apoiando o [fascista] de la Rocque…”

Três décadas depois, Pierre Frank não havia apreendido nada desse conflito com Trotsky. Na verdade, ele se posicionou mais à direita em 1968 do que em 1935. Dessa vez, ele não somente buscou a unidade com centristas como Marceau Pivert, mas também com os anarquistas, os maoístas e outras tendências anti-operárias. A reprovação de Trotsky ao “crime político” de 1935 era ainda mais justificável para 1968. Os pablistas constituíram o obstáculo crucial que impediu os trabalhadores e a juventude de voltarem-se ao marxismo revolucionário.

Eles transferiram, assim, às costas da classe trabalhadora, a responsabilidade da traição cometida pelos stalinistas e a de seu próprio fracasso. Cerca de 20 anos depois, Krivine e Bensaid escreveram: “Pode-se atribuir a fraqueza das forças revolucionárias no início do movimento aos crimes do stalinismo e da social-democracia. Mas, se não queremos nos perder em idealismos insanos, então, na verdade, e de forma distorcida, isso também é a expressão de uma condição mais geral da própria classe trabalhadora, de suas correntes combativas e de sua vanguarda natural nas fábricas e sindicatos”. Escrevem eles, também, que havia contradições entre a dinâmica da luta e a do Partido Comunista, “porém, elas continuavam em segundo plano… A massa de grevistas queria equilibrar o conflito social e se livrar do jugo de um regime autoritário. Deste ponto até uma revolução ainda havia um longo caminho a ser percorrido”.

Passados mais 20 anos, Krivine é ainda mais claro. Em sua autobiografia, de 2006, ele escreveu: “Certamente, na direção da JCR nós não sabíamos quão longe iria o movimento. Era uma revolta de tamanho sem igual, mas não era uma revolução. Não havia nem um programa nem organizações confiáveis preparadas para tomar o poder”.

Essa linha de argumentação é típica do oportunismo pablista. Em sua polêmica com o POUM, Trotsky certa vez descreveu-o como uma “filosofia impotente que procura resignar-se diante das derrotas, como um elo necessário na cadeia da evolução cósmica, sendo completamente incapaz de reconhecer – e se nega a fazê-lo – que fatores concretos, tais como programas, partidos e personalidades, foram os organizadores da derrota”.

A LCR hoje


O Ministro do Interior francês, Raymond Marcellin, baniu a JCR e sua organização sucessora, a Liga Comunista (Ligue communiste) em não menos de duas ocasiões: em 12 de junho de 1968, quando ele dissolveu um total de 12 organizações de esquerda, e em 28 de junho de 1973, logo após violentos confrontos com a polícia em um ato contra o fascismo, em Paris. No entanto, após 1968, os elementos mais visionários da elite governante estavam certos de que a LCR não representava ameaça alguma à ordem burguesa e de que eles poderiam contar com ela em tempos de crise.

Após a ressaca da maré revolucionária de 1968, a LCR e as organizações com que ela trabalhava tornaram-se um campo fértil de recrutamento para os partidos estabelecidos, a mídia burguesa, as universidades e os aparatos estatais. Antigos membros da LCR podem ser encontrados em posições de liderança no Partido Socialista (Henri Weber, Julien Dray, Gérard Filoche, etc.), ocupando cadeiras de filósofos (Daniel Bensaid) e em conselhos editoriais dos principais jornais burgueses.

Edwy Plenel, que ascendeu das fileiras da LCR a chefe do conselho editorial do renomado diário Le Monde, escreve em suas memórias: “Eu não fui o único: éramos certamente dezenas de milhares — aqueles que, após terem sido militantes da extrema esquerda (trotskista ou não-trotskista) — rejeitaram as lições da militância e se voltaram de forma parcialmente crítica às nossas ilusões daquele período, sem deixar de manter certa lealdade ao nosso ódio original e sem esconder nossas dívidas ao treinamento que recebemos” 19.

O anarquista Daniel Cohn-Bendit tornou-se o mentor político e amigo íntimo de Joschka Fischer, ministro do exterior alemão de 1998 a 2005. Cohn-Bendit é atualmente o líder do Partido Verde (PV) no Parlamento Europeu e pertence à ala à direita daquele que hoje é um partido completamente de direita.

Em 1990, o maoísta Alain Geismar tomou posse como chefe da Inspection générale de l’administration de l’éducation nationale et de la recherche (importante órgão do Ministério de Educação Nacional do Governo Francês) e prosseguiu preenchendo inúmeras vagas de subsecretariado estatal em diversos ministérios comandados pelo Partido Socialista. A fundação do diário Libération também tinha suas raízes no maoísmo. Ele foi criado originalmente em 1973 como sendo uma publicação maoísta, tendo como editor-chefe Jean-Paul Sartre.

O grande número de radicais de 68 que tiveram a chance de subir de carreira na França não pode ser explicado somente como sendo “o retorno dos filhos pródigos”. É muito mais o resultado da perspectiva dos pablistas e seus aliados, que, apesar de sua retórica radical, sempre almejaram a políticas oportunistas compatíveis com a ordem burguesa.

Diante da crise econômica e política que está, hoje, muito mais grave do que aquela de 1968, os serviços da LCR são mais necessários do que nunca. A globalização da produção, a crise mundial financeira e o aumento do preço do petróleo destruíram as bases dos compromissos sociais na França, assim como em todos os países. Nesse meio tempo, o PCF e a CGT são apenas a sombra do que costumavam ser e somente 7% da força de trabalho está organizada em sindicatos. O Partido Socialista, fundado em resposta aos eventos de 1968, o mais importante pilar de apoio da dominação burguesa nas últimas três décadas, está destroçado por suas divergências internas e rapidamente perdendo apoio. Conflitos sociais estão a ponto de irromper e, nos últimos 12 anos, o país tem sido abalado por uma onda de greves e manifestações após outra.

Sob tais circunstâncias, a elite governante precisa de um novo sustentáculo de esquerda que seja capaz de desorientar o crescente número de trabalhadores e jovens que perderam a fé em uma solução reformista para a crise social, impedindo-os de optar por uma alternativa revolucionária. Para este papel, precisamente, está sendo criado o novo “Partido Anti-Capitalista”, partido que a LCR planeja fundar no fim do ano. Seu porta-voz, Olivier Besancenot (um apadrinhado de Alain Krivine), foi recebido positivamente pela mídia após a última eleição presidencial, na qual obteve 1,5 milhões de votos.

Os paralelos entre a JCR de 1968 e o “Partido Anti-Capitalista” da LCR de hoje são bem aparentes. A começar pela glorificação de Che Guevara, reconhecido por Besancenot como um importante modelo a ser seguido. Ele chegou a escrever um livro sobre Che Guevara no ano passado. Outros paralelos incluem a adaptação sem qualquer crítica a diversas correntes radicais pequeno-burguesas. De acordo com Besancenot, seu novo partido está aberto a “ex-membros de partidos políticos, ativistas do movimento sindical, feministas, opositores do liberalismo, anarquistas, comunistas ou anti-neoliberais.” Além disso, ele rejeita explicitamente qualquer ligação histórica com o trotskismo. Tal partido eclético e sem princípios, sem qualquer programa claro, pode ser facilmente manipulado e ajustado para servir aos interesses da classe dominante.

As lições que podemos tirar de 1968 não são de mero interesse histórico. Com a ajuda dos stalinistas e dos pablistas, a classe dominante foi capaz de retomar o controle e estabilizar sua dominação durante um período de crise revolucionária naquela época. A classe trabalhadora não permitirá ser enganada pela segunda vez.