Transição Socialista

Dois anos de governo Bolsonaro

Texto aprovado em abril de 2021, no III Congresso da Transição Socialista.

No início de 2019, sustentamos que a ascensão de Bolsonaro estava atrelada à queda histórica do PT, com destaque ao esgotamento da política econômica dos governos petistas, que agigantou as contradições de classe e a crise capitalista, e escancarou seu caráter burguês e criminoso, contra a classe trabalhadora. A classe respondeu com revoltas indeterminadas, das quais a “esquerda” se distanciava sempre, capitulando ao PT e abrindo espaço para o rápido crescimento de grupos anti-petistas de direita, e enfim para a vitória eleitoral do “outsider” Bolsonaro.

Sem o PT, contudo, a burguesia perdeu o principal pilar de sustentação da sua dominação. Este partido foi fundamental para a contenção da luta de classes nas últimas quatro décadas, para a transição do regime militar para a dominação democrática burguesa e sua manutenção. O inapto governo Bolsonaro seria o estágio mais agudo até agora, da crise do regime que se abriu com a desmoralização e queda do PT. Para nós, Bolsonaro representaria maior fragilidade política da burguesia enquanto classe, não seu fortalecimento. Prevíamos que o atual governo se desmoralizaria rapidamente diante da população trabalhadora que o elegeu e que seu palavrório contra o comunismo a médio prazo poderia produzir o contrário do que pretendia: o interesse pelo comunismo nas massas descontentes com seu governo. Mais ainda, a permanência da ingovernabilidade burguesa tornaria as condições mais favoráveis para o surgimento da organização revolucionária dos trabalhadores e sua luta.

Contudo, a despeito de sua fragilidade, a despeito de todas as suas crises internas e trapalhadas, a despeito da crise econômica e sanitária bárbara que assola o país, o governo Bolsonaro supera hoje metade do seu mandato e a classe trabalhadora segue aparentemente paralisada. Como Bolsonaro se manteve e ainda se mantém no poder? O que falta para a explosão de uma revolta da classe trabalhadora contra Bolsonaro e o apodrecido regime burguês?

O bolsonarismo sempre foi um tigre de papel

Dada a fragilidade do governo, já em março de 2019 aventamos a possibilidade de sua queda. Para o início de seu governo, a questão fundamental era a aprovação da impopular reforma da previdência, tarefa burguesa que o governo Dilmãe das reformas e o governo tampão de Temer foram incapazes de terminar. Acreditávamos que a resistência da classe trabalhadora à reforma, pudesse ser já uma primeira e definitiva barreira para o recém iniciado governo, muito rapidamente imerso em crise e que tinha que se equilibrar entre forças cada vez mais conflitantes para manter-se no poder.

Como dissemos na época, Bolsonaro equilibrava-se com dificuldade, desde o início, entre “1) o fisiologismo político (corruptos do centrão, partidos evangélicos etc.) que não tira a faca do pescoço do presidente nem para dormir; 2) os militares (que entraram no governo em parte porque sabiam que era fraco, em parte para tentar manter e ampliar seus próprios interesses corporativos); e 3) a direita histérica (ala ideológica do governo), que se vincula à sua base social mais sólida”.[1] No mesmo período, celebramos o aniversário de prisão do Lula, e, com isto, o avanço da ingovernabilidade burguesa, cuja expressão imediata era a incapacidade do recém empossado presidente governar.

Ainda em maio de 2019, avaliamos os atos pró e contra Bolsonaro, e prevíamos que Bolsonaro resistiria menos tempo de protestos que Dilma havia resistido, pois não tinha “a força de cretinismo parlamentar que tinha o PT, não tem uma máfia sindical tentacular (nem terá), e não tem (ainda) um aparato corrupto estatal tão profundo e bem desenvolvido em todas as esferas. Dizíamos, ainda, Ou Bolsonaro cai ou perde qualquer apoio social e se entrega de vez ao centrão para se manter em ambos os casos (mas mais aceleradamente no segundo) ele produzirá a cada dia exatamente o contrário do que diz combater.  

Como veremos adiante, esse prognóstico inicial se demonstrou correto, no entanto, talvez ainda não tivéssemos a dimensão do imbricamento do aparato petista, sua máfia sindical e burocracia estatal, com o próprio governo Bolsonaro, e o papel central que está cumprindo para sua blindagem e sustentação. Se Bolsonaro não os tinha em mãos, como teria um governo do PT, este partido o colocou à disposição do atual governo, atuou junto com o presidente para mantê- lo de pé até agora e ao mesmo tempo reerguer Lula como uma alternativa burguesa de poder mais consistente.

Ao longo desses dois anos, Bolsonaro teve cada vez mais de abrir mão de qualquer roupagem ideológica que o elegeu, entrou em conflito com os demais poderes do Estado para depois se submeter a eles, em nome do puro e simples fisiologismo de onde surgiu, e com seus interesses e de sua família totalmente imbricados aos do restante da quadrilha, em especial de seu chefe Lula. Na mesma medida em que conseguiu permanecer no poder nesses primeiros anos, foi cada vez mais tragado pela desmoralização da “velha política” e se reergueu ao seu lado (e com sua ajuda) Lula, com liberdade e direitos políticos restabelecidos.

Para além da cortina de fumaça, criada por Bolsonaro, seus comparsas, trapalhões e milicianos, com as falsas polarizações com o PT e suas bases e as polêmicas lunáticas e ideológicas, sem qualquer consequência na realidade da classe trabalhadora, o governo se mostrou o mais frágil das últimas décadas, ao contrário do caráter fascista que a dita esquerda brada até hoje. O bolsonarismo é a imagem do autoritarismo que não tem lastro para se realizar, enquanto o PT se apóia nesse novo referencial de autoritarismo para anestesiar as massas do recrudescimento do Estado que ele mesmo pretende e tem melhores condições de executar. É um jogo de espelhamento, em que Bolsonaro é a imagem refletida de Lula, aparentemente invertida, e cuja existência só serve para mediar a mudança de forma do original petista. Como dizíamos na nossa defesa do voto nulo entre Haddad e Bolsonaro em 2018: […] como o PT é a alma do regime, é ele quem produz e controla os elementos de negação do regime. Ele se diferencia de si mesmo, projeta para fora de si a sua própria imagem autoritária idealizada, encarnada em outro ser (Bolsonaro/PSL), para depois melhor se realizar ele mesmo, PT, nesse novo autoritarismo ideal. Pai, filho e espírito santo“.

Traição à luta contra a reforma da previdência

Como dissemos em editorial no início de 2019, “As reformas da previdência e trabalhista (esta já aprovada) são as medidas centrais que a burguesia definiu a si mesma para aumentar o grau de exploração dos trabalhadores brasileiros desde 2015. Só assim ela se aproxima de um patamar satisfatório de lucro para superar sua crise. Os objetivos dessas reformas são: 1) quebrar qualquer força organizada da classe trabalhadora (fazendo o trabalhador negociar sozinho com a empresa, sem intermediação sindical); 2) dificultar o acesso de trabalhadores à justiça do trabalho; 3) facilitar demissões (para resultar numa redução geral de salários por meio de novas contratações); 4) ampliar horas extras e a jornada como um todo, e; 5) aumentar a concorrência no mercado de trabalho (tornando os trabalhadores por mais tempo dependentes deste, com a reforma da previdência)”.[2]

À medida que a burguesia não consegue explorar a classe trabalhadora de forma satisfatória, ou seja, produzir mais riqueza (mais-valia) favorecendo sua expansão, o país caminha para a total ingovernabilidade.

Dilma e Temer, sem capital político suficiente para levar até o fim manobras tão impopulares, deixaram a tarefa de dar cabo às reformas, e, portanto, de aumentar o grau de exploração da classe trabalhadora, para Bolsonaro. Em março de 2019, já no começo de seu mandato, em período onde ainda estava em lua de mel com a maioria de seus apoiadores, mas pressionado pelo centrão, e seguindo a cartilha dos governos anteriores em atenção às necessidades burguesas, o governo anunciou o pacote de reforma da previdência. E como seria possível aprovar essas medidas, dentro de um governo frágil e débil, sem passar por um levante popular? Como anunciamos na época, isso só seria possível se as centrais sindicais permitissem. Entre uma greve geral e incontrolável dos trabalhadores — que colocaria em cheque as lideranças sindicais e, por consequência, fragilizariam ainda mais o PT — e a manutenção do governo Bolsonaro, a balança pendeu para o segundo prato.

Sem condições de segurar o descontentamento crescente dos trabalhadores, as centrais sindicais se viram obrigadas a chamar uma “greve geral” em 22 de março de 2019 e, em negociatas com os patrões, acordaram a reposição das horas paradas daqueles que aderissem à paralisação. O ápice da “luta” foi a coleta de assinaturas para informar a Rodrigo Maia que as centrais sindicais são contra as reformas. Diante desse teatrão do peleguismo, as centrais ditas combativas, como o caso da CSP-Conlutas, em nome de uma frente única, nada fizeram para denunciar o oportunismo político. Pelo contrário, já com a reforma da previdência em curso, aprovada na CCJ da Câmara dos Deputados, não titubearam em aderir ao chamado do 1º de Maio unificado, o histórico pão e circo das centrais majoritárias.

Somado a isso, a oposição parlamentar, composta por PT, PCdoB, PSDB, MDB e PSC, engendrou, no 11 de junho, um acordão que tiraria do pacote das reformas o BCP (Benefício de Prestação Continuada), o fim da aposentadoria rural e o fim da proposta de capitalização. E por que os partidos que lideram as centrais apoiariam tal feito? Estas medidas, as mesmas apresentadas por Dilma em 2015, possibilitariam que esses parlamentares não sujassem suas mãos (e quem sabe a de Lula) sendo obrigados a aprová-las futuramente e, como dissemos na época: “A reforma, sem o BPC e a aposentadoria rural, permite o aumento da exploração dos trabalhadores produtivos e o alívio aos mais marginalizados (o que favorece medidas como Bolsa Família e outras prendas do Estado, fundamentais para conquista de base política)”.[3]

Não bastassem estes grandes feitos, as burocracias sindicais convocaram mais uma paralisação de calendário para o tão distante 14 de junho. Novamente em frente única com os patrões, não somente fizeram acordo de reposição, como também boicotaram a maioria das paralisações e fizeram dos isolados e pontuais atos palanques do “Lula Livre” em comemoração aos acordos parlamentares do dia 11.

O PT e seus aliados, ao contrário do que suas bases histéricas defendem, não se opuseram às reformas, abandonaram as lutas sindicais em prol da disputa de seus interesses materiais futuros dentro do parlamento. Não se opuseram aos pontos fundamentais do pacote e sentaram, através dos governos dos estados, com Alcolumbre e Maia para reincorporar os estados e municípios dentro da reforma, deixando a conta também para os servidores públicos. Da mesma forma, as centrais sindicais se calaram diante da aprovação deste texto-base em julho.

O distanciamento temporal entre as paralisações somado à ausência de radicalização deixou claro que o capanguismo sindical está muito ocupado sentando com os patrões nas inúmeras tratativas e negociatas para defender seus interesses materiais e não afetar a lucratividade da burguesia. Com o circo sindical montado — parar sem parar, parar e ficar em casa e/ou parar com reposição — o capital não se afeta. Pelo contrário, ganha tempo na extração de mais-valia e as contradições de classe não afloram, a vontade geral de luta arrefece e, portanto, se aniquilam as possibilidades de derrubar as reformas.

Bolsonaro e PT, com o Supremo com tudo

Além do bloqueio decisivo da burocracia sindical, Bolsonaro também pode contar desde o início com o grande aparato estatal petista, seus funcionários e quadros, para governar. A despeito da força social que o elegeu, Bolsonaro, teve de se juntar rapidamente ao PT para suprimir as contradições que a Lava-Jato cravou no interior do Estado.[4] Caso contrário não poderia governar, dado que, desde sempre, elas também o ameaçavam.

Bolsonaro manteve petistas em grande parte dos cargos do segundo escalão do governo, e contou, desde o primeiro dia, com seus maiores quadros na costura de acordos que envolviam as cúpulas dos três poderes da República. Nomeou o petista André Mendonça, vinculado a Dias Toffoli, como seu AGU. Dias Toffoli, por sua vez, então na presidência do STF, foi um dos principais aliados de Bolsonaro no judiciário.[5] Bolsonaro e Toffoli passaram a agir de forma articulada para o enfraquecimento do Ministério Público e da Polícia Federal e as ameaças que representavam à “classe política”. Enquanto o presidente interferia na nomeação de cargos na PF, Toffoli proibia o compartilhamento de informações do COAF com esses órgãos, obstruindo imediatamente investigações que comprometeriam Flávio Bolsonaro.

Logo, o jornal burguês Intercept traria a público os bastidores da Lava-Jato expondo toda a fragilidade da pequena burguesia e do baixo clero do Estado representados pela operação. Além do desgaste do então Ministro da Justiça Sérgio Moro, o alvo das denúncias do jornal seria justamente o diretor do COAF por ele indicado e contra o qual já se movia Bolsonaro. Enquanto isso, os deputados, que não podiam ficar fora dessa ofensiva articulada contra o “lava-jatismo”, aprovaram na Câmara a proposta contra o “abuso de autoridade”, que, a despeito de sua aparência progressista, tinha como objetivo enquadrar os agentes do Judiciário, do MP e da PF, que, nos último anos, haviam mandado grandes empresários e políticos da burguesia para a cadeia.

Mais tarde, outro petista, Augusto Aras, seria nomeado por Bolsonaro para a Procuradoria Geral da República, por indicação de Jaques Wagner para acabar com a Lava-Jato entre os procuradores. No STF, a condenação em segunda instância seria derrubada para beneficiar Lula e diversos dos condenados por corrupção.

Tudo deveria acontecer, afinal, para atender aos interesses da aterrorizada “classe política”. Sua necessidade era soltar Lula, enterrar a Lava-Jato e, se possível, prender Moro. À concretização desse grande acordo entre Bolsonaro e o PT, que se aprofundou desde o segundo semestre de 2019, demos o nome de Bolsolulismo, fenômeno ao qual atribuímos ser a principal corrente política atuante em Brasília. Denunciamos sozinhos o latente acordão pelo reestabelecimento da governabilidade.

Rapidamente o acordão entre PT, Bolsonaro e a cúpula dos três poderes começou a se concretizar tal como prevíamos.

Lula foi solto ainda em outubro de 2019. A soltura de Lula, além de aliviar as pressões sobre os partidos burgueses e empresários investigados por corrupção, caiu como uma luva para Bolsonaro. Com a popularidade em queda já no primeiro ano de mandato, era importante para Bolsonaro que a “ameaça Lula” permanecesse viva para justificar sua própria existência como “mal menor”, apesar de sua debilidade enquanto presidente, aos olhos do eleitorado anti-petista. Mas faltava a Lula ainda resgatar seus direitos políticos. Enquanto se alimentavam com a polarização pública, nos bastidores seguiriam unidos até levar a cabo os seus objetivos em comum.

Com o estouro da pandemia do coronavírus e da crise econômica no início de 2020, Bolsonaro ficou mais uma vez encurralado, dada a incapacidade burguesa de qualquer medida de contenção do adoecimento e mortes da população. Preocupado antes de mais nada em jogar com a crise sanitária para manter-se no poder, entrou em conflito e demitiu o então Ministro da Saúde, Mandetta, que saiu do governo mais forte do que entrou, fragilizando ainda mais Bolsonaro. O novo ministro nomeado, Nelson Teich, não resistiu um mês ao cargo. O Ministério da Saúde ficou então sem titular por meses, os militares passaram a controlá-lo interinamente por meio do então secretário executivo do Ministério da Saúde, General Pazuello. Quatro meses depois, o próprio general teve de ser nomeado como ministro titular, o único, que, em nome de interesses corporativos e da ocupação de cargos por militares na Saúde, aceitou conduzir a política bolsonarista para a COVID-19.

Bolsonaro agiu para encobrir sua responsabilidade sobre a crise econômica e buscou manter uma base social fiel através de um discurso negacionista, explorando também as contradições das limitadas medidas protetivas adotadas por governadores e prefeitos. O negacionismo de Bolsonaro tem reverberação em um setor considerável da população trabalhadora e da pequena burguesia arruinadas, que atribuem às medidas de isolamento social, quando implementadas, os motivos de sua própria ruína — não totalmente sem razão, já que tais medidas são “planejadas” de modo a manter intocado o lucro capitalista, morra quem morrer (feriados são adiantados, restringe-se a circulação durante a madrugada, comércios são fechados, mas os setores mais explorados da classe seguem amontoados diariamente nas fábricas e em diversos trabalhos nada essenciais à manutenção da vida humana, mas fundamentais para acumulação capitalista). No entanto, a cada dia, a morte chega mais perto de todos os brasileiros e o negacionismo de Bolsonaro demonstra todo seu caráter demagógico e politiqueiro, assim como as falsas medidas dos prefeitos e governadores. Até hoje, os momentos mais graves da pandemia são geralmente acompanhados da queda de popularidade do presidente.

Bolsonaro se tornou cada vez mais dependente do centrão e seu fisiologismo para manter-se no poder, e teve de aumentar os conflitos com o “lava-jatismo,” em especial com o maior representante da operação, o então “superministro” da Justiça, Sérgio Moro. A saída de Moro do governo, em abril de 2020, foi exigência do centrão a Bolsonaro para sustentá-lo no poder e livrá- lo dos cada vez mais numerosos pedidos de impeachment parados no parlamento.

Para o centrão era preciso desmoralizar por completo a operação que perseguiu, prendeu e mantinha a maioria de seus parlamentares sob investigação. Bolsonaro, que havia se aproveitado do capital político de Moro, teria agora que descartá-lo. O início da pandemia do coronavírus foi o momento oportuno para fazê-lo, dado o foco da “opinião pública” sobre a situação sanitária excepcional. O impacto político de tal demissão, no entanto, era inevitável e aprofundou a divisão de sua já enfraquecida base social de apoio. O “herói nacional” no combate à corrupção seria substituído então pelo “petralha” André Mendonça no Ministério da Justiça.

Após a saída de Moro do governo, avançou no STF o entendimento de que ele havia atuado de forma imparcial em condenações da Lava-Jato, abrindo espaço para que elas fossem anuladas. Assim, de um lado Lula finalmente se tornaria novamente elegível ao cargo de presidente, do outro Moro e a Lava-Jato eram cada vez mais criminalizados.

Como dissemos em editorial no começo deste ano, depois de 7 anos de vida da operação [Lava- Jato], vemos executado, e de forma bem-sucedida, o produto do ́grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo. O coroamento desse processo será a absolvição de Lula e, ao mesmo tempo, a blindagem do clã miliciano que governa o país.

A bilionária negociação com o centrão, conduzida pelo General Luiz Eduardo Ramos, e as recentes decisões do supremo selaram um aparente realinhamento institucional entre os principais organismos de poder burguês no país, em suas três esferas.[6]

Conforme avançou esse realinhamento institucional, o governo conseguiu manter-se no poder com a ajuda do PT e dos demais partidos da ordem burguesa. Nada disso seria possível sem o importante suporte das centrais sindicais e dos ditos “movimentos sociais”, que, a despeito da barbárie sem precedentes pela qual temos passado, não moveram uma palha para colocar suas bases em movimento. Assim como foram fundamentais para a aprovação da reforma da previdência no início do governo, a burocracia sindical segue sendo importante para que não se esboce qualquer reação pela classe trabalhadora organizada que ameace o frágil governo. Qualquer movimento nesse sentido seria mesmo muito arriscado para a própria burocracia sindical, dada a explosiva conjuntura. Ela e os demais braços petistas provavelmente só se moverão quando for inevitável, para tentarem conter um movimento mais espontâneo e independente dos trabalhadores e não medirão esforços nos acordos com a burguesia para bloqueá-lo quando for necessário.

Apesar dos bloqueios, aprofunda-se a crise econômica, a pandemia e a barbárie capitalista. Com Bolsonaro à frente do país, a ingovernabilidade atingiu em 2021 patamares cada vez explosivos e perigosos para a burguesia. Para garantir a ordem, tornou-se cada vez mais urgente para a classe capitalista encontrar uma alternativa de poder mais consistente que o atual presidente. É nesse cenário de incerteza que, recentemente, em uma canetada do STF, Lula foi enfim recolocado no páreo político, tornando-se novamente elegível para o cargo de presidente.

Mas a crise política não para de avançar…

Diante dos perigos da ingovernabilidade burguesa representados por Bolsonaro, nos últimos meses, um grupo de empresários e economistas burgueses lançaram uma carta aberta com mais de 1500 assinaturas, entre os quais figuram setores relevantes da burguesia. A carta exigia medidas de contenção da pandemia no país, pressionando ainda mais o já débil governo federal. Acuado, o presidente teve que agradar de novo o centrão para neutralizar o avanço das ameaças de impeachment, e, ao mesmo tempo, sinalizar radicalização contra as instituições do regime, para tentar não derreter ainda mais o que resta de sua base social de apoio. Neste movimento, tensionou com a cúpula militar, intencionando o maior aparelhamento político das Forças Armadas. O resultado foi a trapalhada substituição de seis de seus ministros no final de março.

A primeira concessão de Bolsonaro ao Congresso foi a demissão de Ernesto Araújo do Itamaraty, e o afago ao centrão veio com a nomeação da deputada Flávia Arruda (PL) para a Secretaria de Governo. Entretanto, a tentativa de maior aparelhamento das FFAA levou à substituição do então Ministro da Justiça Azevedo e Silva, por Braga Netto. Tal substituição acarretou na renúncia simultânea (maquiada de demissões) dos três comandantes das Forças Armadas, fato até então inédito na história, atestando mais uma vez a grande fragilidade do governo, com pouquíssimo controle do oficialato, ou quase nenhum. A verdade é que a cúpula militar já busca desvencilhar- se do governo para fugir da desmoralização ainda maior. Como prevíamos, a participação dos militares no governo Bolsonaro os fez serem sugados pela crise política e serviu para desidratar a credibilidade de mais essa instituição do Estado para a população. Não por acaso, a reação do comando militar vem após a recente saída de Pazuello do Ministério da Saúde, general três estrelas da ativa que foi o pivô da desastrosa política bolsonarista para a crise sanitária, servindo ao governo como boi de piranha.

Além dessas substituições, Bolsonaro promoveu ao mesmo tempo uma dança das cadeiras, como “reforma ministerial” para acobertar seu flagrante recuo e apequenamento. José Levi da AGU entregou o cargo, para onde volta André Mendonça, substituído no Ministério da Justiça por Anderson Torres, amigo de Flávio Bolsonaro, de quem ainda é preciso livrar a cara nas investigações da Polícia Federal.

Embora a compra do centrão tenha segurado o avanço das dezenas de pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados, neste momento o governo Bolsonaro enfrenta a CPI da COVID-19, instaurada no Senado a pedido do STF.

Bolsonaro prepara o retorno de governo autoritário de Lula

Enfim, Bolsonaro revelou-se cada vez mais parecido com o PT e “a velha política”. Dos pilares que o elegeram e sustentaram inicialmente, teve de abrir mão de qualquer roupagem ideológica, sua base social tornou-se cada vez mais diminuta. Nos últimos capítulos da crise política, os militares, que ingressaram no governo por seus interesses corporativos e foram tragados pela sua desmoralização, começam a se desvencilhar desse. Praticamente só restou ao governo Bolsonaro o fisiologismo e o apoio do PT de Lula, com todos seus fortes aparatos de contenção da luta de classes.

A crise política da burguesia, até agora sem solução, é acompanhada de grande crise da chamada “esquerda” e profunda crise de direção do proletariado. Nenhuma organização da esquerda, apesar da rica conjuntura, se alçou como alternativa política para a luta das massas, tendo a maioria delas capitulado ao PT a cada momento da conjuntura. Hoje, este governo morimbundo se sustenta não só no PT e nos seus aparatos, mas também na ausência de uma organização revolucionária no Brasil. Essa esquerda apática, que hoje levanta seu programa reformista de sempre, não quer, como não quis desde 2013, construir uma alternativa ao PT. Quer apenas sua própria fatia dos recursos e cargos estatais. O PSOL já lançou seu principal nome, Boulos, para concorrer ao cargo de governador de SP em 2022, cravando desde já seu apoio incondicional à Lula para presidente. O PSTU, acomodado nos seus aparatos partidários e sindicais, deve manter-se “crítico” ao PT, apenas para voltar a apoiá-lo nos momentos decisivos, como fizeram no segundo turno das últimas duas eleições. Sob a retórica de combate ao “fascismo” de Bolsonaro, a maioria dos partidos e organizações da auto-intitulada “esquerda” devem seguir sob controle do PT. Como vínhamos apontando, diante da dissolução completa da velha “esquerda” com a capitulação dos seus principais quadros e correntes, urge a criação de uma nova organização revolucionária no Brasil.

Bolsonaro cambaleou até aqui, chega no fundo do poço, mas permanece na presidência. Lula já é novamente elegível, mas seu restabelecimento político diante das massas ainda não está consolidado. É preciso que a barbárie e o desespero da população sigam crescendo, só assim o retorno de Lula pode consolidar-se como única saída para a maioria do eleitorado. O caminho mais seguro para Lula é manter a “ameaça bolsonarista” viva e atuante até o final. A queda precoce do presidente enfraqueceria Lula como salvador da pátria nas eleições de 2022 e abriria espaço para outros candidatos “de centro” (na verdade também de direita), na corrida presidencial. Morra quem morrer, quanto maior a barbárie hoje mais se fortalece o saudosismo dos governos do PT no eleitorado. A cada dia que passa com Bolsonaro no poder, Lula se confirma como a principal cartada da burguesia para contenção da gigantesca crise social.

Se eleito em 2022, Lula terá melhores condições que qualquer outro gestor burguês para avançar no grau de violência do Estado sobre a classe trabalhadora, e conduzir o regime para formas mais bonapartistas. No poder, terá de ampliar a perseguição aos setores minoritários da burguesia e da burocracia estatal (como aqueles vinculados à Lava-Jato), terá de concentrar o controle da máquina estatal sob um forte poder executivo, mobilizar os recursos do Estado para comprar bases sociais e, principalmente, terá que ampliar a violência oficial (repressão) e extra-oficial (gangsterismo sindical) contra as organizações independentes da classe operária e do proletariado.[7]

Apesar das suas direções traidoras, apesar da inexistência de uma direção revolucionária no país, apesar de todos os conchavos e acordões em Brasília, qualquer faísca pode acender um poderoso movimento das massas trabalhadoras, dado que a crise social, a barbárie e a miséria avançam sem trégua e, com elas, aumenta a renda dos maiores bilionários e o ódio de classe dos trabalhadores. Revoltas certamente explodirão no Brasil, como tem ocorrido no restante do globo, em especial na América Latina. Muito provavelmente as lutas que podem se desenvolver no Brasil ocorrerão por fora dos organismos institucionais da esquerda e dos sindicatos. Dessas revoltas dependerá a sorte dos atuais regimes políticos no Brasil e no restante do mundo. Elas podem embaralhar as cartas do tabuleiro político e rasgar os arranjos que a classe dominante luta para costurar.

A queda do PT — ruptura das massas e do operariado e crise do regime — abriu melhores condições para a reorganização do proletariado dentro da perspectiva revolucionária, adormecida desde 80. Contudo, nenhuma organização política da “esquerda” foi capaz de ocupar o espaço político deixado. Pelo contrário, as organizações centristas se acomodaram ao petismo, que ainda controla os maiores aparatos de organização da classe. O fortalecimento de uma alternativa revolucionária capaz de superar o bloqueio do PT, dependeria da postura da vanguarda socialista frente às lutas defensivas da classe operária e, particularmente no governo Bolsonaro, era fundamental derrotar a reforma da previdência e, ao mesmo tempo, desmoralizar as burocracias sindicais traidoras. No entanto, seguimos atrasados.

Nossa primeira tarefa ainda é derrubar Bolsonaro, primeiro passo não só “para salvar as nossas vidas”, como já dissemos, mas também para impedir ao máximo que a burguesia restabeleça sua governabilidade contra os trabalhadores. Ainda é necessário erguer um movimento unificado que derrube o presidente e passe por cima das direções petistas que o protegem. Derrubar Bolsonaro hoje é a melhor forma de enfraquecer Lula e a dominação burguesa amanhã. Combater a coalizão Bolsonaro-Lula desde já, é criar melhores condições para a luta do proletariado e para a construção de um partido revolucionário no Brasil à altura do violento choque entre as classes que se ergue no horizonte imediato.


[1] Ver nosso editorial de maio de 2019: Estaria Bolsonaro preparando para renunciar?

[2] Ver nosso editorial de março de 2019: Dia 22 pode ser início da que de Bolsonaro.

[3] Ver nosso editorial de março de 2019: Dia 14: centrais deram facada nos trabalhadores.

[4] “A Lava-Jato – é sempre bom lembrar – nada tem de propriamente revolucionária; é totalmente incapaz de mudar o país de verdade. Ela é produto de uma radicalização de setores da chamada “classe média” (trabalhadores mais bem remunerados), influenciada pela revolta espontânea do conjunto da população trabalhadora brasileira em junho de 2013. As pessoas em geral não se lembram, mas em junho de 2013, além da exigência de derrubada do aumento no valor dos transportes (um protesto proletário contra a carestia de vida), manifestantes iam às ruas para combater a “PEC 37”, proposta de emenda constitucional que diminuiria o poder de investigação do Ministério Público. Tal reivindicação era algo marginal nas jornadas de junho, mas estava lá, embolada nos protestos, vista em plaquinhas, faixas ou cartazes. Não à toa, em 25 de junho de 2013, ainda em meio à onda da revolta, e com a galeria da Câmara dos Deputados tomada por procuradores do MP, a PEC 37 foi finalmente derrubada. Graças ao fato de que os poderes de investigação do MP não foram diminuídos, somado à pressão geral produzida por junho de 2013, as investigações da Lava Jato se desenvolveram a partir de 2014. Em suma: a radicalização da pequena-burguesia está geneticamente vinculada à última grande revolta proletária no país”. Ver aqui.

[5] Como se sabe, Toffoli foi consultor jurídico da CUT (1993-1994); assessor parlamentar de petistas na ALESP em 1994; assessor jurídico do PT na Câmara dos Deputados (1995-2000); advogado eleitoral de Lula em três eleições (1998, 2002, 2006); sub-chefe de assuntos jurídicos da Casa Civil no governo Lula (2003-2005); Advogado Geral da União indicado por Lula entre 2007-2009; tornou-se Ministro da suprema corte jurídica brasileira em 2009, por indicação de Lula.

[6] Ver nosso editorial de fevereiro deste ano (2021): O enterro da Lava-Jato e o grande acordo nacional.

[7] Em novembro de 2019 fazíamos a seguinte previsão: “[…] quando Bolsonaro vai à falência justamente por se assemelhar demais ao PT, as massas, cansadas e desmoralizadas, impotentes por terem sido enganadas pelas falsas saídas que surgiram em meio à crise, tendem a sucumbir frente à articulação da grande burguesia para retomar sua hegemonia política. Dado o papel fundamental do PT no regime democrático-burguês atual (pois só ele pôde conter as massas trabalhadoras para fazer a transição da ditadura militar à democracia burguesa), o PT é o partido queridinho dos quadros burgueses para ser o fiel da balança da estabilidade. A burguesia não consegue pensar nem criar hoje um modelo de estabilidade no Brasil sem considerar o PT. Ela tenta, mas todas as novas lideranças são insustentáveis – desde João Dória ao ridículo Luciano Huck. A burguesia sabe que assim não conterá o possível estouro social e não contornará sua crise de dominação. O lulismo – por mais que parte da burguesia possa não gostar de Lula – ressurge como a principal saída para a dominação burguesa.

Antes um fim com terror do que um terror sem fim, explicava Marx no 18 de Brumário. Não havendo saída para um futuro histórico, a burguesia prefere repetir tragicamente o passado. Mas um novo lulismo tende a ser muito diferente do anterior. Antes, Lula esteve à frente de um perfeito governo burguês, circunscrito aos (nefastos) limites democrático-burgueses. Agora, o retorno de Lula tende a abrir, no médio prazo, outra forma de governo, no qual as oposições internas ao Estado, de setores menores e pequeno-burgueses, terão de ser limadas. A vingança de Lula contra todos os que lhe cassaram dentro do Estado será maligna. De um governo burguês, com traços bonapartistas, devemos caminhar para um governo capitalista propriamente (verdadeiramente) bonapartista (ou seja, autoritário).

Em linhas gerais, uma perspectiva assim também pode ser traçada para o conjunto da América Latina, dada a ascensão das massas, a ausência de partidos de esquerda, e o uso de líderes “populistas” (autoritários) para conter as massas. Maduro, na Venezuela, é só um pequeno exemplo do que se desenha. Com seu peso econômico e social, países como o Brasil e a Argentina – na qual os kirchneristas tendem a voltar ao poder [o que já ocorreu] – despontam como a “vanguarda da retaguarda”, ou seja, apontam o caminho do retrocesso autoritário, bonapartista, para o continente.”

Veja aqui.