Transição Socialista

O “capitólio brasileiro” e a festa da democracia

“Toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas”, nos ensina Marx em sua obra teórico-programática, O Capital. Mas tal fundamento parece passar mais uma vez despercebido pela dita esquerda revolucionária brasileira, que continua a tomar a aparência imediata dos fatos por sua essência.

“A democracia brasileira corre perigo!” gritam Fiesp e Febraban diante da patética invasão bolsonarista aos três poderes no último dia 8. E eis que, ao soar do alarme, conforma-se como mágica uma vasta frente única capaz de unir interesses até então aparentemente opostos. Petistas juntam-se aos ex-bolsonaristas, os comunistas aos representantes do grande capital internacional, e por aí vai.

Antes de aderir a tal frente, deveríamos nos perguntar: o regime democrático brasileiro esteve de fato em perigo no último dia 8? Será que uns milhares de desempregados, aposentados, indivíduos provenientes do baixo clero da política, do funcionalismo público ou de setores pequeno-burgueses, todos desarmados e financiados por uma fração menor da burguesia agrária mais isolada e atrasada, contando apenas com a colaboração passiva de setores do executivo e das forças armadas teria conseguido tomar de assalto o poder de uma nação de 210 milhões de habitantes? Trata-se de um espetáculo que não deve ser superdimensionado pela vanguarda, sob pena dedirecionar sua pouca força política a uma caça aos fantasmas.

A ala majoritária da burguesia já fez sua experiência com o bolsonarismo e, hoje mais do que nunca, vê em Lula a melhor alternativa para a gestão do Estado. Essa preferência se expressa não só na rapidez com que as entidades patronais condenaram os atentados mas também no acordo entre analistas burgueses de que o governo saiu fortalecido da aparente crise institucional. Assim, não se deve desconsiderar que o governo federal, que sabia do risco de invasão às sedes dos três poderes, conscientemente decidiu não agir de forma altiva e enérgica no 8 de janeiro.

Se a omissão de Ibaneis Rocha e seu secretário é criminalizada, o que dizer da inação do Ministério da Justiça diante das informações de que o DF falharia no cumprimento da segurança da Esplanada? O que dizer da ausência da Força de Segurança Nacional? O que dizer da paralisia dos batalhões do exército localizados abaixo do Palácio do Planalto? O que dizer do esvaziamento de policiais do GSI? Seria tudo obra dos bolsonaristas? Alguém realmente acredita que os petistas/alckmistas, grupo talvez com mais experiência política no Brasil, não puderam tomar nenhuma medida nos dias que antecederam imediatamente a invasão? É muito duvidoso, sobretudo ao se considerar que os petistas têm também tradicional influência e mesmo frações em diferentes forças policiais nacionais. Por que Lula agora barra a criação de uma CPI para investigar o 8 de janeiro?

Se é certo que, de um lado, existiam elementos bolsonaristas na Abin e no GSI, também é verdade que o governo federal, que afinal chefia estas instituições, tinha condições de agir em função das informações disponíveis, mas preferiu assumir o risco calculado de não tomar nenhuma medida especial contra a possível invasão, apenas levando Lula para Araraquara por precaução. Revelou-se um cálculo político preciso.

Lula ganhou ainda mais holofotes a partir de 8 de janeiro e tem agora a faca e o queijo na mão para arrumar a casa, seja no executivo, demitindo militares da reserva que exerciam cargos comissionados; seja nas forças armadas, com as diversas trocas no comando ocorridas nas últimas semanas; seja na relação com o legislativo, que ruma para uma pacificação inédita nos últimos anos. A ferida aberta na governabilidade burguesa em junho de 2013, da qual o bolsonarismo é subproduto (decorrente de uma situação defalência das organizações revolucionárias em dirigir a legítima indignação social contra o PT), vinha cicatrizando lentamente nos últimos anos, mas os incidentes de 8 de janeiro aceleraram esse processo. Agitando o espantalho do bolsonarismo, Lula pode mais uma vez provar para a burguesia sua aptidão como governante e se blindar com o apoio prático da dita vanguarda socialista, abrindo um período de relativa estabilidade política.

Nas palavras de Lenin, “A república democrática é o melhor invólucro político possível para o capitalismo”. A burguesia só abre mão desse seu regime preferido quando as condições sociais assim o exigem: quando ela se vê na situação em que ou aprofunda sua repressão contra a classe trabalhadora ou corre o risco de ser derrubada por ela. O bonapartismo e o fascismo são respostas da burguesia a um período particular de acirramento da luta de classes, e não podem ser entendidos como um risco permanente, sob pena de mantermos a esquerda revolucionária num perpétuo frenesi antifascista, que apenas desvia forças do combate necessário ao inimigo real, a burguesia nacional e seu Estado democrático. Não há analogia com o golpe de Louis Bonaparte, com a Marcha sobre Roma ou com o incêndio do Reichstag que fique de pé na situação atual brasileira, em que não há ascenso revolucionário nem partido revolucionário.

Ao tomar para si o papel de testa de ferro da democracia contra o fascismo inexistente, a “esquerda” incorre em múltiplos erros. Em primeiro lugar, ela condena a sedição por si só, deseducando a classe trabalhadora, levando-a à defesa de valores democráticos universais (abstratos, sem recorte de classe). Corre-se assim também o risco de ser aberto  um precedente contra a própria esquerda. Os que foram para rua contra a aprovação da Lei Antiterrorismo em defesa da ação direta dos Black Blocs agora exigem que a lei seja aplicada em todo seu rigor contra os “terroristas” de Brasília! Até mesmo organizações como o PSTU correram para taxar a turba bolsonariata de “terrorista”!

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O segundo erro da esquerda é achar que ela pode de alguma forma ofuscar o Estado e dirigir ela própria a cruzada contra o bolsonarismo. Mas ela não apenas se mostra incapaz de convencer a população trabalhadora a combater os moinhos de vento (como demonstraram os atos do dia seguinte ao “capitólio brasileiro”, relativamente pequenos), como tende a ser ela mesma ofuscada pelo brilho de seus colegas mais poderosos.

Finalmente, uma frente única policlassista estaria correta se houvesse risco real às liberdades democráticas: “contra o fascismo, união até com o diabo e sua avó”, diz Trotsky. Na ausência do fascismo, no entanto, o suposto combate se revela como mero diversionismo, que contribui apenas para confundir a vanguarda e restabelecer a governabilidade burguesa sob o comando de Lula e Alckmin.

Nesse sentido, o cancelamento da greve de entregadores prevista para o dia 25 de janeiro é bastante didático, exemplo da atual “lua-de-mel” de Lula com a consciência democrática dos trabalhadores, em benefício dos proprietários. Pouco depois dos ataques dia 8, os “Entregadores Antifascistas” vieram a público deixar claro que sua eventual greve não se confundiria com um “ataque à democracia”. Semanas depois, numa reunião com o Ministério do Trabalho, representantes da categoria decidiram suspender a greve entendendo que a prioridade, nas palavras de Galo, “é o diálogo com o governo”. Saíram de mãos vazias da mesa de negociação: a mera promessa de diálogo já foi o suficiente para que se abortasse a luta! O lulismo, potencializado pelos eventos do dia 8, mostrou mais uma vez como se derrota uma potencial greve sem uma única viatura de polícia.

O clima geral é, portanto, de restabelecimento da ordem. Ao contrário de 2018, quando a prisão de Lula significou o aprofundamento da crise de dominação burguesa, a prisão dos bolsonaristas expressa apenas a natureza pragmática do Estado-capital no seu instinto de autopreservação. Este instinto é uma constante que se volta contra o conjunto da classe trabalhadora sempre que necessário.

Outros testes importantes para a vanguarda virão ainda este ano. A inflação deve voltar a subir em função da reoneração dos combustíveis prevista para os próximos meses. Além disso, Lula tem o desafio monumental de retomar o crescimento da “produtividade” num contexto em que a recessão global projeta um crescimento econômico quase nulo para o Brasil. O crescimento da produtividade nada mais é do que o aumento do grau de exploração sobre a classe trabalhadora, do qual o capital precisa para continuar seu ciclo perpétuo de autovalorização.

Vê-se que enquanto a esquerda caça fantasmas, o Estado democrático burguês continua desempenhando normalmente seu clássico papel de “balcão de negócios da burguesia”. Em meio à onda diversionista atual, é importante não perder o foco na luta de classes.

NÃO CAIR NA LOROTA DE SALVAR A DEMOCRACIA BURGUESA!