Os ventos que sopram do Chile – bem como do Equador e da Bolívia –, nesse exato momento, animam os lutadores dos demais países da América Latina para os combates que se aproximam nos seus próprios países.
Nesse mês de novembro, sob o influxo das lutas que estão acontecendo agora, a TS produziu uma série de postagens sobre a dualidade de poder, isto é, sobre o processo de constituição de um poder paralelo pelos trabalhadores, contraposto ao poder oficial do Estado burguês, com as formas de luta e as formas organizativas forjadas pelos próprios trabalhadores na luta pela sua emancipação. Lembrar o passado, para nós, tem um propósito político muito claro: nos armar para as lutas do presente!
Começamos tratando justamente das manifestações de rua. Em períodos de “normalidade” política e econômica, é um direito garantido pela democracia burguesa o de que os “cidadãos” se reúnam livremente para se manifestar nas ruas (contanto que de maneira pacífica). Mas quando a crise econômica se intensifica, as manifestações de rua começam a “fugir do controle” e a ter expressões mais violentas, como resposta da parte dos trabalhadores a um grau de exploração e violência que já não aguentam mais. Os governos, em situações como essas e a depender da força do movimento, normalmente entram em pânico, oscilando entre respostas que vão do aumento puro e simples da repressão, com envio do Exército, decreto de Estado de sítio etc., a vagos acenos a um “diálogo” com vistas a desarmar as manifestações ou mesmo recuando de um ataque com medo de que a situação se torne incontornável. O estopim pode ser algo aparentemente pequeno – como o aumento na tarifa do metrô que colocou o Chile em chamas –, mas as consequências podem ser profundas: até presidentes podem cair.
Foi isso que aconteceu na Argentina, em dezembro de 2001, no chamado “Argentinazo”, três dias de jornadas de protesto que foram capazes de derrubar o presidente Fernando de la Rúa e fazer com que, num intervalo de 10 dias, mais quatro presidentes caíssem do cargo, com um saldo de 39 mortos pelas forças de repressão do Estado, além de dezenas de feridos e presos, com o Estado de sítio decretado na tentativa (malsucedida) de deter os protestos. O pano de fundo dessas movimentações foi uma gravíssima crise econômica, com um desemprego na casa dos 18%, e teve como estopim a política do governo de impedir saques bancários (o “corralito”). Essa situação fez confluir nos protestos de rua tanto os trabalhadores empregados e desempregados quanto a pequena-burguesia que rapidamente se empobrecia, gritando a palavra de ordem que ficou famosa: que se vayan todos! (que saiam todos!).
É importante ressaltar que toda essa situação não foi um espontâneo raio no céu azul: antes dos dias 19-21, tinha havido no dia 13 uma greve massiva chamada pelas principais centrais sindicais do país e o movimento organizado dos trabalhadores desempregados, os “piqueteros”, que se constituíra nos anos 1990, interveio com força em todo esse processo. Entretanto, apesar dos sérios abalos que sofreu, o Estado burguês conseguiu, enfim, se recompor, já que não foi possível o desenvolvimento de formas organizativas superiores que pudessem lhe fazer frente.
“Desde que o comitê aparece, estabelece-se de fato uma dualidade de poder na fábrica. Por sua própria essência, esta dualidade de poder manifesta uma situação transitória, porque encerra em si própria dois regimes inconciliáveis: o regime capitalista e o regime proletário.” (Leon Trotsky, Programa de Transição)
Nesse tópico, falaremos dos comitês de fábrica, uma forma de organização dos trabalhadores no seu próprio local de trabalho – um salto qualitativo muito grande em termos de organização em relação às manifestações de rua –, representando um contrapeso à administração do patrão lá onde sua vontade normalmente se expressa sem freios, de forma ditatorial. Como está colocado na citação de Trotsky, através da organização em comitês, o que passa a estar em questão é quem, de fato, manda no local de trabalho, quem pode organizar a produção.
Há aqui no próprio Brasil uma rica experiência de organização dos trabalhadores em comitês de fábrica, infelizmente bastante esquecida, soterrada por certa mitologia sobre as greves do fim dos anos 70 e começo dos anos 80, segundo a qual elas teriam sido totalmente espontâneas. O movimento grevista de São Paulo em 1978 foi precedido pela organização de comitês de fábrica, através de um trabalho clandestino de anos por parte da Oposição Sindical Metalúrgica entre os metalúrgicos de São Paulo. Esse processo, por sua vez, bebe da experiência das históricas greves de Contagem e de Osasco em 1968, que também foram organizadas por comitês de fábrica clandestinas, em plena ditadura militar.
As greves em São Paulo apontaram o caminho que seria seguido pelos trabalhadores metalúrgicos do ABC. Entretanto, já em 1979, os comitês de fábrica de São Paulo começaram a se desarticular e não puderam se tornar organismos de poder paralelo permanentes. Quando o grau de organização dos trabalhadores consegue fazer com que isso aconteça, elas podem se tornar instrumentos para ainda mais radicais, como as ocupações de fábrica, senão vejamos.
“As greves com ocupações de fábrica são a mais séria advertência, por parte das massas, endereçada não apenas à burguesia, mas também às organizações operárias, inclusive à Quarta Internacional” (Leon Trotsky, Programa de Transição)”
Já se disse que a guerra é a parteira da revolução. O exemplo italiano talvez seja um dos melhores – e também uma das mais sérias advertências sobre as consequências da vitória da contrarrevolução. A Itália, após o fim da Primeira Guerra Mundial, foi palco de grandes conflitos de classe, com movimentações por parte de seus trabalhadores como nunca se havia visto durante toda a história do país. Entre 1919 e 1920, ocorreram 3544 greves na indústria e 397 greves na agricultura; o Partido Socialista (PSI), principal organização do movimento operário, chegou a ter mais de 200 mil membros e os sindicatos, mais de 2 milhões e 300 mil filiados. Entretanto, o mais significativo desse “biênio vermelho”, como ficou conhecido, foi o salto qualitativo na organização dos trabalhadores: uma poderosa organização em comitês de fábrica, capaz de organizar greves massivas e mobilizar milhares de trabalhadores, além de ter sido o instrumento que possibilitou uma medida política muito mais radical, a ocupação das fábricas.
Em agosto de 1920, a Alfa-Romeo de Milão praticou o lockout (quando os patrões fecham os locais de trabalho para impedir a entrada dos trabalhadores) de sua fábrica, ao que os operários responderam com a ocupação. A Confindustria – a confederação de sindicatos patronais italianos – ordenou o fechamento de todas as fábricas na Itália, mas os operários, em resposta, iniciaram um movimento de ocupação que se espalhou por todo o país. Em Turim, os operários se adiantaram e ocuparam as fábricas antes do lockout patronal, sendo que, através da organização via comitês de fábrica, com destaque para o da Fiat, colocaram as fábricas para funcionar por um mês, por conta própria!
Esse era o ponto de não retorno: a propriedade privada capitalista tinha sido atacada no seu cerne e essa medida radical dos operários italianos necessitava de uma direção revolucionária para fazer sua luta avançar até às últimas consequências – isto é, para levar o proletariado até a insurreição armada. Infelizmente, as direções do proletariado, como o PSI, vacilaram e as consequências, como lembra Trotsky no Programa de Transição, não poderiam ser mais nefastas: “Por sua própria iniciativa, os operários italianos apoderaram-se das empresas em 1919-1920, assinalando a seus próprios ‘dirigentes’, assim, que a revolução social havia chegado. Os ‘dirigentes’ não deram ouvidos a esse sinal. O resultado foi a vitória do fascismo”. No próximo tópico, falaremos justamente do resultado oposto, da vitória da revolução.
No caso russo, diferentemente do que se passou na Itália, o proletariado armado se insurgiu e tomou o poder. Em fevereiro de 1917, já não aguentando mais as privações de uma guerra sem sentido e sem perspectiva de terminar, os trabalhadores russos fizeram greves massivas, desatando um movimento revolucionário que instituiu a dualidade de poder no seu nível mais elevado, na forma dos sovietes, ou conselhos operários. Assim, o czarismo foi derrubado e foi colocado em seu lugar um governo provisório.
A partir daquele momento, dois poderes opostos – o poder burguês, representado no governo provisório, e o poder proletário, representado nos sovietes –, passavam a conviver na Rússia, uma situação insustentável no longo prazo. O governo provisório, que surgiu como fruto da Revolução de Fevereiro, não tinha a intenção de aprofundá-la, mas sim estabilizar-se como poder burguês, tarefa que não seria das mais simples dada a situação de poder dual. Em uma situação assim, convém lembrar do que Marx diz em O Capital, de que entre direitos iguais o que decide é a força – bem como a correlação de forças.
Em outubro de 1917 – nove meses após o surgimento do governo provisório, vale destacar –, o proletariado russo, dirigido pelo Partido Bolchevique, tomou o poder e se tornou o senhor da Rússia. Essa demora não é fortuita, pois as ilusões dos trabalhadores com esse governo precisavam ser desmontadas uma a uma. Conforme os meses passavam, o governo provisório mostrava cada vez mais como não era capaz de garantir o fim da guerra e o fim da miséria, ao passo que a penetração e a autoridade do Partido Bolchevique perante as massas e nos sovietes só aumentava, com suas palavras de ordem se mostrando corretas sob a prova de fogo da realidade. Foi só assim que os bolcheviques conseguiram dirigir a insurreição de forma bem-sucedida, quando chegou a hora, bem como foram capazes de organizar a resistência armada contra a reação contrarrevolucionária da burguesia russa e internacional que se seguiu logo à tomada do poder.