Hector Benoit
Die Geschichte aller bisherigen Gesellschaft ist die Geschichte von Klassenfämfen.
(Marx e Engels, Manifesto Comunista)[1]
Esta frase, aqui citada como epígrafe, abre a primeira parte do Manifesto Comunista. Provavelmente, durante estes últimos 150 anos agora celebrados, esta é a proposição mais criticada deste texto e, assim, aquela que, para muitos, representaria melhor o afastamento de Marx em relação a nós, o seu envelhecimento inevitável, o caráter relativamente efêmero e já superado de, ao menos, esta “pequena” fração do seu pensamento. As críticas a esta proposição são construídas tanto a partir de argumentos do passado como do presente.
Quanto ao passado, Marx estaria em 1847, quando redigiu o texto, justificadamente mal informado, pois desconhecia-se a pré-história, a história apenas começava a desenvolver uma metodologia científica de pesquisa, a arqueologia ainda era uma prática amadorística, tanto a sociologia como a antropologia apenas balbuciavam as suas primeiras formulações e, portanto, assim, estavam ainda nascendo enquanto disciplinas rigorosas todos esses saberes hoje academicamente consagrados, todos esses saberes que agora chamamos de “Ciências Humanas”. Como poderia Marx, desta maneira, sem os conhecimentos empíricos destas ciências, chegar a generalização tão ampla e tão ambiciosa como aquela? “Toda a história é até os nossos dias a história da luta de classes”, dizia ele, e diante de tal voo teórico, mesmo alguns que se reivindicam do seu pensamento alegam que são obrigados, ao menos, a relativizar criticamente tal proposição universal.
Dificilmente grande revisionismo pode ser denunciado nesses críticos, afinal, apenas cinco anos após a morte de Marx, já nessa direção se inclinava Engels, o próprio co-autor do Manifesto e autor inclusive da brilhante primeira versão desse texto, Princípios do comunismo. Assim, na edição inglesa de 1888 e depois novamente na edição alemã de 1890, no decorrer daquela frase, após a afirmação que universaliza a luta de classes para a história de todas as sociedades, sente Engels a necessidade de colocar uma nota explicativa relativizante. Escreve Engels que, mais precisamente, aquela afirmação seria verdadeira, mas somente para a “a história transmitida através da escrita”.[2] Acrescenta ainda que em 1847, quando fora redigida o Manifesto, a pré-história da sociedade, a organização social que precedeu toda a história escrita, era por assim dizer desconhecida. Depois, a Haxthausen descobriu na Rússia a propriedade comum do solo. Maurer demonstrou que ela é base social da qual partiram historicamente todas as tribos germânicas, se descobriu pouco a pouco que a comunidade rural, com a posse coletiva da terra, foi a forma primitiva da sociedade, desde a Índia até a Irlanda. Finalmente, graças à descoberta decisiva de Morgan, que revelou a natureza verdadeira da gens e seu lugar na tribo, a estrutura interior desta sociedade comunista primitiva foi revelada em sua forma típica. Com a dissolução destas comunidades primitivas, a sociedade começa a se dividir em classes diferentes e, finalmente, antagônicas.[3]
Como se vê, Engels, além de relativizar a afirmação inicial do Manifesto, procura atualizar este texto com os desenvolvimentos empíricos posteriores. Assim é que a na edição inglesa de 1888, ainda remete o leitor para a sua própria obra, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, publicada em 1884, na qual, segundo ele, esboçou com maiores detalhes esse processo de dissolução da comunidade primitiva. Como escreve ele: “Procurei analisar este processo de dissolução em A origem da família, da propriedade privada e do Estado: segunda edição, Stuttgart 1886”.[4]
No entanto, precisava realmente o Manifesto de tal tipo de relativização e atualização empírica? Como se observa no prefácio de 1872, assinado conjuntamente por Marx e Engels: “Ainda que as condições tenham mudado muito nos últimos vinte e cinco anos, os princípios gerais (allgemeinen Grundsätze) exposto neste ‘Manifesto’ conservam, no seu todo, ainda sua plena exatidão (ihre volle Richtigkeit).”[5] Esta afirmação teria sido superada já em 1888, logo após a morte de Marx? Ou, ao contrário, em que medida essas atualizações e elementos empíricos acrescidos ao texto não aparecem sempre como sobreposições empíricas senão opostas, ao menos, desconexas em relação ao conteúdo conceitual do Manifesto? Ou então, procurando melhor determinar a especificidade da nossa dúvida: em que medida essas contribuições factuais foram corretamente mediadas por conceitos coerentes e imanentes ao próprio Manifesto e ao desenvolvimento posterior do próprio pensamento e método de Marx? Em uma frase: que significou ler aquela proposição inicial do Manifesto Comunista à luz de A origem da família…, de Engels (-Morgan)?
Desenvolvamos a nossa problemática a partir daquela última pergunta. Como se sabe, A origem da família… é um livro em grande parte baseado na Ancient Society (1877) de L.H. Morgan, como reconhece o próprio Engels nos diversos prefácios.[6] Segundo Engels, Morgan teria redescoberto novamente, anos depois de Marx, por si próprio e à sua maneira, a teoria materialista da história.[7] Se semelhanças e analogias podem ser traçadas entre teorias diversas, existiria, no entanto, tal identidade entre o pensamento de Morgan e o de Marx? Engels nos garante que sim, e a sua obra, A origem da família…, seria inclusive “a execução de um testamento”, durante a redação da obra, segundo ele, teria tido em mãos anotações e comentários do próprio Marx a respeito de Ancient Society.[8]
Descrevem-se na obra de Engels três supostas fases do desenvolvimento da humanidade, estado selvagem-barbárie-civilização. Os gregos na idade heroica estariam na fase superior da barbárie, ou seja, às vésperas da constituição do Estado.[9] No interior dessa teoria emprestada a Morgan, tem papel fundamental a descrição da formação do Estado ateniense como “um modelo notavelmente típico da formação do Estado em geral”.[10] Como escreve Engels a respeito do fim da época heroica grega: “faltava uma instituição que não somente perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, como também o direito da classe possuidora de explorar a não possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda. E esta instituição nasceu. Inventou-se o Estado”.[11] A gênese do Estado ateniense seria típica, pois, diz Engels, se realizou sem a intervenção de qualquer violência tanto exterior como interior, o Estado ateniense teria brotado diretamente da gens.[12] Como afirma na seguinte passagem: “Em resumo, a constituição gentílica ia chegando ao seu fim. A sociedade ultrapassava mais e mais o marco da gens, que não podia estancar nem suprimir os piores males que iam nascendo diante dos seus olhos. Enquanto isso, sem que se percebesse, o Estado se desenvolveu.”[13] Portanto, em A origem da família…, Engels descreve a dissolução típica da comunidade primitiva embasada na família gentílica como um processo que desemboca diretamente na formação do Estado de tipo ateniense e, assim, diretamente no modo de produção escravagista. Como afirma ele, logo o antagonismo de classes em Atenas passou a ser “entre escravos e homens livres, entre clientes e cidadãos.”[14]
À luz assim destes desenvolvimentos de Engels (Morgan) poderíamos retornar ao começo do Manifesto e reinterpretá-lo. Antes da história escrita existiu a história não-escrita, ou seja, a história da comunidade primitiva que antecedeu a luta de classes (estado selvagem e barbárie), porém, da dissolução da comunidade primitiva no estágio superior da barbárie, como teria ocorrido em Atenas, surge diretamente o Estado, a luta de classes, o modo de produção escravagista, o antagonismo entre livres e escravos. O começo do Manifesto, portanto, pode ser transformado aproximadamente assim: “A história [escrita] de todas as sociedades [ou seja, excluindo-se a história da comunidade primitiva], é a história da luta de classes [isto é, após a dissolução da comunidade primitiva, com o nascimento do Estado, logo surgiu o modo de produção escravagista, a história passou a ser a história da luta de classes].” Então, como explicita a seguir o segundo parágrafo do Manifesto: “Livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestre e companheiros, em uma palavra, opressores e oprimidos (…)”; e finalmente, no quinto parágrafo, chegando implicitamente assim todos os principais momentos da história até nossos dias (comunidade primitiva – escravagismo – feudalismo – capitalismo) e se avançarmos até o fim desta primeira parte intitulada “Burgueses e proletários”, com previsão da vitória inevitável do proletariado, vemos anunciar-se o novo modo de produção, o socialismo.[15]
Como se vê, ao reinterpretarmos à luz de A origem da família, da propriedade privada e do Estado o começo do Manifesto, temos claramente a base para o célebre esquema dogmático do desenvolvimento “unilinear” dos modos de produção na história: comunidade primitiva – modo de produção escravagista – feudalismo – capitalismo – socialismo. Sobretudo, é somente a partir desta combinação interpretativa (Manifesto – Origem da família) que se chega à convicção dos dois primeiros elos da sequência (comunidade primitiva-escravagismo) como necessários e encadeados evolutivamente um ao outro, o segundo nascendo diretamente do primeiro, como dissera Engels, teria ocorrido no caso típico de Atenas. Sabe-se que triste destino teve essa interpretação evolucionista nas formas mais dogmáticas do marxismo.
Assim, no escrito Sobre o materialismo histórico e o materialismo dialético, Stálin repete até a exaustão a exposição desse esquema: “A história”, diz ele, “reconhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo.”[15] A seguir, Stálin expõe brevemente esses cinco tipos e fica clara a ideia de necessidade na passagem de um para outro.
Particularmente, fica evidente uma suposta necessidade na passagem da comunidade primitiva para o escravagismo. Assim escreve ele: “Quando alguns membros da sociedade comunista primitiva começaram a substituir, paulatinamente e tateando o terreno, as ferramentas de pedra pelas de ferro, ignoravam, naturalmente (…) que consequências sociais teria esta inovação, não sabiam nem compreendiam que passar para as ferramentas metálicas significava uma mudança radical na produção, mudança que finalmente conduziria ao regime da escravidão”.[17]
Como se vê, nesta passagem, Stálin faz a ligação sequencial-evolutiva entre a comunidade primitiva e o escravagismo. Da mesma forma, anteriormente, ao argumentar sobre os limites das determinações populacionais na história, deixara claro tal vinculação. Assim, afirma Stálin nesta outra passagem que o crescimento da população não pode explicar por qual motivo um regime social determinado é substituído por outro e, exemplificando, argumenta que o crescimento populacional não explica a razão pela qual “o regime do comunismo primitivo foi substituído precisamente pelo regime da escravidão, o regime escravista pelo regime feudal e este pelo burguês e não por qualquer outro”.[18]
Evidentemente, este mesmo esquema seguido por Stálin foi também praticado pela historiografia da União Soviética. Por exemplo, na História da Antiguidade dirigida por Diakov e Kovalev[19], obra que traz bibliografia já do final da década de 50, ainda fica evidente a tentativa de fidelidade ao velho esquema que começa, precisamente, com a sequência comunidade primitiva – escravagismo. A transição entre estas duas formações, também de maneira precisa se apoia em A origem da família…, assim é que, seguindo a formação do Estado ateniense como típico, afirma-se que a passagem entre a comunidade primitiva e o escravagismo teria se dado através de uma “democracia militar”[20], ora, evidentemente, trata-se da universalização para todos os povos da chamada “idade heroica” grega que Engels analisara.
Esta universalização da “idade heroica” grega é afirmada literalmente na parte que trata diretamente desse período da história da Grécia: “Marx e Engels chamavam este regime de ‘democracia militar’. É, portanto, a democracia militar que caracteriza as relações políticas do período transitório entre a sociedade primitiva e a sociedade escravagista dividida em classes que lhe sucede.”[21] O caráter forçado na aplicação do velho esquema, no entanto, é total e gritante. O Egito, a China, a Índia e, em geral, todos os países do Oriente, teriam evoluído também da comunidade primitiva diretamente para o escravagismo, com a breve mediação da “democracia militar”. Referindo-se aos países do Oriente, escrevem os autores: “A história de seus povos nos inicia no nascimento e no desenvolvimento dos mais antigos Estados escravagistas, fundados sobre a divisão da sociedade primitiva em classes.”[22] Como se vê, os Estados do antigo Oriente também seriam escravagistas e os autores, apesar de reconhecerem algumas diferenças em relação à Antiguidade greco-romana, negam a profundidade dessas diferenças: “Não há nenhuma diferença de princípio entre os Estados do Oriente e da Antiguidade clássica: as particularidades secundárias que os distinguem não nos impedem de os classificar na mesma formação social e econômica.”[23]
Coerente portanto com o anti-humanismo stalinista, a historiografia soviética (e chinesa) eliminava assim qualquer diferença mais profunda entre o despotismo asiático dos Estados orientais antigos e a democracia nas cidades gregas que, apesar de escravagistas, representavam o desenvolvimento do indivíduo liberto da comunidade.[24] Imediatamente, porém, tratava-se para a historiografia stalinista de apagar o conceito de modo de produção asiático a qualquer custo, visando justificar as políticas da Terceira Internacional em relação à China e a outros países orientais, caracterizados então como feudais. Além disso, tratava-se de fazer esquecer as análises do próprio Marx que revelavam o passado contraditório semi-asiático da própria Rússia e o consequente perigo de um retorno (ou das acusações de um retorno) do despotismo asiático na figura do Estado soviético.[25] Por isso mesmo, foi necessário esperar a desestalinização para que, mesmo na Europa, ocorresse o redescobrimento do conceito de modo de produção asiático. Vieram então, a partir do final da década de 50, uma multiplicidade de trabalhos sobre o modo de produção asiático: M. Godelier, F. Tökei, J. Chesnaux, C. Parain, D.D Kosambi, J. Suret-Canale, E.J. Hobsbawn, G. Sofri, e outros.[25] No entanto, sobretudo do ponto de vista metodológico, aquelas concepções stalinistas que eliminaram o modo de produção asiático, assim como algumas destas que procuraram recuperá-lo, não se diferenciam essencialmente. Parte dos trabalhos que procuraram recuperar a forma “asiática” expressava igualmente, como os teóricos stalinistas clássicos, a incapacidade de uma compreensão dialética da teoria da história marxista. Os modos de produção ordenados em linhas; as diversas histórias nacionais justapostas estaticamente; o passado, o presente e o futuro pensados como etapas lineares e evolutivas do tempo, como objetos fixos que podem ser descritos, observados, classificados e conhecidos de maneira positiva; estas atitudes teóricas representam uma ruptura metodológica com a dialética e, talvez por isso mesmo, a ruptura mais profunda com o Manifesto Comunista.
De qualquer forma, o longo percurso que vai do Manifesto Comunista às interpretações stalinistas iluminadas por A Origem da família…, exemplifica bem os descaminhos teóricos que podem abrir atualizações empíricas não mediadas pelo devido rigor e imanência conceitual. Exemplifica também, por outro lado, como o materialismo vulgar aliado ao dogmatismo e ao positivismo empirista, muitas vezes, pode afastar-se da realidade e falsificá-la mais até do que o próprio idealismo. Nesse sentido, observe-se que, apesar de todo o seu conteúdo teológico-metafísico, as Lições da filosofia da história, de Hegel, diferenciam de maneira clara os Estados Orientais em relação à Antiguidade clássica e particularmente em relação à Grécia. Centrando a sua teoria da história no Estado e no desenvolvimento da ideia de liberdade, Hegel longamente diferencia e opõe de maneira decisiva o “despotismo asiático” à liberdade individual que atingiram de fato os cidadãos na polis grega.[27] Os próprios gregos, aliás, desde pelo menos Heródoto, frequentemente reconheciam e opunham a liberdade do cidadão grego à submissão oriental.[28] Ora, evidentemente, Marx conhecia bem essas análises de Hegel e dos gregos a respeito da oposição Oriente-Ocidente e desenvolveu-as a partir de outras leituras, integrando-as, finalmente, na sua própria teoria materialista da história.[29] Assim é que, desde os textos de 1853 a respeito da dominação britânica na Índia, encontramos em Marx elementos cada vez mais determinados daquela oposição Oriente-Ocidente, culminando com a afirmação bastante categórica da noção de modo de produção asiático no célebre prefácio de janeiro de 1859: “Esboçados, em largos traços, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno, podem ser designados como as épocas progressivas da formação social econômica”[30]. Na época da redação do Manifesto, no entanto, possuíam Marx e Engels alguma teoria mais desenvolvida sobre a Ásia? Retomemos alguns textos anteriores.
Já na Crítica à filosofia do Direito de Hegel (1843-44), Marx menciona o despotismo asiático. Fazendo uma oposição tanto em relação ao Estado da Grécia antiga como ao Estado moderno, escreve Marx que “nos Estados despóticos da Ásia, o Estado político não é mais que a arbitrariedade de um indivíduo particular; dito de outra maneira, o Estado político, como o Estado material, é escravo.”[31] Neste texto, numa linguagem ainda claramente hegeliana, o “despotismo asiático” é oposto, sobretudo, ao Estado moderno, no qual finalmente teria ocorrido “a unidade substancial entre o povo e o Estado” [32]. Como se vê, ainda que em terminologia idealista-hegeliana, antes do Manifesto, Marx já pensava a Ásia como elemento negativo e demarcador da especificidade da sociedade oriental.
Em A ideologia alemã (1845-46), no entanto, Marx e Engels se voltarão claramente contra a filosofia da história de Hegel: “A filosofia da história de Hegel (die Hegelsche Geschichtsphilosophie) é a última consequência, conduzida à sua ‘expressão mais pura’, de toda esta historiografia alemã que não se preocupa nem com os interesses efetivos, nem com os interesses políticos, mas apenas com pensamento puros (…)”.[33] Mas, nessa mesma página, para exemplificarem como atua essa historiografia idealista, os autores fazem referências significativas a respeito da história dos países orientais: “a forma rudimentar (die rohe Form) na qual se manifesta a divisão do trabalho entre hindus e egípcios provoca nestes povos o regime de castas (das Kastenwesen) próprio de seu Estado e de sua religião (…)”, explicam que, no entanto, o historiador idealista acredita que “o sistema de castas foi a potência que engendrou aquela rudimentar forma social.”[34] A referência a Hegel aqui é bem explícita: nas Lições da Filosofia de história, particularmente, no capítulo sobre a Índia, se discute longamente o problema das castas orientais e sua evidente vinculação com a divisão de trabalho.[35] Hegel relata uma tradição hindu, segundo a qual aquelas crianças que nasceram do cruzamento das diversas castas teriam sido classificadas e divididas por um rei, dando origem à divisão do trabalho, uns se transformaram em tecelões, outros em ferreiros, e assim teriam nascido as diversas profissões.[36] Para Marx e Engels, no entanto, neste caso o idealismo se manifesta, justamente, em dar crédito ao mito do rei legislador que teria estabelecido essa arcaica divisão do trabalho, esta sendo antecedida pelo sistema de castas. Para os autores de A ideologia alemã, não é mais, evidentemente, a consciência que explica a produção material, mas sim o oposto: um certo estágio no desenvolvimento das forças produtivas da sociedade estaria cristalizado nessa arcaica e engessada forma de divisão social do trabalho; esta, por sua vez, produziria assim, “naturalmente” ou “inconscientemente” o regime de castas, base do Estado despótico asiático.
Assim, exatamente nessa direção, nos primeiros meses de 1847, em A miséria da filosofia, referindo-se à origem de regimes estamentais de pouca mobilidade, volta Marx a falar do regime de castas[37], e escreve: “(…) sob o regime de castas, sob o regime feudal e corporativo, havia divisão do trabalho na sociedade inteira segundo regras fixas.[38] Para se contrapor de maneira precisa à argumentação idealista (neste caso Proudhon, mas servindo também como objeção certeira contra o mito hindu narrado por Hegel) pergunta e responde então Marx: “Estas regras foram estabelecidas por um legislador? Não. Nascida primitivamente das condições da produção material, foram erigidas em lei bem mais tarde. É assim que estas diversas formas da divisão do trabalho tornaram-se também bases de organização social.”[39]
E meditando ainda a respeito dessa relação entre organização social e divisão do trabalho, acrescenta Marx: “Quanto à divisão do trabalho no interior da oficina, ela era muito pouca desenvolvida em todas estas formas de sociedade.”[40] Realmente, como já se afirmar em A ideologia alemã, o regime de castas, por exemplo, apesar da sua rígida segmentação social era a expressão de uma forma extremamente arcaica ou “rudimentar” de divisão do trabalho. Mas Marx vai além nestas reflexões e, pelo que afirma logo a seguir, pode-se supor que o regime de castas era já para ele, justamente, o paradigma de uma expressão social que representa a forma menos desenvolvida da divisão do trabalho pós-comunidade primitiva. Como afirma a seguir, estabelecendo uma espécie de “lei”: “Pode-se mesmo estabelecer como regra universal (allgemeine Regel), que quanto menos a autoridade (Autorität) preside a divisão do trabalho no interior da sociedade, mais a divisão do trabalho se desenvolve no interior da oficina (der Werkstat), e mais ali é submetida à autoridade de um só. Assim, a autoridade na oficina e aquela na sociedade, quanto à divisão do trabalho, são em razão inversa uma da outra.” [41]
Nesse sentido, a partir desta “regra universal” à qual se chega em A miséria da filosofia, aproximava-se Marx da compreensão do segredo das sociedades asiáticas: a regulamentação e fixidez excessiva do regime de castas expressaria exatamente o caráter especificamente arcaico ou rudimentar da divisão do trabalho nas sociedades asiáticas antigas, um arcaísmo radical que estaria inclusive na base da imutabilidade milenar das sociedades orientais.
Esta noção mesma da imutabilidade (Unveränderlichkeit) das sociedades orientais, posteriormente afirmada diversas vezes por Marx e Engels, já deveria estar presente na época da redação do Manifesto ou ao menos não lhes era absolutamente desconhecida. Hegel, nas suas Lições da filosofia da história, já insistira muitas vezes sobre o caráter imutável da Índia, assim como da China e do Egito. Porém, além disso, este tema da imutabilidade do Oriente, como outros das Lições… já surgira também nos autores da Antiguidade clássica e portanto fora retomado não só por Hegel como por outros autores dos séculos XVIII e XIX. Quanto aos gregos, é particularmente interessante, neste sentido, o diálogo Timeu de Platão. Lá Crítias recorda uma viagem de Sólon ao Egito e as revelações que a este teriam feito os próprios sacerdotes egípcios: enquanto os gregos vivam sempre submetidos à permanente transformação histórica, sendo sempre criança, disseram-lhe os sacerdotes, o país dos faraós se conservara imutável por séculos, arquivando seis mil anos de passado nos papiros dos templos.[42] O próprio projeto de Sócrates narrado em A República, de Platão, é uma tentativa de superar a luta de classes, o domínio da forma mercadoria e, sobretudo, a apropriação privada. Nesse sentido, projeta-se uma sociedade imutável que, paradoxalmente, retornaria a uma divisão do trabalho arcaica e apoiada num sistema de castas. Portanto, em A República propunha-se, em grande parte, um retorno ao perdido passado asiático da própria Grécia.[43] Hegel, nas suas Lições da filosofia da história, compreendera bem o problema e quando descreve o sistema de castas da Índia recorda-se de A República de Platão.[44] Marx, por outro lado, conhecendo bem tanto os textos gregos como os textos de Hegel, na mesma direção escreverá em O Capital: “A República, de Platão, no que se refere à divisão do trabalho como o princípio organizador do Estado, é somente a idealização ateniense do sistema de castas. Para alguns autores contemporâneos de Platão, como, por exemplo, Isócrates, o Egito aparecia como o país industrial modelo, qualidade que ainda lhe atribuíam os gregos na época do Império Romano.”[45]
Marx e Engels conheciam desde a juventude os textos gregos a respeito da imutabilidade asiática, os comentários e reflexões de Hegel, e portanto, seria impossível que muito cedo já não tivessem meditado sobre isso. Realmente, essa noção da imutabilidade das sociedades orientais já estava presente na época do Manifesto e aparece no próprio esboço deste texto, Princípios do comunismo, escrito por Engels em 1847. Assim, após perguntar pelas consequências da revolução industrial e da divisão da sociedade em burgueses e proletários, responde Engels mencionando os “países que ficaram à parte da história”. Como diz literalmente: “Todos os países semibárbaros que ainda ficavam mais ou menos à margem do desenvolvimento histórico (…) foram arrancados violentamente do isolamento.”[46] Se aqui não se determina quem são esses países “semibárbaros”, a seguir, a reafirmação da marginalidade histórica de certas nações nos remete de maneira determinada aos países orientais e, mais precisamente, China e Índia: “Assim, países que durante milênios não conheceram nenhum progresso, como, por exemplo, a Índia, passaram por uma completa revolução, e inclusive a China marcha agora de maneira direta para a revolução.”[47]
Na mesma direção, quase repetindo essas passagens de Princípios do Comunismo, a imutabilidade dos países orientais reaparece, agora, no próprio Manifesto Comunista. Como no esboço de Engels, mais uma vez, descreve-se a dissolução inevitável da imutabilidade oriental diante do avanço inexorável do capitalismo. O desenvolvimento dos instrumentos de produção e dos meios de comunicação conduzem todos os países, “mesmo as nações mais bárbaras (die barbarischsten Nationen), para a civilização”.[48] Que entendem os autores por “as nações mais bárbaras”? Sem dúvida nenhuma referem-se aos países orientais. Isto fica evidente na continuidade do mesmo parágrafo, no qual se faz referência direta à China: “Os baixos preços de suas [da burguesa] mercadorias constituem a artilharia pesada com a qual se derruba todas as muralhas da China e se conduz à capitulação os bárbaros mais fanaticamente hostis aos estrangeiros.”[49] No parágrafo seguinte, continuando a descrição da expansão burguesa escrevem: “Do mesmo modo que [a burguesia] subordinou o campo à cidade, subordinou os países bárbaros ou semibárbaros (die barbarischen und halbbarbarischen) aos países civilizados, os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente (den Orient vom Okzident).”[50]
Constatamos portanto que na época do Manifesto, Marx e Engels já pensavam a especificidade dos países orientais, ao menos como uma hipótese razoavelmente desenvolvida. Haviam pensado já: a noção do despotismo asiático; o sistema de castas na sua relação necessária com aquela forma rudimentar e fixa da divisão do trabalho; por consequência, a questão da imutabilidade das sociedades orientais. Porém, inegavelmente, a Ásia está ausente naquela frase que abre o Manifesto: “A história de todas as sociedades até nossos dias é a história da luta de classes”. Isto fica claro, sobretudo, quando o segundo parágrafo continua: “Livres e escravos, patrícios e plebeus, etc.” O que o texto está literalmente dizendo é de maneira efetiva que a história começaria com o modo de produção escravagista, ou seja, com a história grega. Sendo assim, não é apenas a Ásia que é excluída da história, mas também, como observara Engels, a comunidade primitiva. Teria razão assim Engels, apesar de tudo, nas suas atualizações? Apenas se reduzirmos o conceito de história (Geschichte), como fez Engels naquela sua nota, à sua mera realidade empírica.
Procuremos, ao contrário de história tal como é ali enunciado. “Toda a história até hoje é a história da luta de classes”, quer dizer, em primeiro lugar, que somente se chama de “história” o período a partir do qual existem classes sociais em luta. A história é entendida exatamente como o devir contraditório resultante da luta de classes, ou seja, o devir contraditório que surge na maneira antagônica através da qual, a partir de um certo momento, os homens produzem e reproduzem a sua vida. A comunidade primitiva, assim, na própria medida que não desenvolveu a apropriação privada, não desenvolveu as classes e está portanto aquém da luta de classes e da história, não há devir contraditório nela. Não tem sentido portanto a nota de Engels, tanto na sua relativização à “história escrita”, como nas suas atualizações empíricas a respeito da comunidade primitiva e, muito menos, ao remeter-nos para A origem da família…, uma obra inspirada na antropologia de Morgan e portanto numa conceituação totalmente diferente.
No entanto, qual seria o motivo da exclusão dos países do Antigo Oriente?[51] Da mesma forma como a comunidade primitiva permanecera fora daquele conceito de história, os países do antigo Oriente devem permanecemos coerentemente externos a este conceito de história, tal como foi definido no Manifesto. Nos países asiáticos prevalecia a rudimentar forma de divisão do trabalho que produziu o sistema de castas e a consequente imutabilidade.[52] Portanto, a partir de uma determinação conceitual precisa, assim, os países asiáticos estariam aquém da luta de classes e, desta maneira, aquém da história. Porém, tanto em Princípios do comunismo como no próprio Manifesto, os países orientais vão sendo integrados na história (da luta de classes) pela expansão do Ocidente, é esta expansão que quebra a sua “imutabilidade”, assim, a contradição da luta de classes lhes chega externamente e eles são dessa maneira integrados no processo da história da luta de classes, do devir contraditório, do turbilhão da revolução social.[53]
Na história como luta de classes, não se trata assim de descrever a positividade de um suposto encadeamento progressivo e evolutivo de um modo de produção em relação a outro (como fez o marxismo dogmático), pensando assim exclusivamente uma temporalidade diacrônica, mas sim, muito mais, trata-se de pensar o processo contraditório de um modo de produção em particular (o modo de produção capitalista), e a maneira pela qual ele realiza a superação das suas contradições, ou em outras palavras, como nele se realiza a própria história da luta de classes. Mas, para isto é justamente e sobretudo necessário pensar a relação negativa e dialética através da qual o capitalismo se relaciona com os outros diversos modos de produção, como os revoluciona, e como estes, por sua vez, o revolucionam em processos simultaneamente diacrônicos e sincrônicos. Nesse sentido, a história como luta de classes, sem dúvida, não é uma filosofia da história e, talvez, nem mesmo uma teoria positiva da história ou mesmo das etapas da revolução, mas sim, muito mais, uma teoria dialética da revolução permanente mundial.
Como já haviam esboçado nos Princípios do comunismo e no Manifesto, Marx e Engels voltarão muitas vezes a descrever esse processo, através do qual, a expansão da história ocidental mostra-se como o princípio da revolução mundial. Assim, em 1850, narrando a invasão de navios mercantis britânicos e americanos na China, observam que os baixos preços das mercadorias levam em pouco tempo à destruição da indústria chinesa excessivamente arcaica, embasada em trabalho manual. Acrescentam então Marx e Engels: “O imperturbável (unerschütterliche) Império do Céu atravessou uma crise social. Os impostos deixaram de entrar nos cofres públicos, o Estado estava à beira da bancarrota, a população encontrava-se massivamente empobrecida, estalaram as revoltas, o povo saiu às ruas, (…) O país achou-se à beira da perdição e foi agitado por uma violenta revolução (einer gewaltigen Revolution).”[54]
No entanto, da mesma forma que o modo de produção capitalista destrói a imutabilidade do imperturbável país asiático, conduzindo-o à revolução, este país asiático, por sua vez, imerso agora no processo contraditório da história mundial da luta de classes, é capaz de desencadear dialeticamente a revolução na Europa. Exatamente nesse sentido, de maneira precisa, descreve Marx a dialética da revolução mundial, em artigo que começa, significativamente, recordando a lógica hegeliana:
Um dos investigadores mais profundos, e também dos mais fantásticos, a respeito das leis do movimento que orientam a humanidade, costumava enaltecer aquilo a que ele chamava a lei da unidade dos opostos (das Gesetz von der Enheit der Gegensätze) como um dos segredos dominantes da natureza. Segundo a sua opinião, o ingênuo provérbio ‘Os extremos se tocam’ era uma grande e poderosa verdade em todas as esferas da vida, um axioma sem o qual o filósofo podia passar tanto como o astrônomo sem as leis de Kepler ou a grande descoberta de Newton. Quer a ‘unidade dos opostos’ seja ou não efetivamente de tal forma um princípio universal, de qualquer maneira, podemos ver um admirável exemplo da sua existência no efeito que a revolução chinesa parece poder vir a exercer sobre o mundo civilizado. Pode parecer muito estranho e bastante paradoxal afirmar que o próximo levantamento do povo da Europa, e o seu próximo passo na luta (…) pode depender mais provavelmente daquilo que se está agora a passar no Império do Céu (Reich des Himmels) – o verdadeiro polo oposto (Gegenpol) da Europa – do que qualquer outra causa política agora existente (…)[55]
Algumas páginas adiante, na mesma direção escrevia Marx, refletindo ainda a respeito da relação Oriente-Ocidente a dialética da revolução mundial:
O isolamento total (völlige Abschliessung) era a condição primeira da preservação da velha China. Tendo esse isolamento chegado a um fim violento por intervenção da Inglaterra, a dissolução verificar-se-ia com certeza como a de qualquer múmia cuidadosamente conservada num sarcófago hermeticamente selado quando é posta em contato com o ar. Agora, que a Inglaterra originou a revolução na China, a questão está em saber como é que, a seu tempo, essa revolução atuará de volta (zurückwirken wird) sobre a Inglaterra e, através da Inglaterra, sobre a Europa.[56]
Um outro texto que pode ser lembrado na mesma direção é o célebre e profético prefácio à segunda edição russa do Manifesto Comunista, assinado ainda conjuntamente por Marx e Engels em 1882, no qual também se reflete a respeito da dialética da revolução mundial:
Poderia a comunidade rural russa – forma por certo já muito deteriorada da primitiva propriedade coletiva da terra – passar imediatamente para a superior propriedade coletiva comunista? Ou precisará passar antes pelo mesmo processo de dissolução que constitui o desenvolvimento histórico do Ocidente?
A única resposta que se pode dar é a seguinte: se a revolução russa dá o sinal para uma revolução proletária no Ocidente, de modo que ambas uma à outra se completem (so dass beide einander ergänzen), assim pode a atual propriedade coletiva da terra na Rússia servir de ponto de partida (Ausgangspunkt) para um desenvolvimento comunista.[57]
Como se vê, assim, na história como história na luta de classes, se o presente (modo de produção burguês) atua sobre o passado “imutável” (o império asiático ou semiasiático), este, por sua vez, atua de volta negativamente sobre o presente da Europa e abre o caminho para a revolução social do futuro. Os tempos diacronicamente diversos dos diversos modos de produção (diversos momentos do passado, do presente e do futuro) convivem e se relacionam assim sincronicamente na simultaneidade dialética da história, a história entendida como luta de classes, ou mais precisamente, como teoria da superação das classes, isto é, como teoria da revolução permanente mundial. Como escreviam de maneira precisa Marx e Engels em 1850 à Liga dos Comunistas:
nossos interesses e nossas tarefas consistem em fazer a revolução permanente (die Revolution permanent) até que as classes relativamente possuidoras sejam desalojadas da dominação, o poder de Estado seja tomado pelo proletariado, e associação dos proletários se desenvolva, e não somente em um país, senão em todos os países dominantes do mundo, em proporções tais que cesse a concorrência entre os proletários destes países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado. Para nós não se trata da transformação (Veränderung) da propriedade privada, porém somente da sua exterminação (Vernichtung); não se trata do velamento (Vertuschung) das oposições de classe, senão da superação (Aufhebung) das classes, não se trata do aperfeiçoamento (Verbesserung) da sociedade existente, senão da fundação (Gründung) de uma nova.[58]
Estes princípios da teoria da revolução permanente mundial, aqui expostos de maneira clara, vinham se desenvolvendo desde a época de A ideologia alemã. Já neste texto o proletariado e o comunismo são postos como exigindo uma existência “histórica universal” (weltgeschichtliche)[59]. Da mesma forma, nos esboços do Manifesto – o texto Princípios do comunismo – sustentava Engels que a revolução comunista não era possível em um só país: “é uma revolução universal e terá, por isso, um âmbito universal”[60]. Certamente, a revolução permanente mundial é também o conteúdo conceitual mais profundo exposto no próprio Manifesto Comunista, conteúdo constatável desde aquela frase teórica inicial – “a história de todas as sociedades até nossos dias é a história da luta de classes” – até a célebre palavra de ordem que encerra o texto: “proletários de todos os países, uni-vos”.[61]
Portanto, compreendendo na imanência do seu conceito a frase que abre o Manifesto Comunista – toda história é até nossos dias a história da luta de classes – dificilmente podemos encontrar nela algo a atualizar empiricamente, pois, em primeiro lugar, não estamos diante de uma descrição empírica da história, e não serão meros fatos que a atualizarão. Não sendo uma descrição empírica, estamos portanto diante de uma teoria da história, mas uma teoria que na análise do seu conceito se manifestou, ao mesmo tempo, como teoria da revolução permanente mundial. Neste sentido, como atualizá-la melhor do que pela meditação a respeito de sua efetiva realização histórica? Isto é, conceitualmente, não se trata de a atualizar no sentido vulgar do empirismo e do jornalismo, mas sim, no sentido de perguntar pelo destino desta teoria nos últimos 150 anos. Quando dela no seu destino histórico passou de dynamis a energéia, de potência a ato?[62]
Neste sentido conceitual de atualidade, isto é, o movimento da potência ao ato, é provável que nenhuma teoria histórica e revolucionária jamais teve destino tão afortunado. Este caminho de atualização daquela frase do Manifesto, talvez o único que conceitualmente nos seja permitido, nos apontava já Marx no seu célebre prefácio à Contribuição à crítica da economia política. Lá afirmava Marx que após a derrocada do modo de produção burguês terminaria a pré-história da humanidade. Assim, atualizada pela revolução mundial, a história da luta de classes se transformaria em pré-história (Vorgeschichte), 63] e a história, recebendo um novo conceito, recomeçaria, sobre nodo fundamento, uma nova trajetória, agora, além da luta de classes. A teoria da história do Manifesto Comunista estaria estão definitivamente superada, mas, ainda assim, renasceria atual nas fronteiras do novo tempo, como e enquanto pré-história.
1. “A história de toda sociedade até os nossos dias é a história das lutas de classes.” (MEW, 4. p. 462, Berlim, Dietz Verlag, 1959).
2. “Das heisst, genau desprochen die schriftlich überlieferte Geschichte”. (ed. cit., nota segunda de Engels, p. 462).
3. Idem, ibidem. Já no prefácio de 1883 da edição alemã do Manifesto, portanto, logo após a morte de Marx, Engels, ao afirmar que toda a história e a história da luta de classes, acrescenta um parênteses no qual afirma: “desde a dissolução (Auflösung) do regime primitivo de propriedade coletiva do solo.” (MEW, 4, p. 57).
4. Idem, p. 462, nota de Engels para a edição inglesa de 1888, suprimida na edição alemã de 1890.
5. MEW, 4, p. 573. Quanto à aplicação dos princípios, reconhecem os autores que certa modificações caberiam, assim como em relação à história da literatura socialista (que evidentemente só acompanhava as publicações até 1847) e em relação à atitude dos comunistas quanto aos outros partidos de oposição (mas, aqui ainda apenas porque a maioria daqueles partidos já tinha desaparecido, pois as linhas gerais também estariam corretas) (cf. idem p. 573-574); porém, mesmo em relação às aplicações dos princípios, os autores inclinam-se no sentido de não fazer modificações, assim é que ao final do prefácio acrescenta-se: “Porém, o ‘Manifesto’ é um documento histórico, o qual nós não temos mais o direito de modificar”.
6. Cf. prefácio da primeira edição de 1884 e prefácio da quarta edição alemã de 1891, Marx-Engels, Obras escogidas, Editorial Progresso, tomo III, 1980, p. 203 e seguintes. Escreve por exemplo: “Naquilo que exponho, o leitor distinguirá em termos gerais facilmente o que pertence a Morgan e o que eu próprio acrescentei.” (op. cit., p. 205)
7. Idem, p. 203.
8. Realmente Marx escrevera anotações dessa obra em 1889-81, estas foram publicadas em russo em 1941.
9. Engels, op. cit., p. 221.
10. Engels, A origem da família…, ed. cit. p. 301.
11. Idem, p. 291.
12. Idem, ibidem. Como se sabe a parte V da obra intitula-se “Gênese do Estado ateniense”, p. 291 a 301, ed. cit.
13. Idem, p. 296. No entanto, esta origem do Estado ateniense saindo diretamente da gens, de forma alguma é típica ou universal e, na verdade, é falsa para o próprio Estado ateniense. Com os conhecimentos recentes adquiridos a respeito da civilização creto-micênica, sobretudo, após a decifração do linear B (Ventris e Chadwik, 1951-53), sabe-se que a civilização micênica já possuía Estado, era hierarquizada e com um aparato burocrático desenvolvido. Por outro lado, Atenas e a Ática, em geral, não foram desocupadas após o abalo que destruiu aquela civilização (1200 a.C.), estando entre as regiões nas quais houve uma certa continuidade, a própria Acrópole é o símbolo dessa relativa continuidade (Cf. Finley M.I., Les premiers temps de la Grèce, trad. francesa, Paris, Maspero, 1973, p. 83; analisa essa relatividade continuidade, Vernant J-P., in Origens do pensamento grego, cap. III, “A crise da soberania”, p. 26-33; ampla bibliografia encontra-se nessas duas obras.) Neste caso, como já observou M. Goedelier, tanto Morgan como Engels foram bem vítimas da sua época, afinal, Schliemann começou as escavações de Troia em 1870, aquelas de Micenas começaram em 1874 e as principais descobertas e A. Evans a respeito de Creta tiveram início em 1900. (cf. Godelier M., Sobre el modo de produccion asiático, trad. espanhola, Barcelona, Martinez Roca, 1972, p. 37).
14. Idem, p. 300: inclusive na p. 301, discorre sobre as dimensões quantitativas da escravidão em Atenas que, segundo ele, teriam sido também a causa da ruína de Atenas, por impedir o desenvolvimento do trabalho livre.
15. No fim da primeira parte do Manifesto se lê: “Ela (a burguesia) produz antes de tudo seus próprios coveiros. Sua derrocada e vitória do proletariado são igualmente inevitáveis (unvermeidlich).” (ed. cit., p. 474)
16. Stálin, Cuestiones del leninismo, p. 546, Moscou, Lenguas Extranjeras, 1946.
17. Idem, p. 552.
18. Idem, p. 540.
19. Histoire de l’Antiquité, sous la Direction de V. Diakov et S. Kovalev, Moscou, Editions en Langues Etrangéres.
20. Cf. idem, p. 68-69. Aqui descreve-se a “democracia militar” como algo universal e aplicável indistintamente para África, Ásia, Europa, América. Essa democracia militar seria apenas uma fase rápida de transição entre a comunidade primitiva e o modo de produção escravagista, não caracterizando assim um outro modo de produção.
21. Idem, p. 318. Essa noção de “democracia militar” é realmente mencionada por Engels na Origem da família, cf. ed. cit., p. 289-290, e seria o verdadeiro significado da palavra basileia, normalmente pensada como sendo uma “realizada” e o basileus sendo pensado como um rei, quando, na verdade, este seria apenas um chefe militar.
22. Histoire de l’antiquité, ed. cit., p. 75.
23. Idem, p. 76. Na mesma direção, lembra Mandel os seguintes manuais: Avdjev, W.I. Geschichte des alten Orients, Berlim, Volkseigner Verlad, 1953; nesta obra “os povos da Índia e da China seguiram a mesma via da constituição gentílica à escravidão” (p. 12-13). Também An outline history of China, Pequim, Foreign Languages Press, 1958, sustenta que a mais antiga sociedade de classes na China já era fundada na escravidão (p. 15). Cf. Mandel E., A formação do pensamento econômico de Marx K., Rio de Janeiro, Zahar, 1968, p. 123. Da mesma maneira, ainda em 1985, afirma-se que a China passou diretamente da comunidade primitiva ao escravagismo: cf. Li Min e Xu Guang, História da China, Pequim, Línguas Estrangeiras, 1985, p. 5 e seguintes.
24. Como escreve Marx nos Grundrisse, mostrando o despotismo da forma asiática na qual o indivíduo é sempre escravo: “Por outro lado, já que nesta forma [asiática] o indivíduo (der Einzelne) jamais se torna proprietário, mas apesar possuidor (Besitzer), no fundo, é ele próprio a propriedade, o escravo daqueles nos quais a unidade da comunidade existe (…)”; Mega, K. Marx Ökonomische Manuskripte, 1857/58, Text – Teil 2, Berlin, Dietz Verlag, 1981, p. 397.
25. Cf. entre outros: Wittfogel K., Le despotisme oriental, Paris, Minuit, 1977, particularmente p. 483-491, narração da polêmica a partir de 1925, Riazánov D. B., “Marx K. y el origen de la hegemonia de Rusia en europa”, p. 9-87, e Rabehl B., “La controversia en el interior del marxismo ruso y sobre los origenes occidentales o asiáticos de la sociedad, del capitalismo y del Estado zarista en Rusia”, p. 193-267, in Escritos sobre Rusia, México, Siglo XXI, 1980; Sofri G., O modo de produção asiático, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, particularmente, cap. II, “Eclipses do modo de produção asiático”, p. 68-106.
26. Entre outras publicações: La pensée, 114, abril de 1964; Recherches Internationales à la lumière du marxisme, 57-58, janeiro/abril de 1967; Kosambi D., An introduction to the Indian history, Bombaim, Popular Book, 1956; G. Sofri, O modo de produção asiático, Paz e Terra, 1977, particularmente, cap. III, “Reabre-se a discussão”, p. 109-147; Vidal-Naquet P., “K. Wittfogel et la notion de modo de production asiatique”, in La démocratie grecque vue d’ailleurs, Paris, Flammarion, 1990.
27. Cf. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Samtliche Weke, volume XI, editadas por Glockner, Sttutgart, Frommman Verlag, 1961; cf. “Einleitung”, p. 25-120; “Die orientalische Welt”, p. 158-295; particularmente, ver a transição aos gregos, “Uebergang zur griechischen Welt”, p. 290-295. Hoje sabemos que a afirmação hegeliana, de que com exceção do soberana ninguém era propriamente livre nos Estados orientais, não é nenhum exagero de origem eurocentrista. Como escreve C. Flamarion Cardoso a propósito do Egito: “Conhecemos hoje bem melhor a organização da corveia real graças à publicação por W.C. Hayes de um documento de fins do Reino Médio: o papiro Brooklyn 35.1446. (…) Ora, o que nos ensina o papiro do Reino Médio é que pessoas em princípio livres e que exerciam profissões variadas, quando chamadas à corveia real, eram encerradas à noite na prisão local durante o período do trabalho compulsório, cuja natureza era variável: conserto de diques e canais de irrigação, tarefas agrícolas, construções, etc. Se tentassem escapar à corveia pela fuga, depois de um prazo de seis meses transformavam-se em escravos hereditários. Para forçar os fugitivos a entregar-se, familiares seus podiam ser aprisionados.” (Trabalho compulsório na Antiguidade, Rio de Janeiro, Graal, 2ª ed., 1987, p. 21-22); cf. também fragmentos do Papiro Brooklyn 35.1446, in idem, ibidem, p. 81-82.
28. Como escreve M.-F Baslez: “As guerras Médicas são portanto apresentadas por Ésquilo e Heródoto como o combate dos livres cidadãos gregos, defensores de suas pátrias, contra as armadas Bárbaras escravas, tributárias do Grande Rei.” (in Mossé C. e outros, La Grèce Ancinne, “Le péril barbare: une invention des Grecs?”, Paris, Seuil, 1986, p. 289). No entanto, a liberdade grega não era somente uma realidade ideológica criada na época clássica, pois a liberdade individual grega antecedera inclusive a democracia dos séculos V e IV. Nesse sentido, cf. A. Snodgrass, La Grèce archaïque, Paris, Hachette, 1986, cap. V., “L’émergence de l’individu”, p. 193-241. Escreve Snodgrass na p. 194: “Uma das características essenciais da cultura grega foi que, bem antes da invenção do conceito de democracia, existia já uma noção precisa dos direitos do cidadão como indivíduo”. Certamente, o desenvolvimento dos direitos do indivíduo na Grécia arcaica é inseparável da apropriação privada, inclusive da terra; vide a crise agrária na época de Sólon; a própria proibição da escravidão de atenienses estabelecida por Sólon atesta a relação entre a liberdade individual e a propriedade privada da terra (cf. Austin M. e Vidal-Naquet P., Economies et societés en Grèce ancienne, Colin A., 1972, p. 89-91).
29. Particularmente importantes, sobre o Oriente, foram as leituras de Adam Smith, Richard Jones, John Stuart Mill, James Mill, Bernier, cf. Wittfogel K., Le despotisme oriental, Paris, Minuit, 1977, p. 450-451.
30. K. Marx, Contribuição à crítica da Economia Política, MEW, 13, p. 9.
31. Marx, Ouevres, Philosophie, I, trad. e edição de M. Rubel, Paris, Gallimard, p. 905.
32. Idem, ibidem.
33. Idem, MEW, 3, p. 39.
34. Idem, ibidem.
35. Cf. ed. cit., capítulo “Indien”, p. 191-233; Hegel embasava suas reflexões nas descrições de autores antigos (tais como Arriano e Strabão) e relatos modernos; assim, por exemplo, escreve: “as castas (die Kasten) não devem misturar-se uma com a outra, nem casar-se. Porém, já Arriano (Ind. II), havia contado sete castas, e no nosso tempo se descobriu mais de trinta, que surgiram do cruzamento dos diferentes estamentos (Stände).” (p. 200)
36. Idem, ibidem: “(…) um rei procurou um meio de classificar esses sem casta (Kastenlasen) (…)”
37. Na carta a Annenkov (28.12.1846), na qual Marx critica justamente a falta de historicidade das categorias de Proudhon, se referindo também ao regime de castas, pergunta: “Mas o regime de castas não era uma certa divisão do trabalho?” (in, K. Marx, Oeuvres, Economie, I, p. 1441).
38. Marx, Oeuvres, Economie, I, M. Rubel, Paris, Gallimard, p. 101.
39. Idem, ibidem.
40. Idem, ibidem.
41. Idem, ibidem. No livro I de O Capital, cap. XII, “Divisão do trabalho e manufatura”, Marx cita literalmente este trecho da Miséria da Filosofia e no parágrafo seguinte faz uma das suas mais longas e mais completas caracterizações do modo de produção asiático: “Aquelas antiquíssimas e pequenas comunidades hindus, por exemplo, que em parte ainda subsistem, baseando-se na posse (Besitz) coletiva do solo, em uma combinação imediata de agricultura e trabalho manual e numa divisão fixa (festen) do trabalho, que, ao criar novas comunidades servia de plano e esboço (…) A grande massa dos produtos se destina a satisfazer necessidades diretas da coletividade, sem que adquiram o caráter de mercadorias; (…) Somente se converte em mercadoria o excedente da produção, e esta troca se realiza, já, em parte, nas mãos do Estado, ao qual corresponde desde tempos remotos, como renda em espécie, uma quantidade determinada de produtos. Nas diversas partes da Índia existem diversas formas de comunidade. Na sua forma mais simples, é a comunidade que cultiva a terra coletivamente, distribuindo imediatamente os produtos entre seus membros, ao mesmo tempo que cada família se dedica a fiar, a tecer, etc., como indústria doméstica acessória.” Além destes, descreve Marx, existem aqueles que exercem as funções de juiz, de guardador de fronteira, de alfaiate, de ferreiro, etc., ou seja, doze a quatorze pessoas que vivem à custa da comunidade. E comenta Marx: “O mecanismo destas comunidades obedece a uma divisão de trabalho submetida a um plano; (…) A lei que regula a divisão do trabalho na comunidade atua aqui com a força inexorável de uma lei natural (…) A simplicidade do organismo de produção destas comunidades que, sendo autossuficientes, se reproduzem constantemente na mesma forma e que, ao desaparecer fortuitamente, voltam a restaurar-se no mesmo lugar e com o mesmo nome, nos dá a chave para explicarmos esse segredo da imutabilidade (Unveränderlichkeit) das sociedades asiáticas, (…)” (MEW, 23, p. 378-379).
42. O diálogo Crítias, por outro lado, continuação direta do Timeu, narra o mito da civilização desaparecida chamada Atlântida. A narração é realizada por Críticas a partir de um suposto manuscrito que Sólon teria trazido do Egito. Esta civilização teria sido parte do passado asiático esquecido da civilização grega. Atenas teria lutado contra Atlântida e a derrotado, no entanto, um grande cataclisma teria sido a causa da destruição definitiva dessa civilização. Significativamente, as sociedades descritas no Timeu e no Crítias, a Atenas do passado e a Atlântida, coincidem com as diversas características da sociedades asiáticas. Nessa Atenas pré-homérica, o génos dos sacerdotes (χ ω ρ ι ς) de todos os outros, e as diversas funções sociais são cumpridas por estamentos também separados: existe o génos dos demiurgos, o dos agricultores, o dos pastores, etc… (Timeu 24a) Teríamos assim, portanto, uma divisão do trabalho fixa e especializada, praticamente de castas. Por outro lado, na ilha de Atlântida não existia propriedade privada, os habitantes moravam em alojamentos comuns, tinham tudo em comum. Descreve-se em Atlântida também diversas obras suntuosas que caracterizam justamente as sociedades ditas asiáticas: o palácio central era cercado geometricamente por anéis de terra e água, com canais navegáveis que iriam até o mar; ressalta-se, sobretudo, a construção de complexas obras de irrigação (Crítias – 117 a-c), característica esta (a administração da água) que, como se sabe, está entre os elementos fundamentais de pelo menos diversas sociedades asiáticas antigas (por exemplo Egito e Índia). Como se vê, aqui temos descritas algumas das principais características do modo de produção asiático, segundo os próprios Marx e Engels da maturidade: ausência da propriedade privada; grandes obras públicas, sobretudo de irrigação; uma administração burocrática-palaciana; fixa divisão do trabalho que produz um regime de castas e, evidentemente, a imutabilidade. Estas semelhanças entre aquelas representações e o conceito de modo de produção asiático não são nada espantosas. Aquelas representações do passado da Grécia apenas reproduzem de maneira semi-mítica s civilização creto-micênica que mesmo historiadores não-marxistas reconhecem hoje como tendo sido bastante próxima do conceito de modo de produção asiático. (Cf, Finley M.: “The mycenaean tablets and economic history”, Economic History Review, 10, 1957-1958, p. 128-141; para marxistas, consultar, sobretudo, Tökei F., “Le Mode de production asiatique…”, in La Pensée, p. 114, 1964, p. 7-31, Parain C., “Proto-história mediterrânea e o modo de produção asiático”, in O modo de produção asiático, Lisboa, Seara Nova, 1974, p. 147-174; e Garlan, Y., Les esclaves en Grèce ancienne, Paris, La Découberte, 1995, particularmente, p. 31-35, a respeito da “esclavage mycénien”.
43. Este projeto não é, no entanto, a última palavra nos diálogos de Platão. Após o diálogo Sofista, no qual se rompe com o imobilismo de Parmênides dando ser ao não-ser e assim admitindo o ser da contradição, do devir, do movimento, surgirá outro projeto político descrito no diálogo Leis. Nesta obra, o Ateniense – personagem que predomina no diálogo – propõe uma sociedade na qual, se recuperando a democracia, todas as decisões são tomadas por conselhos eleitos, os próprios cargos militares são eleitos por conselhos, e o chamado “conselho noturno”, órgão supremo que se reunirá ao fim de cada dia da cidade, representa a suprema síntese ou “sinóptica” dos acontecimentos vividos pelos cidadãos. Como se vê, a dialética deixa de ser a “ciência imutável do Bem” da República e transforma-se no saber da democracia dos conselhos expresso no “conselho noturno”. Nesta sociedade democrática dos conselhos, diga-se de passagem, a propriedade privada continua abolida, admitindo-se porém a posse privada.
44. Ed. cit. p. 201.
45. MEW, 23, p. 388-389. Nestas páginas, Marx ainda cita longamente trechos do Busiris de Isócrates e da Ciropedia de Xenofonte, recordando também a Diodorus Siculus, historiador grego do período de César e Augusto, que, na sua βῐβλῐοθήκη, uma História Universal em quarenta livros, dedica o livro I ao Egito, e o segundo a outros países orientais, Mesopotâmia, Índia, Cítia, Arábia (cf. Diodorus Siculus, Library of History, The Loeb Classical Library, 12 volumes; os livros I e II encontram-se no primeiro volume desta edição).
46. Obras escogidas, ed. cit., vol. I, p. 86.
47. Idem, ibidem.
48. MEW, 4, p. 466.
49. Idem, ibidem.
50. Idem, ibidem.
51. Como perguntava G. Sofri a respeito de A ideologia alemã e do Manifesto: “Dos povos do Oriente e de suas características histórico-sociais, quase não se fala nestas duas obras. Pode-se deduzir disto que Marx e Engels pensavam nos povos do Oriente como catalogáveis em um dos três estágios mencionados [mundo greco-romano, germânico-feudal e burguês moderno]?” (op. cit., p. 23) Evidentemente, não!
52. Escreve F. Tökei: “É uma questão bastante discutida (…), saber se as castas sociais das diferentes sociedades asiáticas concordam com as verdadeiras classes sociais e se sim, até que ponto. Mas, não pode haver dúvida que Marx concebia o sistema das castas asiáticas não como uma forma de sociedade sem classes, mas como uma forma da relação de classe explorador-explorado. (…); o sistema de casta não é evidentemente uma instituição da sociedade primitiva, mas uma instituição da sociedade de classes precoce, pouco desenvolvida.” (artigo citado, p. 19, in La Pensée, 14, 1964). Se o sistema de castas pode ser entendido como uma forma precoce da sociedade de classes, e precoce, na exata medida em que o antagonismo de classe (e o seu consequente devir) no sistema de castas ainda permanece fixo, estabilizado, aquém da luta, engessado em um sistema hierárquico imutável, resultante, como dissera Marx, de um estágio rudimentar da divisão social do trabalho. Nesse sentido preciso, o sistema de castas permanece aquém da luta de classes (ainda que não aquém da sociedade de classes).
53. Como observa Wittfogel: “Marx evitou, quando falava do despotismo oriental, de utilizar o termo explosivo de ‘luta de classes’. Mas deixa claro que, em tal regime, não existia nenhuma luta de classes no sentido que a entende o Manifesto Comunista, nenhuma luta política em vista de uma transformação social progressiva, nenhuma revolução social. ‘A única revolução social que alguma vez conheceu a Ásia’, declarou ele, foi o resultado da ação de conquistadores não asiáticos, os ingleses, que, apesar de sua política colonial ‘ignóbil’, e na qualidade de instrumentos cegos da história, provocaram na Índia o surgimento de relações humanas politicamente e socialmente mais decentes.” (Le despotisme oriental, ed. cit., “nouvelle préface”, p. III)
54. Marx e Engels, 31.1.1850, MEW, 7, p. 221-222.
55. Marx, “Revolução na China e na Europa”, publicado in New-York Daily Tribune, 14.6.1853, MEW, 9, p. 95.
56. Idem, p. 97.
57. MEW, 4, p. 576.
58. Mensagem do CC à Liga dos Comunistas, MEW, 7, p. 247-248.
59. MEW, 3, p. 36.
60. Ed. cit., p. 93. Pergunta Engels no seu ponto XIX: “É possível esta revolução em um só país?” E ele próprio responde: “Não. A grande indústria, ao criar o mercado mundial, uniu já tão estreitamente todos os povos do globo terrestre, etc. (…)” (idem, ibidem)
61. Inclusive na Mensagem à Liga dos Comunistas, afirma-se que as posições da Liga estão corretas desde 1847 e inspiradas no Manifesto Comunista (cf. começo do documento, MEW, 7, p. 244.)
62. Já em 1917 ocorreu a Revolução Russa (um pouco como profetizara aquele prefácio de 1882), veriam diversas revoluções proletárias por todo o mundo, dois terços da humanidade, até pouco tempo, viviam em sociedades que se colocavam, de uma maneira ou de outra, como de certa inspiração marxista; a maioria dessas revoluções ocorreram em países que possuíam, em algum sentido, certos resíduos pré-capitalistas, asiáticos, semi-asiáticos, feudais, ou mesmo mais primitivos, e certamente, estas revoluções foram, em grande parte, o resultado da expansão do Ocidente burguês que os integrou plenamente na história da luta de classes. É inegável, por outro lado, que essas revoluções no retorno dialético da sua negatividade, provocaram, diversas vezes, nos países dominantes (Alemanha, Espanha, França, Itália, etc.) abalos revolucionários que só com grande dificuldade foram contidos; se a contrarrevolução capitalista destruir hoje a maioria dessas formações que começaram a construir sociedades socialistas, estas derrotas, na sua maioria, estão vinculadas a grupos stalinistas e pequeno-burgueses que se afastaram daquela teoria revolucionária da história (vide a teoria do socialismo em um só país, a negação do modo de produção asiático, a periodização mecânica, evolucionista e unilinear dos modos de produção, o menosprezo pela dialética, em uma palavra, a teoria da revolução por etapas ao invés da revolução permanente) e portanto, mesmo a maioria dessas derrotas apenas confirma e atualiza mais ainda aquela teoria. Acrescente-se ainda que Ásia, África, América e Europa, muito mais do que em 1847-48, apesar das desigualdades das diversas formações, estão unificadas hoje numa única temporalidade e vivem uma única história como explicitamente previa o Manifesto. Pense-se na chamada “globalização” e nos acontecimentos mais imediatos. Observemos os “tigres asiáticos” (apesar de postos lá no polo oposto do mundo, como diria Marx), os fatos econômicos lá ocorridos provocam catastróficos efeitos imediatos nas bolsas de todos os países do mundo. O desemprego massivo causado pelo avanço do capital constante sobre o variável, a queda da taxa de lucro, a necessidade absurda e paradoxal de destruir forças produtivas para escapar das crises cíclicas de superprodução e manter as atuais relações sociais, tudo isso tão absolutamente presente na teoria do Manifesto é, na verdade, muito mais atual que na época do próprio Manifesto.
63. MEW, 13, p. 9.