Transição Socialista

Balanço da eleição: o fetiche da democracia

A nosso ver, pouco resta para um balanço do segundo turno eleitoral que já não tenha sido dito ao final do primeiro. Aqui, portanto, reforçaremos elementos anteriores, com destaque para o fetiche da democracia e o papel da nossa “esquerda socialista” na manutenção da ordem institucional.


Quem ganhou a eleição?

A polarização Lula-Bolsonaro consolidou-se cedo no país (desde o final de 2019, quando o primeiro foi solto) e conformou o processo eleitoral mais longo, monótono e previsível das últimas décadas. Não porque o resultado em si fosse previsível, mas porque os argumentos apresentados, os debates televisivos, a capitulação da “esquerda socialista”, o estrebuchar-se das bases derrotadas (fosse qual fosse) – tudo era amplamente esperado e, podemos dizer, seguiu um script maquiavelicamente traçado pelos contendores.

“Monótono”, aliás, é um bom termo, pois no processo soou sempre a mesma voz. Por meses, o tempo e o colorido da vida foram roubados à espera do grande dia de apertar o botão. A lógica política foi reduzida a um dedo da mão e o país inteiro foi voltado ao glorioso domingo de 30 de outubro de 2022. Numa tortura mental quase sem fim, o fetiche da democracia reinou tanto entre os que amavam a urna quanto os que a odiavam, tanto entre os que votavam com flores quanto os que iam à cabine com armas no coldre.

Quem ganhou? Certamente, a burguesia, que reconheceu com facilidade a pobre (e velha) música do coro dos dois candidatos. De um lado estava Lula, apresentando-se como o apaziguador das discórdias e re-instaurador das harmonias. Do outro, Bolsonaro, que subiu ao palco como mantenedor da ordem e da liberdade. As palavras “ordem”, “liberdade”, “harmonia” e “paz” soaram como as quatro estações de Vivaldi aos ouvidos da classe dominante.

Quem perdeu? Definitivamente, o proletariado, a classe trabalhadora, pois foi completamente instrumentalizada e mobilizada por um ou outro dos contendores burgueses, numa forma pueril, inocente ou até parva, na qual foi destruído qualquer espaço para reflexão, qualquer possibilidade de ampliação de horizontes, qualquer independência política. 

A imagem talvez mais simbólica do processo seja a da torcida do Corinthians correndo as ruas aos gritos de “Democracia! Democracia!” para liberar o trânsito ao “direito de ir e vir” (mercadorias, antes que pessoas). Quando proletários surrados das periferias das grandes cidades, quase todos pretos ou pardos, marcados pela exploração e pela brutalidade do regime, saem às ruas entoando o nome de seu algoz (o próprio regime), por qualquer motivo que seja, algo não vai bem…

A democracia burguesa é o maior câncer da nossa “esquerda revolucionária”

Quem são os maiores responsáveis pela derrota da classe trabalhadora frente à ilusão do regime democrático? Acima de tudo, a chamada “esquerda socialista”. A ela e a mais ninguém caberia a tarefa de erguer outra voz. Assim, é somente graças à sua covardia que se estabeleceu e se manteve o mono-tom eleitoral. Até mesmo Ciro Gomes, um burguês com tetos de vidro (para dizer o mínimo), fez mais para desafinar o coro dos contentes do que a chamada “esquerda radical”. Vera Lúcia (PSTU), Leonardo Péricles (UP) e Sofia Manzano (PCB) voltaram afinal ao lugar de onde saíram, ao qual sempre correm quando a coisa aperta: as asas de Lula. A questão que fica é: deveriam um dia ter saído daí? Foi para ser puxadinho do PT que vocês criaram seus partidos?

O motivo da adaptação da nossa “esquerda radical” à democracia burguesa – da qual o PT é um dos fiadores – é antes de tudo material. Seus aparelhos partidários e sindicais dependem dos fundos que lhes são destinados pelo Estado. Em tais condições, não adianta falar de “independência de classe”. Sua pequena burocracia partidária se desenvolveu, construiu suas vidas, carreiras e esperanças político-pessoais principalmente sob a normalidade institucional das últimas décadas. Num país afogado na miséria, teme-se perder tão pouco. O risco de as coisas mudarem repentinamente, em situações de sobressaltos políticos que exigem posições enérgicas e claras, arranca-lhes o chão e acende em suas mentes uma luz vermelha: é preciso salvar o estado de coisas atual. Essa esquerda quer “paz” para manter sua vagarosa suposta construção.

Como não poderia deixar de ser, tais partidos têm de justificar tudo isso de outro modo. Eles mascaram seu conservadorismo político com uma série de argumentos, que conformam um discurso ideológico. Deturpando revolucionários do passado, desenvolvem teses simplistas de que a burguesia viveria uma “crise estrutural”; de que a nossa “época histórica” seria apenas a de “revolução e contrarrevolução”; de que à burguesia não caberia alternativa histórica, para explorar mais os operários, senão a ditadura policial pura e simples; de que o Brasil só saiu da ditadura militar, na década de 1980, graças à luta da classe trabalhadora etc. Tais posições visam a manter suas bases políticas eletrizadas, num permanente e delirante frisson político esquerdista, que permite instrumentalização a todos os propósitos.

Algo bastante diferente pode ser encontrado em concepções teóricas mais avançadas, mais complexas e adequadas à realidade contemporânea capitalista — como as desenvolvidas por Marx a partir da década de 1850 e pelos bolcheviques no início do século XX. O modo de produção capitalista, na realidade, não vive uma crise estrutural; a burguesia não necessita de ditaduras policiais permanentes para ampliar o grau de exploração dos trabalhadores; o regime democrático é a forma política mais adequada à dominação política da classe capitalista. A impessoalidade da dominação democrática é a que melhor corresponde às próprias relações derivadas das trocas mercantis (forma da mercadoria). O fetiche da mercadoria manifesta-se também como fetiche da democracia, pois nessa política, assim como na esfera da circulação (mercado), os “homens” são “iguais” e “livres” para exercer seus “direitos”. Sobretudo na situação de inexistência de uma organização revolucionária dos trabalhadores (como hoje), a “violência extra-econômica” da classe burguesa não precisa ser empregada. Marx já esclarecia sobre isso: 

“A compulsão surda das relações económicas confirma a dominação dos capitalistas sobre os operários. Violência imediata, extra-económica, com efeito, é sempre ainda aplicada, mas apenas excepcionalmente. Para o curso habitual das coisas, os operários podem permanecer abandonados às ‘leis naturais da produção’, isto é, à sua dependência do capital, decorrente das próprias condições da produção, por eles garantida e eternizada.” (O capital, cap. XXIV, livro 1)

“Vitória contra golpe” ou contorno da instabilidade burguesa iniciada em junho de 2013?

O sistema de freios e contrapesos do Estado Democrático de Direito, concebido pela burguesia em ascensão (séc. XVIII), com suas válvulas de escape, contorna e resolve a grande maioria das dissensões no seio da própria classe dominante. Nestas eleições vimos as instituições democrático-burguesas funcionarem plenamente para o que foram criadas – a instabilidade foi resolvida sem lançar a sociedade na desordem ou caos.

A montanha pariu um rato: o temido “golpe” bolsonarista foi desfeito pela caneta de um ministro do TSE. As Forças Armadas não esboçaram reação, afinal, sabem que com Lula manterão seus penduricalhos, seus bônus, em suma, sua parasitagem usual sobre a nação trabalhadora. (O único porém, para elas, é que talvez com o novo governo tenham de trabalhar mais, subir morros, invadir favelas, instalar UPPs, deixar corpos pelo chão no Haiti, etc., essas belas coisas que deixou de fazer quando teve um presidente “seu”.)

É claro que Bolsonaro tinha de eletrizar parte de seus eleitores após o resultado. Toda encenação, para funcionar, tem de ter um lastro da realidade. Todo caudilho tem de arregimentar um séquito e insuflar uma massa. Mas queria ele realmente a dor de cabeça de um golpe de Estado contra tudo e todos? Contra o grosso da burguesia nacional e internacional e a maioria da população do próprio país? Bolsonaro não é louco. Como Trump nos EUA, Bolsonaro quer se manter no jogo político dos próximos anos, garantir imunidade a si e aos seus, ter papel de destaque (possivelmente central) no esquálido bipartidarismo brasileiro. Ele usa as massas para valorizar o passe. 

Muito mais do que “derrota do golpe”, o atual pleito e a eleição de Lula devem ser compreendidos como o contorno da instabilidade política burguesa dos últimos anos, particularmente do pós-junho de 2013 (que teve impacto não apenas nas ruas e escolas ocupadas pela juventude, mas também no maior pico de greves desde o fim dos anos 1980, exatamente no momento em que Dilma era impeachmada). 

As massas que lutaram sem direção para afastar o PT do poder até 2018 agora se cansaram, graças à baderna política federal dos últimos quatro anos. Sobretudo, e com razão, enojaram-se frente ao descalabro do governo na pandemia (que provavelmente teria ocorrido também sob um governo petista, pois nos governos “esquerdistas” da Argentina e do México registrou-se o mesmo). Sozinhas, abandonadas desde cedo pelos representantes da “esquerda”, confundidas pelos representantes da “direita” (cujas práticas equivaleram às dos petistas), as massas se paralisaram e ficaram céticas. 

A eleição de Lula, por isso, simboliza o retorno à normalidade pré-junho de 2013; o fim momentâneo da conjuntura que, pelas pautas mais diversas (de “esquerda” ou “direita”), lançava massas de centenas de milhares às ruas. Não à toa, a chapa Lula-Alckmin é o puro sangue da repressão a junho de 2013. Lá, o governador Alckmin, secundado pelo prefeito Haddad (um dos disfarces de Lula) caçou, prendeu e até matou manifestantes no coração econômico do país. 

Ao colocar para si como tarefa central combater um golpe inexistente, a nossa “esquerda socialista” não apenas capitulou à ordem democrático-burguesa, mas também se mostrou plenamente uma engrenagem (parte integrante) do processo de restabelecimento da ordem burguesa. Em 2013 ela se colocou em grande medida contra as “badernas” e os “excessos” dos supostos “black blocs”, hoje ela vai às urnas feliz para votar em Alckmin. Ao menos não há incoerência.

“Se estamos todos juntos, contra quem vamos lutar?”

Na prática, como se vê na equipe de transição montada por Lula e Alckmin, há confluência entre sua política econômica e o “liberalismo” proposto por Bolsonaro. Os interesses burgueses são os mesmos. Assim, o que tendem a produzir, no médio prazo, as medidas da equipe de Lula? Na prática, uma dissolução das oposições. A tendência é que o chamado “bolsonarismo” murche como um balão. Isso já é visto no fisiologismo. A maior parte dos “bolsonaristas” e da “extrema direita” da política institucional-parlamentar, como era previsível, já declara abertamente seu interesse em “trabalhar” com o novo presidente. Partidos que estiveram na base de apoio a Bolsonaro ou bolsonaristas em demais pleitos eleitorais já declaram apoio a Lula e interesse em compor algumas das dezenas de ministérios de seu novo governo. O próprio partido de Bolsonaro, o PL, já acena para Lula (apesar do presidente do partido dizer o contrário, as bases foram “liberadas” para isso). Um prazo maior, entretanto, deve ser necessário para a absorção dos pobres lunáticos, “militantes raízes” do bolsonarismo. Mas assim que a mais-valia extraída do proletariado produtivo começar a cair no bolso desses setores infelizmente miseráveis, com as benesses lulistas, parte significativa dessa oposição de ruas também minguará. 

Começa portanto a ser desenhada a situação em que desaparece toda oposição ao futuro governo, ao menos por um período. A situação parece paradoxal. Se Alckmin, FIESP, FEBRABAN, CNI, os sindicatos, Temer, FHC, os “economistas do plano real”, o PCdoB, o MDB, o MST, o MTST, o centrão, o PSOL, o orçamento secreto, Arthur Lira, o PCB, o PSTU, Rodrigo Pacheco, Delfim Netto e até parte do chamado “bolsonarismo” já estão com Lula, quem ficará contra ele? Lembremos um antigo bordão trotskista, nos bons tempos (décadas atrás) da luta contra os stalinistas adaptados à burguesia nacional: “Se estamos todos juntos, contra quem vamos lutar?”. O aparente paradoxo é apenas a comprovação da estupidificação da política gerada pelo lulopetismo. Na realidade, não há paradoxo. Da parte dos “representantes” da classe trabalhadora – porque dos demais nada se espera –, há apenas capitulação. Lula pagará bem o PSOL, possivelmente com um (pequeno) ministério. Aos demais, PSTU, PCB e UP – por afinal também lhe serem úteis –, dará uma migalha, com fundo partidário e imposto sindical. 

O fim das oposições, ao menos por um período, é o preço alto a ser pago pela classe trabalhadora graças à capitulação de seus “dirigentes”. Não adianta a “esquerda” falar que “no dia seguinte à vitória de Lula estará na oposição”, pois não haverá oposição a ser feita no dia seguinte e talvez até nos anos seguintes. Ao final de 2002, após a eleição de Lula, a mesma capitulação da “esquerda” levou à letargia e morte da oposição proletária por dois anos e meio. Isso garantiu a Lula a aprovação de reformas terríveis, como a previdenciária. Somente após o escândalo do mensalão, em meados de 2005, iniciou-se uma oposição geral ao PT e, dentro dela, uma maior oposição de esquerda, proletária. Algo análogo tende a ocorrer agora, com a derrota ou morte das oposições de esquerda por um período mais ou menos longo. Claro, a comparação deve ser tomada cum grano salis, pois as situações econômicas são diferentes: em 2002 havia um ascenso econômico (após a crise de 1999); agora há uma possível eclosão de crise à vista. 

Todos devem estar desde já prontos para a oposição, mas sem esquecer por um segundo por que essa oposição está hoje dificultada. A primeira tarefa dos lutadores honestos pelo socialismo é fazer um balanço grave, profundo e implacável do por que a “esquerda” atual tornou-se parte integrante da ordem capitalista