Na última série sobre a história da classe trabalhadora, falamos das experiências de luta dos trabalhadores e suas formas organizativas duais de poder, culminando com a tomada do poder na Rússia em 1917. Na série a seguir, olharemos para o sujeito histórico antagônico, o nosso inimigo: a burguesia e as suas diferentes formas de expressão política. Para conter de modo mais violento a luta da classe trabalhadora, a burguesia desenvolveu, ao longo da história, novas formas de dominação política. Falaremos especificamente do fenômeno do bonapartismo.
Mas do que se trata o bonapartismo? Em linhas gerais, um regime bonapartista é aquele no qual um líder político, que parece pairar acima das classes e dos conflitos sociais de sua época – mas que serve aos interesses gerais da burguesia, e não aos da classe trabalhadora –, por meio do fortalecimento do Poder Executivo (e, consequentemente, enfraquecimento do Poder Legislativo), institui um governo ditatorial, amparado nas forças armadas, como resposta à ação independente da classe trabalhadora, para fins de paralisá-la. Nesse processo, a burguesia escolhe um “fim com terror do que um terror sem fim”, como dizia Marx em 18 de brumário de Luís Bonaparte. Ou seja: a burguesia abdica da sua forma preferida de dominar, a democracia burguesa, em prol de combater a organização dos trabalhadores de maneira mais violenta e centralizada.
Marx analisa detalhadamente esse processo e busca chegar em determinações conceituais sobre essa forma de dominação burguesa. O mesmo o faz Trostky, diferenciando o bonapartismo do fascismo, a partir de processos históricos concretos. Nos próximos tópicos, trataremos de exemplos históricos de bonapartismo para elucidar suas características fundamentais e para que o conceito ganhe mais densidade e concretude. Essa discussão não é meramente “histórica”, mas impulsionada pelas necessidades militantes do presente. O surgimento de regimes semi-bonapartistas ou bonapartistas na América Latina é comum nesta região, pelas suas características. Também é comum a desorientação da chamada “esquerda” latino-americana diante desses governos (principalmente quando estes são tingidos de vermelho) e, portanto, a sua capitulação a eles.
O primeiro exemplo de bonapartismo de que vamos tratar é o caso clássico, que dá nome ao fenômeno, o de Luís Bonaparte, cujo golpe de Estado em 1851 foi analisado por Marx no seu “18 de Brumário”. Nessa obra, Marx demonstra como o golpe não foi um raio no céu azul, mas sim antecedido por uma série de conflitos de classes que têm a sua origem nas contradições da Revolução de Fevereiro de 1848. Essa revolução, obra da ação conjunta de setores tanto da burguesia quanto da pequena-burguesia e do próprio proletariado, derrubou o rei Luís Filipe e instituiu a segunda República francesa.
Entretanto, o proletariado, vendo que esse novo governo que ele ajudou a levar ao poder frustrava suas aspirações revolucionárias, se insurgiu em junho de 1848, foi barbaramente reprimido e deixou o proscênio do palco da luta de classes por um longo período. O Parlamento que restou após esse massacre produziu, sistematicamente, sua desmoralização enquanto instituição burguesa, fazendo uso recorrente do estado de sítio – transformando, assim, as Forças Armadas em derradeiras fiadoras da ordem –, expulsando dele próprio os representantes da pequena-burguesia e chegando ao limite de suprimir o direito ao sufrágio universal. Dessa maneira, ele preparara o terreno para que Luís Bonaparte, eleito presidente em dezembro de 1848, desse o golpe de Estado que deu fim à essa experiência republicana. Mas quais eram as forças sociais que davam sustentação a essa figura?
Bonaparte se sustentava em três forças políticas. A primeira era o lumpen-proletariado, a camada mais miserável do proletariado, o qual, uma vez de posse do orçamento do Executivo, Bonaparte foi capaz de subornar para transformá-lo no seu exército gangsterista particular, a Sociedade 10 de Dezembro. O segundo eram as próprias Forças Armadas, que a cada dia mais eram chamadas a resolver, com base na força, as questões decisivas na vida política francesa e, tornados atores políticos de primeira grandeza (e também subornadas por Bonaparte), decidiram livrar a burguesia dos perigos envolvidos no seu próprio governo suprimindo seu parlamento. A terceira eram os camponeses, o grupo social numericamente mais importante naquele momento histórico na França e que, como Marx analisa, eram incapazes de se constituírem como uma classe e organizarem-se em um partido político que defendesse seus interesses de forma independente, necessitando assim de uma figura que lhes surgisse de fora para (supostamente) lhes proteger e dar coesão política – “supostamente” lhes proteger porque, na prática, as políticas de Bonaparte não eram capazes de deter a progressiva ruína dos camponeses. Esses são os três vetores que, com variações a depender da estruturação das classes em cada país, serão a base de sustentação dos vários bonapartismos do século XX. Luís Bonaparte se manteve no poder por 20 anos.
“A realidade não perdoa nenhum erro de doutrina.” (Léon Trotsky)
Tomamos de empréstimo para o título desse episódio o nome de um pequeno trecho de um texto de Trotsky (“Bonapartismo e fascismo”, parte de “Um único caminho”, texto a respeito da situação da Alemanha no fim dos anos 20 e começo dos 30), no qual o revolucionário russo procura distinguir esses dois fenômenos, tarefa que nem a socialdemocracia alemã nem os stalinistas foram capazes de fazer, com a trágica consequência que se seguiu: a vitória do fascismo propriamente dito. A distinção entre bonapartismo e fascismo não era, e não é, uma discussão terminológica acadêmica, mas tem implicações práticas na estratégia a ser adotada pelos revolucionários em momentos de recrudescimento do regime. Trotsky caracteriza os governos que antecederam a ascensão de Hitler ao poder – Brüning e Franz von Papen – como, respectivamente, de semi-bonapartista e bonapartista, ao passo que os stalinistas consideravam que, já com Brüning, o fascismo era um fato consumado, embora denunciassem que a transição para o governo de Von Papen tenha sido possível por meio de um… golpe de Estado fascista! E mais um golpe fascista seria necessário para Hitler tomar o poder. Nas palavras de Trotsky, para os stalinistas, “os acontecimentos que se desenrolam reduzem-se a isso: variedades diferentes do fascismo tomam o poder uma da outra por meio de golpes de Estado ‘fascistas’”.
O ponto a ser destacado aqui é: nem um governo que fechava o parlamento, censurava a imprensa e estava sustentado no aparato policial-militar, como de Von Papen, podia, a rigor, ser chamado de fascista, mas sim de bonapartista. Por quê? Porque há uma diferença qualitativa fundamental no grau de violência empregado contra a classe trabalhadora pelo bonapartismo e pelo fascismo: a vitória do fascismo, significa, muito simplesmente, a guerra civil aberta contra o proletariado, a destruição das organizações operárias – inclusive da socialdemocracia –, o extermínio físico de sua vanguarda. É isso o fascismo: a organização militar, centralizada e hierarquizada, da massa pequeno-burguesa desesperada pela crise econômica, para destruir a organização do proletariado até sua raiz e em todas as suas manifestações. É por isso que Trotsky tinha o cuidado de não chamar de fascista um regime bonapartista, sem prejuízo de reconhecer todos os seus traços autoritários e apontar perspectivas de luta contra ele, até porque não o combater de forma consequente poderia levar, como de fato levou, à ascensão do fascismo propriamente dito. Aquela situação extrema dos anos 20 e 30 da Alemanha exigia a maior clareza conceitual possível sobre a característica do regime a ser combatido. Era literalmente uma questão de vida ou morte.
Compare-se esse rigor com a leviandade com que se usa o termo “fascismo” hoje em dia (às vezes colocando um sufixo “neo”, para amenizar a desfaçatez intelectual do procedimento), para designar qualquer escroque de direita eleito em eleições democrático-burguesas, qualquer liberal, qualquer conservador de qualquer matiz, indistintamente, a depender do humor do acusador. Vale perguntar: será que a recorrência com a qual a esquerda chama a tudo de fascismo não é sintomática de como ela não vê a possibilidade real e concreta do bonapartismo no horizonte, isso quando ela não oferece seu apoio a vários bonapartismos supostamente “de esquerda”? Nos próximos dois episódios, falaremos da América Latina e de seus bonapartismos passados e presentes, em que essa hipótese sobre a esquerda se confirma com triste recorrência.
Falamos do bonapartismo original e do bonapartismo que precedeu o fascismo na Alemanha. No episódio de hoje, voltamos nossas atenções à América Latina, mais especificamente às suas duas maiores economias – Brasil e Argentina – e os regimes bonapartistas que nelas se desenvolveram, encarnados na figura de dois líderes: respectivamente, Getúlio Vargas e Juan Perón. Respeitadas as importantes diferenças entre os processos históricos brasileiro e argentino, podemos ressaltar como aspecto comum desses dois regimes um elemento que não estava dado no século XIX, mas que passa a ser fundamental para a estabilidade dessa espécie de regime no século XX: a formação e manutenção de uma burocracia sindical.
A burocracia sindical é uma casta de trabalhadores mais bem remunerados, sustentada pelo Estado burguês, que não está interessada que as lutas dos trabalhadores atrapalhem a manutenção da sua existência parasitária. Ela nasceu por meio da criação de uma estrutura que vincula política e financeiramente os sindicatos de forma estreita com o Estado burguês, exercendo uma eficácia inaudita em termos de controle da luta dos trabalhadores. Toda movimentação independente da classe, doravante, se depararia com um gigantesco bloqueio ao seu desenvolvimento. Eventuais concessões a algumas das demandas dos trabalhadores – apresentadas não como resultado de suas lutas, mas sim um gesto de generosidade do “pai dos pobres” – não disfarçam o objetivo geral: impedir que a luta dos trabalhadores em defesa de suas condições de vida se desenvolvesse no sentido da luta revolucionária.
Quando os trabalhadores e militantes escapavam do enquadramento burocrático-sindical da parte do Estado ou dos movimentos políticos estruturados em torno da figura do líder bonapartista (como é mais notável no caso do peronismo na Argentina), esses governos não se deixaram de valer de violenta repressão estatal e paraestatal contra essa independência. A título de exemplo, lembremos da figura de Filinto Müller, líder da polícia política do Estado Novo de Getúlio, responsável pela deportação de Olga Benário para os campos de concentração da Alemanha, ou a “Triple A”, a Aliança Anticomunista Argentina, grupo paramilitar da ala de extrema direita do peronismo, criado pelo secretário pessoal de Perón, José Lopéz Rega, responsável por perseguir militantes no governo de Isabelita Perón, logo antes da última ditadura.
Mesmo com o sangue de comunistas nas mãos, não faltam grupos de “esquerda” que reivindicam o legado desses bonapartes – ou que, então, não se distinguem programaticamente do nacionalismo burguês que eles encarnam. Na defesa de Getúlio ou Perón, na defesa envergonhada ou sem pudores de governos do chamado “socialismo do século XXI”, da qual falaremos no próximo e último capítulo, a esquerda mostra que seus limites programáticos a levam, ainda, a cair no colo do bonaparte de turno, quando a conjuntura aperta.
Neste último tópico, falaremos de duas de suas expressões contemporâneas na América Latina, políticos os quais apresentam ou apresentaram, no poder, traços característicos desse fenômeno: Nicolás Maduro, atual presidente da Venezuela e Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, este último derrubado do poder por uma insurreição popular que a “esquerda” praticamente em uníssono chamou de “golpe”. Se bem que os principais vetores de sustentação de cada um sejam diferentes – respectivamente, o exército venezuelano e uma parcela significativa dos movimentos sociais e sindicatos bolivianos –, eles adotaram um modus operandi parecido para sua sustentação no poder, a saber, fraude eleitoral (basta lembrar, por exemplo, da Assembleia Constituinte convocada por Maduro, convocada com o único propósito de tornar o chavismo o único poder de facto na Venezuela, à revelia da Assembleia Nacional eleita dois anos antes que contava com a participação da oposição, e de Evo ignorando a decisão popular que lhe vetava mais uma reeleição) e repressão violenta à oposição.
Por repressão violenta à oposição, não estamos falando particularmente da (existente) repressão à oposição burguesa que não consegue um espaço na administração do Estado. Esta é reprimida em um grau muito menor porque nunca leva o combate aos bonapartes até as últimas consequências, justamente porque também é burguesa e não quer que a situação “fuja do controle”, que o diga Camacho e Añez e demais burgueses atualmente no poder na Bolívia – dada a falta de uma direção revolucionária –, fazendo acordos com o MAS (partido de Evo), que o diga Guaidó e todas as suas vacilações. Falamos, sobretudo, dos trabalhadores e militantes revolucionários que não aceitam o ataque às suas condições de vida e a destruição das suas liberdades democráticas, como os mineiros de Potosí que foram brutalmente reprimidos pelos bandos do MAS quando caminhavam para protestar contra a fraude eleitoral de Evo, como o camarada Rodney Alvaréz da Venezuela, operário e militante sindical classista na empresa Ferrominera do Orinoco, preso injustamente há 8 anos, desde o governo Chávez.
E mesmo com essa repressão à classe trabalhadora, setores da “esquerda” continuam a apoiar esses bonapartismos, também eles ditos de “esquerda”. Esses bonapartismo se sustentam, em grande medida, em políticas assistencialistas dedicadas a diminuir – de maneira muito relativa, frise-se, e não raro fracassando fragorosamente, como o caso da Venezuela demonstra muito bem – o grau de pobreza de suas populações e em uma retórica anti-imperialista que se pretende até mesmo socialista. O caso da Venezuela é particularmente notável em se tratando de como o discurso “socialista” está a léguas da realidade: muito se fala das chamadas “expropriações” que o governo venezuelano realiza, mas a denominação é imprecisa, se tratando, na prática, de nacionalizações para o Estado burguês venezuelano existente. Expropriações propriamente ditas só podem ser feitas quando já há um desenvolvimento da dualidade de poder no país, e os trabalhadores tomam o controle de setores da indústria para fazê-la funcionar nos seus interesses, sem indenizar os burgueses que perderam seus lucros. Essa situação de dualidade de poder está muito longe de acontecer na Venezuela – e justamente porque governos como o de Maduro reprimem a organização da classe até nas suas manifestações menos desenvolvidas (manifestações de rua, sindicatos etc.). A eles, inimigos dos trabalhadores, não importa o que digam de si mesmos, é preciso fazer um combate sem trégua.