Transição Socialista

Por que defender o impeachment?

Defendemos a palavra de ordem do impeachment de Bolsonaro como a mais adequada para esse momento da conjuntura. Procuraremos argumentar, sinteticamente, porque ela é mais adequada e precisa, contrapondo sua defesa aos argumentos levantados em sentido contrário (ou aos pressupostos nas formulações dos que se colocam contrariamente a ela).

1) A defesa do impeachment não é contraditória com a luta nos locais de trabalho

A oposição à palavra de ordem do impeachment postula que ela seria uma solução “política” à crise e que, por isso, ela seria contraditória com a luta fundamental nos locais de trabalho, em defesa dos salários e empregos. No ponto 2, trataremos de como não se trata de nenhuma solução da crise política da burguesia, senão do seu aprofundamento. Aqui trataremos da alegação de que se trata de uma pauta puramente “política”, dissociada do problema econômico.
Primeiro, colocar o problema nesses termos já pressupõe uma separação tal do problema político e do econômico que é como se a própria decadência vertiginosa da popularidade do presidente não fosse, ela mesma, resultado da barbárie sanitária e da miséria econômica (com desemprego e inflação crescentes), como se os movimentos da “política” (como a pressão no parlamento pelo impeachment) não fossem expressão, em última análise, da situação econômica calamitosa que castiga os trabalhadores. Não é à toa que o apoio ao impeachment – que é o instrumento pelo qual a derrubada de Bolsonaro, nas atuais condições, poderia se processar (discutiremos mais sobre isso nos pontos 3 e 4) – aumenta conforme pioram as condições de vida dos trabalhadores, como atestam as últimas pesquisas de opinião e os dados econômicos.

Segundo, levando até o limite essa lógica de oposição cerrada entre o “político” e o “econômico”, poder-se-ia argumentar que os atos de rua, são, a rigor, somente “políticos”, pois não envolvem a paralisação de setores produtivos da classe trabalhadora e, assim, não deveriam ser apoiados por não tocarem no problema fundamental da estrutura. Isso é naturalmente um contrassenso: não é porque os atos são “políticos” que se poderia, teoricamente, se furtar a construí-los e não é simplesmente declarar que é necessário fazer a “greve geral” que vai alterar seu conteúdo; o que é preciso fazer é trabalhar, conscientemente, para que eles façam um salto qualitativo, para que o problema imediatamente político, que está na boca do povo – o impeachment – reverbere em mobilizações nos locais de trabalho, até tendo em vista um relativo esgotamento da capacidade de crescimento dos atos, no seu atual formato (já trabalhamos esses elementos em editorial recente). A única possibilidade de o movimento das ruas crescer é com o início de movimentações nos locais de trabalho, tendo em vista a realização de uma paralisação nacional (e não uma “greve geral”, por motivos que já expusemos em ocasiões diferentes, que podem ser vistos aqui e aqui) – isso sim delimitaria um “recorte de classe” inequívoco para o movimento. Longe de se opor a isso, a reivindicação do impeachment coloca a questão da derrubada do presidente para já (sobre isso, ver o ponto 4) e obriga as centrais sindicais e lideranças do movimento a se posicionar e a se mexer – isto é, se genuinamente estiverem interessadas na derrubada do presidente pela paralisação nos locais de trabalho…

2) Mais um impeachment aprofundaria a crise de dominação burguesa, ao invés de resolvê-la

Desde junho de 2013, a crise de dominação da burguesia se aprofunda no país, sempre combinando elementos políticos (os escândalos de corrupção do PT e demais partidos burgueses) e econômicos (o aumento vertiginoso do desemprego e da miséria), movimentações nas ruas e nos locais de trabalho (convém não esquecer: junho de 2013 marcou não só as maiores manifestações de rua em décadas, mas também o maior ascenso grevista da classe trabalhadora brasileira desde os anos 80). O impeachment de Dilma Rousseff foi expressão do aprofundamento da crise política e econômica que desde então se arrasta, e deixou no seu lugar o frágil governo Temer, cuja popularidade nunca passou da margem de erro e que só não foi derrubado quando do escândalo da JBS, convém não esquecer, pela postura conivente das centrais sindicais (sentindo-se, assim, apto o suficiente a entregar a reforma trabalhista, mas não a da previdência, que recebeu uma oposição vigorosa, cabendo a Bolsonaro entregá-la – também nesse processo facilitado pela omissão das centrais). O impeachment de Bolsonaro, acontecendo em meros cinco anos após o de Dilma, é sinal de desgaste da dominação da burguesia, e não de sua força. Além de tudo, o seu resultado imediato, um governo Mourão, seria meramente um governo tampão que não teria forças de realizar nada de significativo, para além de representar mais um passo na desmoralização das Forças Armadas que são tragadas para a crise política com ainda mais força graças à sua participação na ruína que é esse governo.

3) O tempo joga a favor de Bolsonaro: a janela de oportunidade para uma derrubada está aberta, mas logo pode se fechar

A derrubada de Bolsonaro através do impeachment também é uma questão de aproveitar o momento oportuno de extrema fragilidade do presidente. Nunca Bolsonaro esteve tão frágil, acossado por denúncias de corrupção por todos os lados, com o ódio pela barbárie sanitária cada vez mais crescente, com o desemprego e a inflação galopantes e, agora, até mesmo com ameaça de apagão e racionamento de energia elétrica. Mas nada indica que essa situação vá se manter por muito tempo: a economia dá sinais de ligeira melhora, a vacinação avança a um ritmo mais consistente, e é possível que a própria demora da crise política ter algum encaminhamento leve a uma apatia da população, que preferirá esperar até 2022 antes de tomar providência para derrubar o presidente agora. Não é possível esperar o surgimento dos conselhos de trabalhadores para derrubar o presidente, como parece estar pressuposto na formulação de alguns companheiros (conforme discutiremos no item 4 abaixo): ou o processo é desencadeado nos próximos meses, ou são grandes as chances de a temperatura política e a agitação das ruas esfriar, e ficar tudo por isso mesmo.


4) Postular a necessidade de “derrubar tudo e todos, já” ou nada é uma forma de centrismo disfarçada de esquerdismo, que leva à inação política (e favorece o PT)

Alguns companheiros argumentam que a derrubada de Bolsonaro pela via institucional não resolveria os problemas fundamentais da classe trabalhadora, e que somente os organismos de poder dos trabalhadores é que poderiam fazê-lo a contento, que qualquer outro método necessariamente reforçaria o poder burguês. Esse raciocínio trabalha com uma lógica de tudo ou nada que, na aparência, é radical e não faz concessões, mas na prática termina por atrasar o aprofundamento da crise da dominação burguesa. Entre a situação de agora – de relativa paralisia da classe, onde não há nenhuma sombra de dualidade de poder no país, onde a tarefa mínima de fazer uma paralisação nacional está por ser realizada – e a construção desses organismos de poder que supostamente executariam o serviço a contento, não há nenhum vínculo, nenhuma ponte, mas simplesmente a declaração abstrata da sua necessidade, que é levantada para se contrapor à uma necessidade urgente e de curto prazo que é derrubar o presidente, pela via que está à disposição no momento: o parlamento burguês. A postura esquerdista de exigir a derrubada de tudo e todos ou nada se expressa na prática em um centrismo de se recusar à derrubada que pode ser realizada já, favorecendo quem só quer ver o governo sangrar até 2022: Lula. Para Lula, nada melhor do que a sobrevivência de Bolsonaro até as eleições, pois aí as suas chances de ser eleito são gigantescas. Os companheiros que sustentam a posição de que o impeachment é um erro precisam refletir seriamente sobre isso: a sua recusa em “sujar as mãos” se valendo do parlamento burguês para derrubar Bolsonaro, não importa quão temperada com palavras radicais, se expressará no fortalecimento do partido burguês com a maior ascendência sobre a classe trabalhadora, o partido que eles alegadamente, como esquerda radical, deveriam combater. Derrubar Bolsonaro é ajudar na derrubada de Lula; inversamente, se recusar a derrubar Bolsonaro, por qualquer subterfúgio que seja, é aplainar o terreno para o retorno de Lula de 2022.

Mais. A exigência de derrubar Bolsonaro e também Mourão, que é contraposta – de maneira consciente ou não – à necessidade de derrubar “apenas” Bolsonaro através do impeachment também se processaria, ela mesma, como uma medida institucional, na ausência de instrumentos de poder proletário fortes o suficiente para consumá-la rapidamente, o que não está no horizonte imediato (e que, de resto, insistimos, não se criam simplesmente ostentando a palavra de ordem de “greve geral” em estandartes levados a atos de rua em fins de semana, mas apoiando e ajudando a organizar lutas nos locais de trabalho – que, aliás, já estão estourando, como visto na greve dos ferroviários de São Paulo dessa semana – tendo em vista a realização de uma paralisação nacional, que consiga enquadrar e desmoralizar esse governo fragilizado da mesma maneira que Temer o foi em 24 de maio de 2017) como uma medida institucional e que teria, como corolário, a eleição indireta de presidente e vice pelo congresso nacional. Complementar essa palavra de ordem com a de “eleições gerais” (ou a velha cartada de Assembleia Constituinte, que no Chile começa a mostrar os seus evidentes limites: a canalização institucional de um movimento de massas vertiginoso que abalou o país) é igualmente uma saída institucional cujo principal beneficiário nesse momento, além de tudo, seria Lula. As palavras de ordem têm ordem e uma lógica interna; não são meros marcadores de diferenciação de radicalidade entre os diversos agrupamentos, mas apontam caminhos práticos e concretos para o encaminhamento de um problema político: a do impeachment cumpre a tarefa de ampliar a crise de dominação burguesa e desarticular a estratégia da maior cartada da burguesia para 2022, Lula – e é por isso que cabe aos revolucionários defendê-la.