Essa é a segunda tese do II Congresso da Transição Socialista. As notas de rodapé se encontram ao final do texto. Acesse a Tese 1 aqui.
por R.P.
Como se sabe, o uso do termo “imperialismo” por parte do stalinismo deu margem a todo tipo de política nacionalista e traidora, sobretudo de apoio a burguesias locais, em suas conspirações contra a classe trabalhadora. É a chamada “teoria do campos”, nefasta ao marxismo. Todavia, não se deve ignorar o fato de que os setores diferentes da burguesia mundial valem-se de seus Estados-nacionais não só para a luta permanente contra a classe trabalhadora (tarefa fundamental), mas também para a conflito contra outros setores do capital em nome do domínio de mercados. O conceito de país – Estado-nação – não pode ser abandonado pelos marxistas, com a desculpa de que é algo empírico, diante do conceito de capital, essencialmente internacional. O capital, como força econômica, é internacional, mas a burguesia é nacional, sempre dependente de seus Estados particulares. Os setores principais da burguesia dominam diferentes espaços nos mercados, e lutam a todo momento para não perder tais espaços e ampliá-los. A burguesia é nacional e jamais deixará de sê-lo enquanto existir – e, enquanto existir, existirá o Estado-nação, forma de aprisionamento e limitação das forças-produtivas [1]. Deixar de considerar esses elementos e secundarizar a análise da geopolítica mundial – ou seja, como se posicionam no globo as potências burguesas econômico-militares – é um erro que enfraquece nosso internacionalismo e nos impede de ver as tarefas claras do presente.
É necessário, como fez toda a tradição marxista, compreender a fundo o que dá base material às diferenças “geopolíticas” mundiais. Desvendar o que está por trás dessas diferenças é tarefa central das organizações da classe trabalhadora, como já apontava Marx na Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional), ao tratar da anexação do Cáucaso pelo Império Russo:
“as vastas e não contestadas usurpações desse poder bárbaro, cuja cabeça está em São Petersburgo e cujos braços estão em todos os Ministérios da Europa, ensinaram às classes operárias o dever de dominarem elas próprias os mistérios da política internacional, de vigiarem os actos diplomáticos dos seus respectivos Governos, de os contra-atacarem, se necessário, por todos os meios ao seu dispor, [o dever de,] quando incapazes de o impedirem, se juntarem em denúncias simultâneas…”. (Grifo nosso).
Também os diversos textos e manifestos de Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo e outros, sobre as guerras imperialistas, têm essa preocupação com um internacionalismo concreto. Não podemos nós, se queremos nos inserir nessa tradição, secundarizar o problema. Devemos somar esforços para ampliar nossa compreensão. A base primeira de um internacionalismo vivo é, em nossa compreensão, uma aplicação internacional do Programa de Transição de Trotsky – ou seja, a aplicação internacional da estratégia revolucionária. Sobre a aplicação correta (ou seja, dialética e revolucionária) desse Programa, já tratamos numa série de outros textos de polêmica com a esquerda, mesmo a “trotskista”. O segundo elemento fundamental, que rege a tática revolucionária, é a compreensão do modo de estruturação das grandes economias do mercado mundial nos últimos 120 anos – compreensão que só é possível entendendo-se o funcionamento da economia capitalista, ou seja, antes de tudo, dominando-se O capital de Marx. Sabemos bem, por experiência, que de nada adianta ter muitas vinculações internacionais se se carece de uma aplicação em escala internacional do Programa e se se carece de uma compreensão da base material real que dá divisão aos principais setores burgueses do planeta. Sem esses dois elementos, o internacionalismo torna-se um internacionalismo abstrato, como aquele tantas vezes criticado por Lenin.
A verdade é que as linhas de força dos conflitos geopolíticos mundiais mudaram ou podem mudar muito pouco há mais de um século. Isso porque a forma com que as grandes economias capitalistas inseriram-se no mercado mundial até o período de ápice do capitalismo (final do século XIX/início do XX) é determinante até hoje. Demos a base para a compreensão disso em nossa tese número 1. A forma de inserção dessas economias no mercado mundial dificilmente pode ser modificada rapidamente, mesmo por grandes acontecimentos, como as guerras e até revoluções localizadas.
Desde que o capitalismo em sua forma moderna, manufatureira (cruzando da Holanda à Inglaterra nos séculos XVII e XVIII) suplantou as formas mercantilistas, ofuscadas pelo metalismo e dependentes das balanças comerciais favoráveis, as forças dos Estados-Nação basearam-se na capacidade de extração de mais-valia de sua própria população trabalhadora (ou seja, na produção de riqueza, e não em sua circulação)[2].
As principais economias são aquelas onde domina uma alta valorização no processo de produção. O que está em discussão, reafirmamos, não é circulação de capital, mas a produção, o valor agregado no processo produtivo. Esta análise, marxista, muito distante das análises que observam apenas a circulação de capital – análises da economia vulgar, burguesa, e do jornalismo derivado dela –, dá-nos dados fundamentais para se pensar a importância de cada país no globo. Os diferentes países combinam-se num processo desigual, onde aqueles que concentram extração de mais-valia relativa estabelecem uma espécie de simbiose (ou mutualismo) com aqueles em que predomina a mais-valia absoluta. Tudo em nome da acumulação global do capital. Essa simbiose, entretanto, não significa que são apenas um gênero, apenas um ser, mas uma unidade contraditória – desigual e combinada.
As principais economias do planeta são aquelas circunscritas aos países do chamado G7: EUA, Alemanha, Japão, Inglaterra, França, Itália e Canadá. Economias secundárias são aquelas cujo processo de trabalho agrega pouco valor, como, por exemplo, os chamados BRICS e outros (como México, Argentina etc.). O que define o caráter prioritário ou secundário de uma economia é a supremacia, nela, de formas de extração de mais-valia relativa ou absoluta, levando-se em consideração o conjunto de sua população. Isso porque a “produtividade” deve considerar o elemento mais importante das forças produtivas: a força de trabalho. Se a força de trabalho não é submetida hegemonicamente por formas de produção de alto valor, se rege ainda a mais-valia absoluta explorando o grosso da população ativa, se grande parte de sua população ainda está no campo (como no caso da China e da Índia), se ainda há base para se reabsorver o Exército Industrial de Reserva por formas pré-capitalistas de produção, então tais economias são pouco produtivas e não dão base a Estados imperialistas. Um Estado-Nação com baixa produtividade (mais-valia absoluta e grande população) necessariamente tem de voltar a maior parte da sua política (baseada na parca gordura/riqueza que absorve do processo de produção) à resolução de seus próprios problemas internos, e não pode se dar ao luxo, portanto, de se impor sobre outras nacionalidades. Em que pese o tamanho de sua produção, ela não resulta na criação de riqueza interna em grau suficiente para dar conta de seus próprios problemas econômicos e sociais.
Assim, por exemplo, diferentemente das análises correntes da grande mídia (plantadas e sobrevalorizadas deliberadamente), aceitas acriticamente por parte da esquerda impressionada, a China não é imperialista, nem a Rússia é imperialista. A China, a rigor, não é uma potência global, mas um país subordinado ao imperialismo dos EUA – agindo na esmagadora maioria das vazes de acordo com a vontade geopolítica deste [3]. É verdade que o PIB da China tem dimensões “chinesas” (US$ 27 trilhões, em estimativa para 2019, enquanto o dos EUA em 2018 foi de quase US$ 21 trilhões), mas isso diz pouca coisa ou nada. O fundamental para se compreender a potência (imperialista) de um país é a sua produtividade, a sua capacidade de gerar mais-valor tendo em vista o conjunto de sua população, e, por fim, a sua capacidade de concorrer no mercado mundial [4]. Trotsky já nos esclarecia isso contra as falsificações produzidas pelos stalinistas, que enganavam sua população operária afirmando que em breve a URSS se tornaria a grande potência da Europa [5]. Como dizia Trotsky:
“Quando nos dizem que a URSS ocupará, em 1936, o primeiro lugar na Europa quanto à produção industrial, despreza-se não só a qualidade e o preço de custo, mas ainda o número da população. Ora, o nível de desenvolvimento geral do país e, mais particularmente, a condição material das massas não podem ser determinadas, a não ser em traços gerais, senão dividindo a produção pelo número de consumidores”.[6]
Trotsky está justamente argumentando que o fundamental não é o tamanho absoluto do PIB, mas a sua divisão pelo número de habitantes, ou seja, o chamado PIB per capita. Assim, embora o PIB da China possa até se tornar neste ano de 2019 maior que o dos EUA, a sua colocação em produtividade (PIB per capita) é lastimável (79º lugar, atrás da Rússia e do Brasil). Os EUA, com uma população nem um pouco desprezível (320 milhões de habitantes, a terceira maior do mundo), ostentam o décimo lugar em produtividade (PIB per capita). Imaginem o que isso significa em massa de mais-valia criada!
Dado que a China é hoje o maior motivo de deformações na análise, sigamos falando dela, com exemplos, para evidenciar o problema de fundo. Como se sabe, a China exporta produtos da Apple, mas cabe perguntar: onde foram produzidos seus componentes? Ao olhar um aparelho da Apple, pode-se ler em seu verso: “designed by Apple in California, assembled in China”. O papel da China, no processo, é apenas de montagem do produto, cujos componentes vêm de diversas regiões. Vejamos o exemplo de um Ipod:
“É mostrado no estudo que, em 2005, o preço de mercado (varejo) do iPod era de $ 299 dólares e o preço de produção (atacado) era de $ 224 dólares. O componente mais caro era o hard drive, produzido (não montado!) pela Toshiba japonesa e custava $73 dólares. Os outros componentes mais custosos eram o módulo de display ($20); o chip processador de vídeo/multimídia ($8) e o controller chip ($5). Os pesquisadores estimaram que a montagem final, feita na China, custou apenas $4 dólares por unidade.”[7]
O que caracteriza uma economia como a chinesa é importar o máximo que puder de capital constante – matérias-primas, máquinas, equipamentos, peças e insumos intermediários – para em seguida exportar o produto, depois de montado, ao mercado mundial. Grande parte do valor adicionado contabilizado nas mercadorias exportadas pela China, na verdade, não é produzido na própria China. Isso não pode ser percebido se se notar apenas a contabilização do comércio exterior. A China vive, portanto, do superávit comercial, ou seja, de exportar um valor acima do que importa. Mas esse superávit é, necessariamente, de pequena margem, pois o valor que agrega no processo produtivo é pequeno. Trata-se, na economia chinesa, de uma forma de mercantilismo anacrônico [8]. É claro que China quer usar essa pequena margem para industrializar o país, busca fazê-lo e o seu suposto “capitalismo de Estado” (ou suposto “socialismo de mercado”) tem por fim conduzir a esse processo. Todavia, se ela conseguirá ou não – dados os riscos de crise interna e internacional – é outra questão. O certo é que ela ainda está muito longe de se equiparar às nações imperialistas [9].
Tais dados nos parecem fundamentais para se pensar no problema do imperialismo. Deve-se pensar, antes de tudo na produtividade interna de um país, na comparação com demais, e não no processo de circulação do capital ou em seus aspectos externos formais. Por exemplo, outro erro comum advém da transposição mecânica das caracterizações do período do imperialismo realizadas por Bukharin. Neste, a noção de imperialismo aparece vinculada demais à conformação de monopólios internos a um pais (suposto fim da concorrência interna) e à fusão desses monopólios com o Estado-nação específico (formação, em maior ou menor grau, de um “Capitalismo de Estado”). Ora, com base nesses traços (constrição da concorrência e fusão com o Estado)[10], poderíamos sim dizer, contrariando todo o apresentado acima, que tanto a China quanto a Rússia são imperialistas (e que, por exemplo, a Inglaterra e a França não o são). Na verdade, isso seria mero formalismo. Entre o formalismo e a análise marxista, cremos ser necessário escolher a segunda.
Basta ver, por exemplo, as análises de Marx sobre a guerra da Crimeia, em 1853, bem como as análises de Marx sobre a guerra franco-prussiana. Muita coisa já estava contida aí. Vejamos.
Marx analisa a guerra da Crimeia, por meio da qual a Rússia (contra Inglaterra e França) buscava aumentar seu domínio no Mar Negro, anexando a península da Crimeia (em disputa com a Ucrânia), bem como buscava estabelecer um domínio sobre parte do Oriente Médio (sobretudo da Turquia, por meio da desagregação do Império Otomano), visando a controlar os estreitos de Bósforo e Dardanelos (os dois estreitos que, na região da Turquia, permitem o acesso do Mar Negro ao Mar Mediterrâneo). Ao mesmo tempo, a Russia buscava estabelecer seu domínio sobre os países bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia) e mantinha uma posição opressora sobre parte da Polônia. Marx e Engels acompanham atentamente a guerra – e mesmo chegam a saudá-la, em carta, como um elemento que quebrava a calmaria e a pasmaceira capitalista. Marx e Engels escrevem centenas de artigos – mais de duzentos! – à New York Tribune norte-americana, analisando a geopolítica europeia, o papel das grandes potências nela, etc. Todavia, tanto as potências “ocidentais” quanto a tzarista não queriam ampliar o conflito, que se circunscreveu à península da Crimeia. A Rússia, como se podia perceber desde então, só podia se mover graças à paralisia e indecisão das demais potências, temerosas por criar uma instabilidade política muito grande no conjunto continente. Temiam já, sobretudo, o operariado. [11]
Todavia, faltavam elementos fundamentais nessa geopolítica de então: a Alemanha, os EUA e o Japão. A primeira potência estava ainda dividida em províncias. Será apenas na esteira do estouro da crise de 1857 que se dará o processo de a unificação da Alemanha, conduzido pela potência do governo prussiano, sob as rédeas de Otto von Bismarck. A segunda potência, os EUA, estava ainda prenhe da guerra civil interna, a guerra de secessão que também virá na esteira do estouro da crise de 1857. Tal guerra, como se sabe, inicia-se com a secessão (separação) dos Estados confederados, do Sul, escravistas (pouco industrializados), em relação aos estados do norte, industrializados. A guerra terminará com a vitória dos estados do norte e a abolição da escravidão nos EUA. Notamos esses dois elementos – Alemanha e EUA – porque, em ambos os casos, ocorre um processo de centralização política que dá base ao desenvolvimento de poderosas economias, com indústrias de ponta, que agregam alto valor no processo produtivo.[12] Dá-se, junto com a primeira crise econômica com dimensão mundial, a inserção definitiva das economias dos EUA e da Alemanha no mercado mundial, como potências, que aos poucos ultrapassam Inglaterra e França, países que, por mais industrializados que fossem, ainda mantinham suas economias com base em certas formas de mercantilismo, ou seja, de controle das próprias redes de comércio e dependência extrema deste. Tal ultrapassagem da Alemanha e EUA, no quesito industrial (que se torna o mais importante, deslocando o relativo mercantilismo), consolidou-se já na virada do século XIX para o XX.
Um pouco atrás no avanço econômico, calado, do outro lado do mundo, depois de muito tempo fechado ao Ocidente, começou a desenvolver-se, por meio da centralização e domínio do pacífico, outra potência: o Japão, que logo estaria em condições – alta mobilidade e técnica, sobretudo marítima – de derrotar o exército russo na Coreia e na Manchúria, em 1904 e 1905.[13]
No continente europeu, sobretudo, a necessidade de ampliação das forças produtivas, estancada pelos Estados nacionais, colocou pela primeira vez (ainda que de forma embrionária), na segunda metade do século XIX, o problema da chamada “questão alemã”. A Alemanha, passando por incrível industrialização após sua unificação, em pouco tempo ultrapassou a França em capacidade produtiva e, para ampliar ainda mais tal capacidade, intentava expandir-se para regiões a oeste e a leste, buscando tornar-se a força principal e inconteste no continente europeu. Isso, é claro, levaria necessariamente ao conflito da burguesia alemã com a inglesa, que, com sua indústria, dominava, ainda que externamente, o continente. A Inglaterra era a principal potência mundial até o fim do século XIX; tinha a França quase como uma correia de transmissão de seus interesses no continente e, ao mesmo tempo, no além mar, já buscava manobrar os EUA contra a Alemanha.[14]
As forças produtivas crescentes da Alemanha pressionavam ao mesmo tempo contra a França e contra a Rússia, as duas grandes potências ao redor dos teutônicos. É nessa situação que estoura a guerra Franco-prussiana, por meio da tentativa de anexação da região da Alsácia-Lorena (atuais Alto-Reno, Baixo-Reno e Mosela). A guerra, como se sabe, terminou com a vitória da Alemanha e as anexações.[15] Já nessa época, Marx, à frente da I Internacional, apontava que a política canalha da Alemanha, na medida em que não resolveria nenhuma contradição capitalista, necessariamente recolocaria os mesmos problemas em outro patamar no futuro. No “Segundo Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores Sobre a Guerra Franco-prussiana”, Marx era profético e anunciava um conflito mundial futuro, com as mesmas divisões geopolíticas que dariam base à guerra de 1914:
“Se a sorte das armas, a arrogância da vitória e as intrigas dinásticas levam a Alemanha a uma espoliação do território francês, diante dela só se abrirão dois caminhos: ou converter-se a todo custo em um instrumento aberto da expansão russa, ou, após breve trégua, preparar-se para outra guerra ‘defensiva’, não uma dessas guerras ‘localizadas’ de novo estilo, mas uma guerra de raças, uma guerra contra as raças latinas e eslavas coligadas.”[16]
Marx foi profético pois a guerra seguinte, não “localizada”, planetária, iniciou-se com a aliança das raças latinas e eslavas contra os germânicos: França e Rússia contra a Alemanha. A primeira-guerra mundial, como previra Marx, apenas expressou o problema da questão alemã num novo patamar.
Curiosamente, a Rússia – e sobretudo o liberal Miliukov, como relembra muitas vezes Trotsky na História da Rev. Russa e em sua autobiografia – continuava aficionada com o domínio dos estreitos de Bósforo e Dardanelos (note-se que o império turco-otomano, na Primeira Guerra, por receio da Rússia, era aliado da Alemanha), bem como continuava aficionada com seu crescimento sobre regiões da Ucrânia, a anexação dos países bálticos e o conflito sobre a Polônia.
A derrota da Alemanha e Áustria na Primeira Guerra, graças à aliança da França, Inglaterra e Rússia (mais Itália), produziu ao mesmo tempo a paralisia (embora não a destruição) da produção industrial alemã e a total ascensão dos EUA, do outro lado do pacífico, como potência econômica e militar dominante. Vejamos uma descrição desse processo feita por Trotsky, numa longa citação:
“O Século XIX foi a era da hegemonia indiscutida da potência imperialista mais antiga, a Grã-Bretanha. Entre 1815 e 1914 reinou, ainda que não sem explosões militares isoladas, a ‘paz britânica’. A frota britânica, a mais poderosa do mundo, jogou o papel de polícia dos mares. Esta era, no entanto, é coisa do passado. Já no final do século passado, a Alemanha, armada como uma moderna tecnologia, começou a avançar para o primeiro lugar na Europa. Além do oceano, surgiu um país ainda mais poderoso, uma antiga colônia britânica. A contradição econômica mais importante que levou à guerra de 1914–1918 foi a rivalidade entre Grã-Bretanha e Alemanha. Quanto aos EUA, sua participação na guerra foi preventiva; não se podia permitir que a Alemanha submetesse o continente europeu. A derrota levou a Alemanha à impotência total. Desmembrada, rodeada de inimigos, em bancarrota pelas indenizações, debilitada pelas convulsões da guerra civil, parecia haver ficado fora de circulação por muito tempo, senão para sempre. No continente europeu, o primeiro violino voltou temporariamente às mãos da França. O balanço da vitoriosa da Inglaterra depois da guerra resultou, em última instância, deficitário: independência crescente de seus domínios, movimentos coloniais em favor da libertação, perda da hegemonia naval, diminuição da importância de sua armada pelo grande desenvolvimento da aviação.
Por inércia a Inglaterra, todavia, intentou jogar um papel dirigente na cena mundial durante os primeiros anos que seguiram à vitória. Seus conflitos com os EUA começaram a tornar-se obviamente ameaçadores. Parecia que a próxima guerra estouraria entre os dois aspirantes anglo-saxões à dominação do mundo. No entanto, a Inglaterra logo teve que convencer-se de que sua força econômica era insuficiente para competir com o colosso de além oceano. Seu acordo com os EUA sobre a igualdade naval significou sua renúncia formal à hegemonia naval que na atualidade já havia perdido. Sua volta do livre comércio para as tarifas aduaneiras foi a admissão franca da derrota da indústria britânica no mercado mundial. Sua renúncia à política de ‘esplêndido isolamento’ trouxe como consequência a introdução do serviço militar obrigatório. Assim viraram fumaça todas as sagradas tradições.” [17]
Os EUA entraram na primeira-guerra apenas preventivamente. A vitória da Alemanha criaria uma potência industrial e militar capaz de lhe equiparar. Mas, logicamente, a derrota da Alemanha conduziria à supremacia mundial dos EUA, como apontou Trotsky: ao controle dos mares e das finanças mundiais pelos EUA [18]. A Inglaterra manteve seu controle sobre o continente, mas agora, na verdade, como agente direto do EUA, seu credor. Os EUA instrumentalizavam a Inglaterra, que instrumentalizava a França, contra a Alemanha. Com o Tratado de Versalhes – ou seja, simbolicamente em território francês –, a França seria alçada (simbolicamente, é claro) ao papel de controlador do continente; ao papel de contendor da Alemanha.
Todavia, a mera desagregação da Alemanha poderia ser um grande risco ao capital, pois abriria a possibilidade de ações revolucionárias do proletariado alemão como consequência da pesada derrota. Não à toa, o período entre 1918 (já na época do tratado de Brest-Litovsk) e 1923 é marcado por grandes possibilidades revolucionárias, que conduzem (para paralisar essas mesmas possibilidades) ao governo dos social-democratas alemães (SPD). Dá-se ao mesmo tempo uma série de empréstimos para a reconstrução da indústria alemã, que novamente mostra-se muito mais dinâmica e potente do que a francesa e a inglesa. Novamente sintetiza Trotsky:
“A França demonstrou ser muito mais débil do que acreditavam tanto seus amigos como seus inimigos. Ao buscar proteção se converteu, em essência, no último dos domínios conquistados pela Grã-Bretanha. A regeneração da Alemanha, em base à sua tecnologia de primeira ordem e sua capacidade organizativa, era inevitável. Ocorreu antes do que se pensava, em grande medida, graças ao apoio da Inglaterra à Alemanha contra a URSS, das pretensões excessivas da França e, mais indiretamente, dos EUA. A Inglaterra, mais de uma vez, teve êxito nessas manobras internacionais no passado, enquanto era a potência mais forte. Em sua senilidade, demonstrou-se incapaz de dominar os espíritos que ela mesma evocou. (…) A armada com uma tecnologia mais moderna, mais flexível e de maior capacidade produtiva, a Alemanha começou outra vez a competir com a Inglaterra em mercados muito importantes (…).” [19]
O Tratado de Versalhes não destruiu a economia alemã, e a mera injeção de capital nesta operou para seu difícil reerguimento. O resto da história é sabido: Alemanha se equipara às demais potências, sobretudo após a crise de 1929, e novamente se prepara para uma guerra pelo controle da Europa – die deutsche Frage é novamente reerguida à luz do dia, agora num patamar superior. É a Segunda Guerra mundial. A aliança da Alemanha com o Japão torna-se um perigo de vida ou morte para os EUA, sobretudo dadas as limitações internas – leia-se, luta de classes – nos próprios EUA. Diz também sobre isso Trotsky:
“No entanto, a força industrial, financeira e militar dos EUA, a potência capitalista mais avançada do mundo, não assegura, em absoluto, o florescimento da economia norte-americana. Pelo contrário, volta, especialmente maligna e convulsiva, a crise que afeta seu sistema social. (…) A possível vitória da Alemanha sobre os aliados pende sobre Washington como um pesadelo. Com o continente europeu e os recursos de suas colônias como base, com todas as fábricas de munições e estaleiros europeus à sua disposição, a Alemanha (especialmente se está aliada ao Japão no Oriente) constituiria um perigo mortal para o imperialismo norte-americano.” [20]
5. A Segunda Guerra Mundial e depois
A Segunda Guerra Mundial seria uma mera continuidade da primeira? É difícil saber, mas houve, na primeira, em grande medida, uma trégua, e a segunda começou de onde a anterior parou. Ela foi desatada por Hitler – que soube muito bem manobrar com todas as potências, sobretudo com a URSS, para ganhar tempo e preparar sua indústria de guerra – a partir da invasão da Polônia em 1939. Essa invasão só foi possível graças ao Pacto Molotov-Ribbentrop, estabelecido entre a Alemanha e a URSS às vésperas do estouro da guerra. O pacto era, supostamente, de não agressão por dez anos. Nele, que é uma das mais vergonhosas traições ao proletariado mundial por parte da burocracia reacionária da URSS, a Polônia seria divida ao meio, uma parte ficaria para a Alemanha e outra para a URSS, que de quebra também anexaria parte da Ucrânia (entre elas a Crimeia, claro) e os pequenos países bálticos (Letônia, Lituânia e Estônia). Note-se também que, apesar de ter assinado a convenção de Montreux em 1936, que tratava da regularização da passagem pelos estreitos de Dardanelos e Bósforo, a URSS agora erguia a voz e pretendia rever esse tratado. Stalin, em 1939, propôs um controle “turco-soviético” desses estreitos, sem sucesso. Após o Pacto Molotov-Ribbentrop, a URSS anunciou aos demais membros da Convenção de Montreux que tomaria o controle dos estreitos e estabeleceria neles suas bases militares. A ruptura do Pacto Molotov-Ribbentrop (que se propunha a durar dez anos, mas não durou nem dois), por parte da Alemanha, e subsequente início das agressões desta contra a URSS, fez com que os soviéticos deixassem de lado, por um momento, a proposta de controle dos estreitos. Somente com o final da guerra Moscou voltou a exigir a revisão do tratado de 1936, e iniciou uma política de aumento de tensão na região, com navios de guerra próximos aos estreitos, impedindo a passagem das demais potências militares. Isso fez com que a Turquia se posicionasse com as potências ocidentais e adentrasse a então recém-criada OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), ou seja, se submetesse ao militarismo norte-americano, para ter segurança. Percebe-se que a burocracia soviética stalinista, sem qualquer política proletária internacionalista, agia nos conflitos da Crimeia, países bálticos, Polônia e Turquia exatamente como antes agiram os tsares russos.
Retornemos à guerra. Como se sabe, Hitler esperava rapidamente – blitzkrieg – impor sérias derrotas a boa parte dos países do continente, inclusive à França, e ainda derrotar os soviéticos, acabando de vez com o risco do comunismo no continente. Parte dos planos ia bem. A blitzkrieg realizara rapidamente o controle da maioria dos pequenos países do centro europeu, da Escandinávia e da própria França. Mas, novamente, a antiga aliança entre Inglaterra, França e Rússia (agora, sabe-se, sob nome de URSS, mas com uma política não proletária), secundada pelos EUA, foi vitoriosa contra a Alemanha, Japão e Itália. A leste, Hitler parou às portas de Stalingrado em 1942/43, devido à heróica resistência que a classe operária russa impôs-lhe – apesar da burocracia inábil e inepta de Moscou, que realizou manobras estúpidas em seus acordos políticos e em suas aventuras com Exército Vermelho. Mais de 28 milhões de soviéticos morreram nessa dura resistência, que era também, em certo sentido, apesar de todas as contradições e apesar da burocracia de Moscou, a defesa das relações de produção soviéticas, conquistadas em 1917. A URSS foi a potência que, de longe, mais teve baixas, devido à incompetência militar da burocracia (em segundo lugar vieram os chineses, facilmente massacrados, de forma bárbara, em dezenas de milhões, pelos japoneses). A oeste, Hitler parou nos limites do continente, no canal da mancha. No dia 6 de junho de 1944, o chamado “dia D”, tropas aliadas, dirigidas pela Inglaterra, mas num plano estabelecido pelos norte-americanos, e com supremacia militar norte-americana, em grande massa, desembarcam na Normandia, norte da França, de onde travaram uma violenta batalha contra a Alemanha, quebrando a chamada “Muralha do Atlântico”, estabelecida pelos alemães, e dando um golpe decisivo na Alemanha.
A famosa Conferência de Yalta, também conhecida como Conferência da Crimeia, realizada entre Inglaterra, EUA e URSS (Churchill, Roosevelt e Stalin), deu início às discussões sobre a repartição dos Estados nacionais então anexados na guerra (sobretudo pela URSS, no caso a Polônia e os países bálticos) e, ao mesmo tempo, sobre as formas de paralisar a economia alemã e impedir a ascensão do proletariado alemão no imediato pós-guerra. Paralisar a economia alemã e paralisar o ascenso do proletariado era o interesse comum dos capitalistas e da burocracia de Moscou. Procedeu-se para isso tanto na Conferência de Yalta (fevereiro de 1945) quando na de Potsdam (agosto de 1945, agora com Truman no lugar de Roosevelt). Nesta última conferência, inclusive, havia entre suas cláusulas uma proposição pela “pastorização da Alemanha”: “(…) 13. Na organização da economia alemã, deverá dar-se ênfase imediatamente ao desenvolvimento da agricultura e da indústria doméstica pacíficas. (…)”.[21] Buscava-se quebrar a grande indústria alemã. Tal proposição acabou caindo, por pressão dos soviéticos, mas também por receio de que isso inviabilizasse a recuperação do conjunto do continente europeu no pós-guerra. O que interessava aos EUA era a submissão ou centralização da indústria alemã, sobretudo por mecanismos financeiros, e não sua destruição.
A Alemanha foi dividia em quatro zonas de influência, cada uma sob controle de uma potência (EUA, Inglaterra, França e URSS), bem como ocorreu com Berlim. O mesmo ocorreu com a Áustria. A indústria alemã foi dividida e a classe operária alemã ficou fragmentada. A dominação estadunidense sobre o “Ocidente” (França e Inglaterra), se já era clara, tornou-se inquestionável, tanto do ponto de vista econômico (produtivo e creditício) quanto militar. Agora a aliança dita “ocidental” dirigiria também a burguesia alemã – ou ao menos parte da que restara, na divisão com os soviéticos. Para isso, os EUA estabeleceram bases militares nos principais países da Europa, sendo a maior no coração de Berlim. Elas não significavam apenas uma ameaça à URSS, mas também à Alemanha, cuja recuperação industrial deveria ser reiniciada sob controle dos EUA. Ao mesmo tempo – pouco antes –, os EUA lançaram suas duas bombas nucleares contra o Japão, que já estava derrotado. Era uma forma de estabelecer a absoluta supremacia norte-americana no pacífico e humilhar os japoneses, buscando fazer com que não se reerguessem mais; com que não enveredassem novamente no seu forte militarismo pelo pacífico. Assim como fizera no coração de Berlim, os EUA estabeleceram fortes bases militares na nascente Coreia do Sul. Elas não visavam apenas à China ou à Coreia do Norte, “comunistas”, mas também ao Japão. Mundialmente, os EUA passaram a ter uma política dúplice: ao mesmo tempo parar os “comunistas” e submeter as economias de ponta da Alemanha e do Japão. Talvez até o primeiro objetivo fosse mais fácil do que o segundo, graças ao apoio das burocracias stalinistas. O tratado de criação da OTAN, em 1949, selou esse pacto geral das “nações ocidentais” – a começar pelos EUA, Inglaterra e França –, que visava a proteger-se dos comunistas e, ao mesmo tempo (deve-se frisar isso sempre), de uma política independente da Alemanha e do Japão. Como dissera o primeiro secretário-geral da OTAN, Lord Ismay, em 1949, o objetivo desse órgão seria “to keep the Russians out, the Americans in, and the Germans down”. A Alemanha, a partir de 1955, foi admitida na OTAN (o Japão não, talvez por não ter sido encontrado um mecanismo claro de divisão e controle desse país). Todavia, a OTAN tinha (e tem até hoje) um núcleo duro político-econômico, que de fato a controla: o Conselho de Segurança da ONU, formado por EUA, Inglaterra, França, Rússia e China. Frise-se: essa é até hoje a verdadeira e mais estável aliança da geopolítica dos EUA, dita “ocidental” (que compreende a China!). Nem Alemanha nem Japão fazem parte do CS da ONU. Inglaterra, França e Rússia fazem parte para atuar contra a Alemanha; China faz parte para atuar contra o Japão.
Enfim, no final da década de 1940 abriu-se o longo período da chamada “Guerra Fria”, em que a OTAN construiu-se como escudo contra os soviéticos, sem nunca, todavia, abandonar seu papel de impedir o militarismo alemão e japonês. Ora, não fora o ímpeto da burocracia de Moscou que despertara as forças que levaram à segunda-guerra, mas o ímpeto da concorrência entre capitalistas, sobretudo entre EUA e Alemanha (e potências associadas), limitadas pelas contradições mundiais do capital. A burocracia de Moscou não tinha necessariamente um ímpeto expansionista, devido à base material de sua produção, e visava antes de tudo a equilibrar-se e manter-se. Num período de controle absoluto da política e da economia do Ocidente pelos EUA – a chamada Pax Americana, em certa referência às outras “pazes” imperialistas na história ocidental [22] –, a burocracia de Moscou ficou paralisada e sucumbiu dentro de suas próprias contradições e diversas crises, por décadas [23]. O primeiro elemento que quebrou a URSS foi seu próprio regime de propriedade coletiva, em contradição com seu regime social, de apropriação por uma casta particular, isolada da base comunal. O segundo elemento foi a não existência de concorrência imperialista entre as nações capitalistas, ou seja, paradoxalmente, a própria paz imperialista.
Durante esse período de paz, como se sabe, a divisão da Alemanha em quatro partes cessou. Em 1949 formou-se, de um lado, a República Federal da Alemanha (RFA), a partir da unificação das regiões sob controle da França, Inglaterra e EUA; de outro lado, formou-se a República Democrática da Alemanha (RDA), a zona sob controle soviético. Ou, facilmente, Alemanha ocidental e Alemanha oriental. Já em 1946, um ano após o fim da guerra, os EUA preocupavam-se com a realização da unificação alemã, e por isso ajudaram a criar um órgão administrativo central capaz de cuidar da indústria e do comércio exterior – sobretudo de carvão e aço, abundantes na Ruhrgebiet –, visando a atender às necessidades dos países libertados e funcionar como alavanca da recuperação europeia como um todo [24]. Dá-se então em seguida o famoso plano Marshall, oficialmente chamado Plano de Recuperação Europeia, em que os EUA emprestou bilhões a vários países – a começar pela Alemanha, destino das maiores somas – para a recuperação europeia. Em seguida, vários outros tratados de estabilização monetária e unificação – como a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (embrião do Mercado Comum Europeu). Em 1955, como falamos, dá-se a incorporação da Rep. Federal da Alemanha à OTAN, em nome do que a Alemanha abdicou de todas as suas pretensões militaristas (ou assim pareceu). Sobre essa base, de uma total submissão financeira e militar da Alemanha (RFA) aos EUA, pôde-se criar finalmente o Mercado Comum Europeu, a União Europeia e o Euro, que ampliaram-se ainda mais com o fim da URSS e a reunificação alemã. Isso deu um gigantesco impulso econômico aos EUA, que durou até boa parte da segunda metade do século XX. E o fim da URSS, vale notar, levou efetivamente à perda, por parte da Rússia, dos países bálticos e da Crimeia (para a Ucrânia, novamente).
7. Do fim da URSS e da reintegração da Alemanha aos dias de hoje
A chave da existência unitária desse bloco europeu (União Europeia) não é uma integração real de suas economias, não é uma articulação plena de suas cadeias produtivas, mas elementos relativamente externos, exógenos: a submissão financeira e militar aos EUA. Ou seja: a unidade da UE é e sempre foi totalmente artificial, pronta para estourar a qualquer momento, caso a dura tutela dos EUA relaxe.
É isso que tem ocorrido hoje, após a crise de 2007/2008. Sua dimensão foi tão grande, criou tamanhas contradições em todo o mundo, inclusive no coração do sistema – os próprios EUA –, que este se vê agora obrigado a secundarizar relativamente alguns elementos de controle direto sobre a política e economia mundial. Os EUA, como todo setor burguês, estão preocupados antes de tudo com o estouro da crise social dentro de sua própria economia, ou seja, com o possível (e gigantesco) estouro da luta de classes em seu próprio país. O primeiro elemento que determina a política das burguesias nacionais, seja ela a do mais forte e rico país do mundo, é a luta de classes com sua própria classe trabalhadora. Os EUA não estão mais em plenas condições de manter toda a sua estrutura de controle sobre as demais principais economias mundiais – sobretudo Alemanha e Japão –, justamente porque têm de manter antes de tudo o controle sobre suas contradições internas. America first! Os EUA agora procuram acordos geopolíticos para paralisar Alemanha e Japão sem que tenham de aumentar diretamente (belicamente) sua intervenção. Todos os problemas históricos e não resolvidos – desde aqueles analisados por Marx na guerra da Crimeia ou na Guerra Franco-prussiana – retornam, inclusive a questão alemã.
Incapaz de paralisar totalmente a pujança da economia alemã, que na prática – sobretudo após o fim da URSS – tomou a UE para si, os EUA reativam seus bons e velhos antigos parceiros geopolíticos. Em time que está ganhando não se mexe, pensam. Novamente, Inglaterra é a ponta de lança, tentando puxar para seu lado a França, ambas pressionando a Alemanha pelo lado esquerdo. Do outro lado, do lado direito do mapa, a Rússia aparece como aliado chave dos EUA. Do outro lado do pacífico, a China – um parceiro mais novo, de cerca de 60 anos, desde o tempo da burocracia soviética – é peça-chave.
É por tudo isso que a Inglaterra saiu da União Europeia – pois tal unificação significa hoje a necessária submissão política e econômica à Alemanha, que com sua produção industrial regula todo o mercado europeu. A Inglaterra, que nunca foi boba, não entrou no mercado comum do Euro pois sempre soube que essa moeda era apenas uma forma mascarada do marco alemão. Isso porque quem regularia a moeda comum seria necessariamente a indústria de ponta do continente europeu, a indústria alemã. A unificação monetária com o continente significaria a aceleração da destruição da economia e indústria inglesas. A Inglaterra sempre manteve um pé dentro e outro fora da UE – um para o continente europeu, o outro para o americano. No primeiro desdobramento da crise, botou os dois para fora, indo para baixo das asas de Trump. A primeira coisa que a Primeira Ministra da Inglaterra, Theresa May, fez, após o referendo do Brexit, foi viajar aos EUA e elogiar o recém-eleito presidente. Agora a Inglaterra salta para cima da França (como sempre fez), realizando encontros e discussões visando a quebrar a UE (paralisar a Alemanha). Por outro lado, ciente de que quem não tem exército não joga nada no tabuleiro da geopolítica imperialista, a UE, a serviço da Alemanha, inicia discussões sobre a criação de um exército europeu. Um relatório secreto, vazado pouco antes da votação do Brexit, e que influenciou diretamente neste, deixava claras as intenções militares do bloco. Na voz de Federica Mogherini, a chefe da política externa do bloco, e agente de Berlim:
“Precisamos de uma Europa mais forte. Nossos cidadãos merecem e é o que o mundo espera. Nossa época se encaminha para uma crise existencial, tanto no interior quanto no exterior. Nossa União está ameaçada. Nosso projeto europeu está sendo questionado. (…) Neste mundo difícil, mais conectado, concorrencial e complexo, agiremos de acordo com nossos interesses, nossos princípios e nossas prioridades repartidas. (…) É do interesse dos nossos cidadãos investir na capacidade de sobrevivência dos Estados e das sociedades a leste, até a Ásia central, e ao sul, até a África central. No quadro do alargamento atual da UE, um processo de adesão confiável baseado em condicionalidades rigorosas e equitativas é vital para restabelecer a resistência dos países dos Balcãs e da Turquia. (…) A UE encorajará sistematicamente a cooperação em matéria de defesa e se esforçará pela criação de uma sólida indústria europeia da defesa, a qual é essencial para garantir a autonomia de decisão e de ação da Europa. (…) Esta estratégia se baseia na concepção e na ambição de uma União mais forte, dispondo da vontade e da capacidade de provocar mudanças positivas no mundo. Nossos cidadãos merecem uma verdadeira União, que faça valer nossos interesses (…) Cabe a nos, neste momento, traduzir tudo isso em ação.” [25]
Uma “união mais forte” é necessariamente a maior submissão política e econômica de todos à Alemanha. Se não for uma integração total, não funcionará. A questão alemã voltou com toda a sua potência, e terá como ponto inicial a “criação de sólida indústria europeia da defesa”. É por isso que boa parte dos países europeus, submetidos à Alemanha, dão de ombros aos gritos e protestos de Donald Trump, para que estes países aumentem a porcentagem de seus PIBs destinados à OTAN. Trump protestou, reclamou que tais países investem muito pouco, e estes fizeram cena, prometendo um aumento pífio dentro de uma década. Isso é porque seus planos são outros. Mas serão realizados? O que vem antes, o exército europeu o fim da UE?
Outra forma de que os EUA se valem para paralisar a Alemanha, como falamos, é a Rússia. Pressão a leste e a oeste, como sempre. Os EUA só podem diminuir sua presença bélica sobre a Europa se a Rússia lhe garantir que atuará com a mesma pressão e, também, pela diluição do bloco, como a Inglaterra. É claro, a Rússia tem seus velhos interesses para fazer isso. A história mostra que a Rússia é um caso único, extravagante, de potência política mundial sem economia de ponta. O segredo da Rússia não é apenas o potente militarismo de sempre (o segundo maior do planeta, após o dos EUA, todavia muito menor do que este e menor do que o da OTAN). O segredo da geopolítica russa não é idiossincrasia, não é algo seu, mas externo. Seu segredo é sobretudo a paralisia e impotência da Alemanha. Desde o século XIX, a Rússia avança onde a Alemanha ou demais potências param, nos espaços deixados abertos por elas. A Rússia está se aproveitando da paralisia militar forçada alemã – imposta pela OTAN – para realimentar seus delírios seculares. Isso faz parte do acordo com os EUA, pois os avanços russos são também avanços contra a UE, contra a Alemanha. Foi assim na recente Guerra da Ucrânia, em que o antigo secretário de Estado dos EUA, John Kerry, e o Primeiro Ministro russo, Sergei Lavrov, reuniram-se uma série de vezes, buscando não ampliar o conflito. A Rússia anexou a Crimeia, controlando militarmente sua principal cidade, Sebastopol, e cimentou novamente seu controle sobre o Mar Negro. Uma série de acordos foi estabelecida, dando momentâneo fim ao conflito. Os países bálticos e a Polônia berraram, desesperados, por ampliação das bases da OTAN, ou diretamente dos EUA, em seus territórios. Essa seria, segundo eles, a única forma de impedir a iminente ameaça de mais anexações por Putin. E, de fato, têm motivos para temer: a seu lado, a oeste, há um enclave russo – ou seja, um território russo separado da Rússia por quilômetros, localizado entre os países bálticos e a Polônia –, é Kaliningrado, a antiga capital da Prússia Oriental, a famosa cidade natal e de moradia de Kant (antiga Königsberg). É lá que se encontra uma das principais, senão a principal, base militar russa. A poucas centenas de milhas de Berlim, ou seja, a uma distância em que mísseis russos podem fazer um belo estrago na capital da Europa. Em parte, a pressão de Putin – uma pressão real –, que tanto queria os EUA, funciona bem. Os países bálticos, vendo a paralisia da UE, não pediram um exército da UE – até porque ele não existe ainda, e tende a não existir no espaço de tempo necessário para dar conta da crise –, pediram, mais do que bases da OTAN, bases dos EUA.
Ao mesmo tempo, em tais recentes acordos dos EUA com a Rússia, ficou acertada toda uma mudança nas forças políticas no Oriente Médio. Os EUA delegaram à Rússia a função de controlar a Eurasia. Assim como na UE, a intervenção direta dos EUA nos conflitos no Oriente Médio tem ampliado demais seus conflitos internos (internos aos EUA). Os mecanismos de controle dos EUA no Oriente Médio (OTAN, Israel e Arábia Saudita) não têm mais funcionado. A função de controle da região foi terceirizada para a Rússia – e por isso o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, tem viajado tantas vezes a Moscou ou ligado tantas vezes a Putin. O que a Rússia ganhará em troca? Certamente não é pouca coisa, afinal a região detém três quartos da oferta mundial de petróleo. Talvez, como recompensa, a Rússia ganhe de presente os estreitos turcos, sob controle da OTAN, ou maior participação neles. A recente tentativa de golpe de Estado na Turquia – o auto-golpe de Erdogan, que serviu para limpar o exército e as instituições do país de cima abaixo – demarcaram uma aproximação maior ou submissão maior à Rússia, e um afastamento do controle da OTAN e da União Europeia. A Turquia já sabe que a UE não tem futuro, e, assim como a Rússia, pressiona contra ela; ao mesmo tempo, volta-se mais para seus vizinhos, sobretudo Irã e Síria. As contradições abertas também fogem do controle dos EUA. Com Erdogan na Turquia, a Rússia provavelmente ampliará sua via de acesso do Mar Negro ao Mediterrâneo.
É por essas mudanças geopolíticas na Eurasia que, há poucas semanas, Donald Trump e a Casa Branca anunciaram que mudaram de política em relação a Bashar Al-Assad, sustentado pela Rússia. O mundialmente referido, por todas as mídias burguesas pró-ocidentais, de “ditador sírio”, terá agora de ser chamado, por essas mesmas mídias – o que deve ocorrer em pouco tempo – de “presidente sírio”. A Rússia amplia seu controle – como na época do Império Russo e ou da URSS – sobre toda a Eurasia, mas sofre as consequências de ser o agente dos EUA no Oriente Médio, como vimos no início deste mês de abril de 2017, com o atentado a bomba em metrô de São Petersburgo. Para além da vontade dos delirantes nostálgicos stalinistas, Putin não desempenha um papel “anti-imperialista” contra os EUA. O ataque de tomahawks dos EUA na Síria, apenas diplomático e absolutamente ineficaz, em tudo combinado com os russos, comprova isso.
Vê-se com esses elementos quão contraditórias são as medidas que têm se desdobrado em todo o mundo. Muitas delas têm fugido da vontade dos EUA, ou tencionado para isso, aproveitando-se da diminuição do papel de guarda da ordem exercido mundialmente por esse país. Turquia, Síria e Irã – o primeiro um “golpista”, o segundo um “ditador” e o terceiro um “terrorista” – terão agora de ser engolidos pela maior potência econômica e militar do planeta. Os EUA engoliram a atuação de Putin na Crimeia. Engolirão também o exército da UE?
Enfim, todas as questões não resolvidas historicamente, ressurgem nos mesmos moldes. Afinal, o capital não é capaz de resolvê-las, sem acabar consigo próprio. Cabe ainda pensar no problema, para os EUA, do oceano pacífico: o Japão.
Desde meados de 2015 ressurgiu fortemente a questão do militarismo japonês. Centenas de milhares de pessoas foram às ruas contra as reformas legislativas que visavam a ampliar os gastos militares do governo. Além de ampliar os gastos, as modificações permitiriam que o Japão participasse de operações militares no exterior, algo proibido pela constituição do país desde o final da Segunda Guerra. Tudo isso passou a valer no primeiro trimestre de 2016. China e Coreia do Sul protestaram. O Japão usou o espantalho da Coreia do Norte como justificativa para tal ampliação militar. Em seu recente encontro com Trump, o Primeiro Ministro japonês, Shinzo Abe, ouviu do americano que não deveria se preocupar, e que os EUA continuariam cuidando da segurança do Japão. Evidentemente, tais doces palavras entraram por um ouvido e saíram pelo outro. Não é isso que interessa à burguesia nipônica. Ela vê as ações “insanas” e “inconsequentes” do supostamente perigoso vizinho norte-coreano e pensa numa oportunidade histórica – a de voltar a ser a senhora do pacífico. A luz amarela acendeu na China e na Coreia do Sul.
A China, devido ao seu tamanho, mostra-se o maior aliado dos EUA na região. Nesse sentido, poucos dias após os EUA anunciarem um aumento histórico em seus gastos militares – US$ 54 bi a mais –, a China, como que para jurar obediência, anunciou uma diminuição em seus gastos militares, dos tradicionais 10% do PIB anuais para 7%. Evidentemente, isso é também devido à falência da economia chinesa, que, como já discutimos (tese 1), por ser demais dependente do superávit na balança comercial, sofre com a queda do valor das mercadorias mundiais. Neste início de abril de 2017, dias 6 e 7, Xi Jinping, presidente da China, encontrou-se com Trump. Um dos motivos principais da discussão, anuncia toda a mídia mundial, é a Coreia do Norte. E apenas um dia antes do encontro dos dois presidentes, a Coreia do Norte lançou um míssil balístico a 60 quilômetros do Mar do Japão. Na verdade, o que temem a China e os EUA é que a Coreia do Norte abandone sua submissão histórica à China e abra um maior espaço de jogo e manobra política para o Japão no pacífico. A Coreia do Norte parece cada vez mais afastar-se da China, por perceber suas limitações econômicas. Para ela, talvez, pode tornar-se mais interessante uma reunificação com a Coreia do Sul ou uma aproximação com o Japão. Isso, é claro, são possibilidades em aberto, que dependem muito de resultados imediatos dos estouros econômicos e políticos em todo o planeta. O que importa é notar que há possibilidades e margens, de jogo, para que o Japão reinicie uma política fora da tutela dos EUA no pacífico.
Todos os problemas retornam em escala ampliada.
——
Notamos todos esses elementos para que os companheiros compreendam que os conflitos geopolíticos têm base profunda na estruturação material das economias nacionais e na forma como elas inserem-se historicamente no mercado mundial. Reforçamos que isso só pode ser compreendido na leitura conjunta com a tese 1. Caso não se compreenda tais elementos, tende-se a ser enfeitiçado pelas análises ou informações empíricas, ou seja, de setores particulares da burguesia, que logicamente têm seus interesses em ver o mundo de tal ou qual forma. É por isso que grande parte da esquerda fica refém das análises empíricas e burguesas, sobretudo das que valorizam enormemente possibilidades de conflito entre os EUA e a China, ou entre os EUA e a Rússia de Putin. Pensamos que não é por aí que os conflitos devem ser analisados e tendem a se desdobrar. Compreender a estruturação real das economias e sua forma de inserção no mercado mundial é fundamental para compreender a geopolítica, e isso é fundamental, como apontamos, para se pensar táticas internacionalistas concretas para a classe operária.
[1] Cf., sobre isso, a importante “Introdução” de Trotsky à sua brochura A guerra e a Internacional, de 1914. Trotsky já apontava, como durante toda a guerra, para a impossibilidade da burguesia europeia realizar uma união estável e duradoura. Hoje, a provável dissolução da UE aponta para isso. A brochura de Trotsky tornou-se livro de referência fundamental da III Internacional na questão da guerra… até a ascensão do stalinismo, é claro.
[2] Esse processo produziu o surgimento da Economia Política enquanto ciência própria, que estudava a criação de riqueza vinculada à produção de mercadorias (M) e não mais apenas em sua forma ofuscante (D). Para isso foram fundamentais não apenas Adam Smith, mas também, antes dele, William Petty e os chamados fisiocratas.
[3] Quando falamos que a China (ou mesmo a Rússia) agem de acordo com a vontade do imperialismo norte-americano (o que explicaremos melhor adiante neste texto), isso não deve ser compreendido também em uma forma pobre, ou seja, como se se tratasse de um monobloco, onde a vontade dos EUA é aceita sem atritos, conflitos, diferenças. Essa vontade é aceita em última instância, mas as diferenças podem, é claro, desatar situações imprevistas. Todavia, como ressaltaremos no texto, tais diferenças são de caráter secundário frente a outras, estruturantes dos conflitos geopolíticos mundiais.
[4] Veja-se o que tratamos na tese 1 a respeito da disputa pela “mais-valia extra” quando da formação dos preços de produção dentro de um país (no qual disputam, em geral, para os grandes pontos da economia, empresas internacionais).
[5] Aliás, a farsa se manteve por todo o século XX, com a divulgação da ideia de que a URSS se tornara a segunda potência mundial, após os EUA. Para erguer a farsa somaram-se também grandes feitos de tecnologia, como a viagem ao espaço etc. (coisa que a China também realiza hoje). Tais feitos não significam necessariamente grande produtividade. Tudo isso deu base à concepção geopolítica falsa de que havia uma “guerra fria”, pos o mundo estaria dividido em “dois grandes blocos”. A “teoria dos blocos”, conjuntamente com o imperialismo falso (abstrato) que continha, deu base à atuação traidora dos PCs em todo o planeta (justificando cada ação capitulacionista pelo “combate ao imperialismo ianque”). Ora, tão logo acabou a URSS e a Rússia voltou a ser um Estado-Nação capitalista, percebeu-se, a despeito da destruição de forças produtivas, que sua economia era cronicamente fraca do ponto de vista de produtividade.
[6] TROTSKY, L., Revolução Traída, São Paulo: Sundermann, 2012, p. 51.
[7] Novamente, José Martins, em <http://www.sismmac.org.br/disco/arquivos/177_CRITICA_1147__No_rabo_da_cadeia_global_2¬_semana_Maio_2013.pdf>. Os dados foram recolhidos por ele em Linden. G, Kraemer K., and J. Dedrick, “Who Profits from Innovation in Global Value Chains? A Study of the iPod and notebook Pcs”.
[8] A corrente de comércio – soma de importações e exportações –, na China, acumulou fortes quedas durante os últimos anos. Isso por conta do processo deflacionário, típico de final do ciclo econômico, ou seja, não apenas graças à queda no valor das commodities (como aponta a maioria dos economistas), mas também, e sobretudo, graças à diminuição nos preços da manufatura mundial – tanto de bens duráveis como não duráveis. A China vive uma situação de instabilidade muito grande no mercado mundial, graças à enorme dependência do superávit comercial. E é disso que Trump está se aproveitando para dobrar o braço (com muita facilidade, aliás) dos chineses. Por esse tipo de problema, a China tem de manter um elevado grau de reservas cambiais. Países que têm grande produção industrial não necessitam de gigantescas reservas cambiais. Isso – de que os governos petistas tanto se vangloriaram no Brasil e de que a China se vangloria – é sinal de provincianismo (note-se que China e Brasil estão entre os maiores compradores de títulos da dívida dos EUA). Somente mantêm reservas tão grandes aqueles absolutamente reféns das oscilações do mercado mundial, justamente porque não têm agregação razoável de valor no processo produtivo. A gordura que tais países perdem em valor agregado, tentam, por outro lado, ganhar numa reserva cambial maior – mas esse é um mecanismo político-econômico muito frágil e limitado. Além disso, como ensinou o professor José Martins, é justamente por não ter produtividade que esses países, a rigor, não têm moeda. Não têm moeda conversível. Não se pode viajar o mundo com reais, mas se pode com dólares. Marx ensinou, já no capítulo primeiro de O capital, que moeda é apenas uma forma de aparição do valor. E assim acabou com o enigma do dinheiro. É tão simples quanto isso. Quanto mais valor nasce (extraído da classe trabalhadora) num determinado país, mais forte é sua moeda. Por isso o dólar é a moeda mais forte do mundo, responsável por 87% das transações comerciais planetárias. Depois vem o euro, com cerca de 33%, depois o Iene japonês, com 23%, depois a libra inglesa, com quase 13%, e por aí vai. O yuan chinês aparece com 2,2%, atrás do mexicano peso (2,5%). Tais são dados do Bank for International Settlements (BIS) em 2015. O real brasileiro nem aparece nesses dados (note-se que, pelo fato de que duas moedas concorrem ao mesmo tempo para a transação, a soma das percentagens deve totalizar 200%).
[9] Somente agora, por exemplo, após 2017, a China desenvolveu tecnologia própria completa para a produção de aviões, coisa, aliás, que o próprio Brasil realiza por completo desde o início da década de 1970, na EMBRAER (que produzia cerca de 200 aviões de pequeno porte por ano, e agora foi vendida à Boeing, que segue produzindo seus quase 1000 de grande porte por ano).
[10] A tal grau que, com base em Bukharin, cria-se um tipo de teleologia do imperialismo, um movimento geral e necessário que, com uma linha reta, dá sempre num mesmo e último objetivo: guerras e a revolução. Esse desenho simplista aparece, na sua forma mais caricata, no ABC do Comunismo, escrito por Bukharin e Preobrajenski, mas cuja parte do imperialismo e do “Capitalismo de Estado” é de Bukharin. Os bolcheviques terão de corrigir tais pensamentos teleológicos de Bukharin justamente quando refletirem sobre o fim da primeira onda revolucionária do pós-guerra e a criação da NEP. Vale ainda notar que as análise de Bukharin e Lenin sobre o imperialismo, apesar de próximas num primeiro momento (e o texto clássico de Bukharin ser anterior ao de Lenin), não coincidiam. As diferenças foram se manifestando cada vez mais, aos poucos, até se tornarem sérias frente ao início da NEP. As análises de Lenin eram mais concretas e não incorriam nos erros exagerados derivados da lógica abstrata de Bukharin (que resvalavam na tese de supressão total da concorrência interna a uma nação e na tese da criação de um suposto “Capitalismo de Estado”). Ver, sobre essas diferenças, artigo de GARRATANA, V., “Estado Socialista y capitalismo de estado”, in Teoria del proceso de transición. Córdoba/ Buenos Aires : Cuadernos del Pasado y Presente, 1973. Note-se, por fim, que a noção de “Capitalismo de Estado”, embora muito usada por Bukharin e por Lenin (mas de forma diferente), era usada com ressalvas por outros importantes teóricos bolcheviques, como E. Preobrajensky (na Nova Econômica), e não era usada por Trotsky, que durante o início da década de 1920 desconfiava da corretez do termo, e, depois, nos anos 1930, negou-o por completo.
[11] Marx e Engels queriam a derrota da Rússia, então o “gendarme” da Europa, responsável pela destruição da onda revolucionária de 1848, para que se acelerasse a queda do tzarismo. Ainda assim, Marx e Engels não capitulavam à França e à Inglaterra, denunciando suas vacilações e apontando a necessidade de o movimento do proletariado combater o gendarme da Europa de forma independente das burguesias francesa e inglesa. O único critério da tática (flexível) de Marx e Engels era o aceleramento da revolução mundial. Veja comentário dessa tática no ótimo livro de RIAZANOV, D., Marx et Engels (conférences faites aux cours de marxisme prés l’académie socialiste en 1922), sétima conferência, éditions anthropos, Paris, 1967, p. 107.
[12] A respeito da centralização, o mesmo ocorre, em menor escala e importância, com a Itália. No caso da Alemanha, vale notar que é nesse período que ela desenvolve suas indústrias em importantes setores como o químico e o elétrico, instrumentos de precisão e de ótica. Empresas até hoje poderosas, como Bayer, BASF, Hoechst, Siemens, Bosch, Zeiss e outras surgem nesse período. No caso dos EUA, cabe notar também – um pouco mais a título de curiosidade – que o trajeto da burguesia norte-americana era, até a guerra de secessão, relativamente parecido com o da burguesia brasileira. Esta, é claro, tinha um grau de industrialização (manufaturas concentradas principalmente em Minas Gerais) muito mais baixo do que o dos EUA até a guerra de secessão. Isso porque os EUA já haviam realizado antes, em 1775, sua independência em relação à colônia (Inglaterra). No caso do Brasil, isso ocorreu muito posteriormente e impossibilitou o desenvolvimento de uma manufatura interna. A metrópole, Portugal, submissa à Inglaterra nos acordos comerciais e marítimos, literalmente proibia qualquer tipo de desenvolvimento sério de manufatura no Brasil. Esta somente poderia se voltar à produção de materiais que davam base à manutenção da escravidão. Tais elementos impediram o desenvolvimento de uma burguesia industrial nacional, que nunca foi hegemônica no Estado-brasileiro. A chamada “revolução constitucionalista de 1932”, tentativa de autonomia do sudeste industrial (em resposta à “revolução de 1930”, que consolidou o Estado nacional como agente do grande capital, paralisando a burguesia do sudeste) foi um fracasso. Isso demarca até hoje a forma como a economia brasileira insere-se no mercado mundial, com relativamente baixo valor agregado no processo industrial e dependência grande do comércio de produtos primários. O Estado-brasileiro é até hoje formatado para paralisar a burguesia do sudeste (que, aliás, há muito e muito tempo desistiu de qualquer pretensão de jogo independente no mercado mundial).
[13] A derrota da Rússia, como se sabe, foi um dos principais elementos para desatar a revolução de 1905 nesse país.
[14] Sobre a unificação alemã e a chamada “questão alemã”, cf. VELASCO E CRUZ, S., “Fricções e conflitos, a via prussiana e a questão alemã”, in Linhas Cruzadas Sobre as Relações Entre os Estados Unidos e a Alemanha. São Paulo: Ed. Unesp, 2016.
[15] E conduz, em 1871, quando começa a ficar clara a derrota francesa, à Comuna de Paris.
[16] Citado também por FOUGEYROLLAS, P. Marx. Ed. Ática, São Paulo, 1989.
[17] TROTSKY, L., Manifesto da IV Internacional sobre a guerra imperialista e a Revolução Proletária Mundial. Maio de 1940.
[18] Quem tem controle dos mares tem tudo. Na verdade, o problema bélico gira em torno do problema marítimo desde o início do Ocidente, com a chamada talassocracia ateniense. No início do século XX, sobretudo após a Primeira Guerra, a talassocracia passa a dar base não apenas ao domínio dos mares, mas também aos domínio dos ares. Quem tem os mares, tem os porta-aviões. Estes, antes limitados pela quantidade de combustível necessário em unidades para as operações de guerra, passam agora a poder ser acionados de qualquer lugar do globo, em águas internacionais. Quanto ao domínio financeiro, trata-se da ascensão de Wall Street e da queda da City de Londres, que até hoje é o segundo centro financeiro mundial, sobretudo devido às suas transações financeiras com o continente europeu.
[19] TROTSKY, L., Manifesto da IV Internacional… op. cit.
[20] Idem, ibidem. Grifo nosso.
[21] Cf. VELASCO E CRUZ, S., “Pensar o impossível. Metamorfoses”, in Linhas Cruzadas Sobre as Relações Entre os Estados Unidos e a Alemanha. op. cit., p. 79.
[22] Pax Britannica, Pax Romana…
[23] Cf. BROUÉ. P., em União Soviética: da revolução ao colapso. Porto Alegre: Ed. Universitária (UFRGS), 1996.
[24] Cf. VELASCO E CRUZ, S., “Pensar o impossível. Metamorfoses”, in Linhas Cruzadas Sobre as Relações Entre os Estados Unidos e a Alemanha. op. cit., p. 80.
[25] MARTINS, J., “Europa Armada”, em <http://criticadaeconomia.com.br/europa-armada/>.