Muito se discute hoje sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que agora se chamará, no Senado, PEC 55. Após aprová-la, com folga, na Câmara, o governo pretende aprová-la com urgência no Senado. O texto abaixo faz uma explicação sintética do que é a PEC e, em seguida, uma série de apontamentos sem os quais, pensamos, é impossível lutar de verdade, e até o limite, contra a PEC anunciada por Temer.
Trata-se de um grave ataque às condições de vida da população. A PEC impõe um limite, por no mínimo 10 anos (mas, ao que tudo indica, por 20 anos), para os “gastos primários” das receitas da União. Tais gastos são os com assistência social, educação, saúde, transferências para estados e municípios, e previdência social. Eles representam pouco mais de 50% dos gastos da União. Além deles há os gastos com juros e amortizações da Dívida Pública, de cerca de 42%. Os gastos com a dívida, todavia, não terão teto e seguirão sua tendência de crescimento.
O governo deixou a previdência social de fora do alcance da PEC, dado que é um tema muito sensível à população trabalhadora e poderia gerar protestos. O governo optou por fatiar a aprovação dos ataques. A previdência social será atacada com a reforma da previdência, a ser aprovada após a PEC. A rigor, sem a reforma da previdência a PEC tem pouco sentido, dado que a maioria dos gastos primários são com previdência (aposentadoria e rendimentos devido à doença). A aprovação da PEC é apenas a antessala da aprovação da reforma da previdência.
O governo diz que não haverá diminuição nos gastos, mas isso é uma forma de enganar a população. Os gastos primários, hoje, antes da aprovação da PEC, crescem proporcionalmente ao crescimento do PIB. Por exemplo, o governo federal gasta, por determinação da Constituição Federal, 13,2% do PIB com saúde pública. Se o PIB cresce, o montante, em valor, referente a esses 13,2%, também cresce. Com a PEC, isso acabará. Os gastos ficarão congelados por 20 anos, a partir dos valores registrados neste ano. Ou seja, durante 20 anos o montante, em valor, voltado aos gastos primário, será o mesmo de hoje, apenas corrigido pela inflação.
Ocorre, todavia, que a população brasileira, hoje em pouco mais de 200 milhões de habitantes, deve crescer muito em 20 anos. Nos últimos 20 anos seu crescimento foi de cerca de 70 milhões de pessoas. Estima-se, segundo dados do IBGE, que nos próximos 20 anos a população crescerá cerca de 40 milhões de habitantes. Serão 40 milhões a mais, com os mesmos valores atuais voltados à saúde, educação e assistência social. Ou seja: na prática a PEC significa uma diminuição relativa dos gastos.
A PEC também não pode ser pensada sem a proposta da Desvinculação das Receitas da União (DRU) e sem a reforma trabalhista. A primeira, a DRU, aponta que as receitas primárias não precisarão ser gastas na forma “estanque” como são hoje. Com a DRU, receitas para a saúde, por exemplo, poderão ser repassadas à previdência, ou a qualquer outra área. Assim, os gastos primários tornam-se, na prática, um único gasto, a ser direcionado onde interessar ao governo (via congresso) em cada momento. Isso dá ao governo maior liberdade para uso dos gastos com intuito de controle ou jogo político (para abafar descontentamentos numa determinada área, por exemplo). Ao que tudo indica, isso permitirá ao governo concentrar os gastos na área de previdência social, em detrimento dos demais.
Com a reforma trabalhista, por sua vez, espera-se flexibilizar as condições de trabalho para tornar a mão de obra brasileira mais “competitiva”. Na prática, isso significa apenas aumentar a competição entre os próprios trabalhadores, facilitando as formas de demissão e diminuindo acesso à assistência social dos demitidos. Na prática, busca-se, com a reforma trabalhista, generalizar um regime de trabalho similar ao existente hoje para os trabalhadores terceirizados. Busca-se rebaixar o patamar das condições gerais de trabalho para aqueles do trabalho terceirizado. Veja-se, por exemplo, a proposta de fazer o acordado (entre sindicato e empresa) valer mais do que o registrado em lei, na CLT. Visa-se, assim, a desmontar a CLT em nome de um regime de maior instabilidade para o trabalhador. Em condições mais instáveis, a classe trabalhadora fica mais acuada e tende a aceitar piores condições de trabalho, mais exploração pelo capital.
Tudo isso — reforma da previdência, DRU, reforma trabalhista — já está anunciado e ganha vida na própria aprovação da PEC 241. Trata-se do mesmo “pacote de maldades” do governo, que só faz sentido se for aprovado por inteiro. Trata-se de uma só coisa que está sendo aprovada num processo para mitigar o descontentamento popular, e que mudará profundamente as condições de vida da população brasileira na próxima década.
Muitos petistas hoje condenam a PEC, como se não tivesse nela sua impressão digital. Isso é completamente falso. Como pode-se ver em vídeo bastante circulado na internet, a proposta da PEC 241 foi feita pelo ex-Ministro de Dilma, Nelson Barbosa, já em janeiro de 2016. A proposta, explica esse ministro supostamente de esquerda, havia sido apresentada ao “Conselhão” (reunião do governo com mega-empresários) como uma necessária “reforma estrutural”. Era preciso, segundo Barbosa, “evoluir de medidas de ajuste fiscal para medidas de reforma fiscal; evoluir de medidas de curto prazo para medidas de longo prazo” para conter as “despesas obrigatórias”. O vídeo não deixa qualquer dúvida.
Além disso, há de se lembrar: a proposta está sendo implementada por Henrique Meirelles, o Ministro da Fazenda de Michel Temer. Meirelles era até ontem (e é ainda) o queridinho de Lula e do PT. Meirelles foi cotado para assumir a pasta da fazenda sob Dilma diversas vezes. Só não o fez para não manchar sua imagem com a de um governo falido. Não há qualquer diferença entre a política de Temer e aquela do PT. Na verdade, todas as medidas do “pacote de maldades” do governo do Temer, sem exceção, foram propostas, muito antes, pelo governo Dilma. Elas só não foram implementadas porque o descontentamento popular (que se manifestou, entre outras formas, no próprio impeachment) impediu.
Além disso, a situação caótica, “irresponsável” (para a burguesia), de grave desajuste fiscal, é um produto genuíno dos anos de governo petista. É verdade que existe o processo objetivo, a grave crise econômica mundial, que leva necessariamente à deterioração acelerada das receitas públicas, mas há também o elemento subjetivo, ou seja, a política econômica do governo particular. Nesse sentido, é inegável que os anos de lulismo aceleraram gravemente a destruição das finanças do Estado burguês. Na situação de crise, o PT manteve uma forte política de isenção fiscal para as maiores empresas capitalistas brasileiras. Embora justificasse tais medidas pela necessidade de evitar demissões, a isenção fiscal visava a manter os altos patamares de lucratividade empresarial (as demissões vieram em seguida, de qualquer forma, mas a desoneração fiscal ficou). O fato é que as receitas do governo foram seriamente afetadas.
Da mesma forma, a farra lulista com oferta mágica de crédito facilitado teve um enorme impacto de deformação em toda a economia brasileira. Sabe-se hoje, por exemplo, que o governo de Lula fez, a partir do momento de estouro da crise econômica mundial, uma série de maracutaias ilegais para aumentar os valores de crédito oferecidos — muito abaixo da taxa Selic — pelo BNDES. Uma dessas maracutaias foi o uso do dinheiro do Tesouro — ou seja, valores não contabilizados no orçamento da União — para formar os passivos do BNDES. Dessa forma, se valendo de dinheiro não contabilizado, o governo não precisaria prestar contas ao Congresso. Toda uma série de medidas artificiais, sem lastro da realidade, sem a mínima “responsabilidade” burguesa na gestão do Estado, atuou na criação da situação caótica atual, a ser paga, duramente, pela classe trabalhadora.
Assim, quando hoje os petistas se propõem a lutar contra a PEC — sendo que eles mesmos nos trouxeram, em grande medida, à situação atual, e sendo que eles mesmos propuseram a PEC ontem —, só podemos ver nisso a mais pura demonstração de oportunismo e cara de pau. O mesmo vale para as outras medidas do pacote de maldades. Há de se lembrar, por exemplo, que o eixo da reforma trabalhista — a proposta que dissolve a CLT, fazendo o acordado prevalecer sobre o legislado — foi apresentado pela CUT, sob o nome ACE – Acordo Coletivo Especial.
Apesar da profunda demonstração de mal-caratismo dos petistas no caso da PEC, é preciso reconhecer que a unidade na luta contra a PEC é imperativa. É preciso ir às ruas, paralisar os locais de trabalho, fazer protestos, etc., com todos os setores que estiverem dispostos. O “pacote de maldades”, do qual a PEC é apenas o primeiro passo, é uma necessidade do grande capital, e, contra tal necessidade, todos os aliados na luta são importantes, mesmo os mais vacilantes e duvidosos. À medida que os trabalhadores se movimentarem contra estes ataques, perceberão as limitações de tais ou tais direções políticas; de tais ou tais proposições reformistas. A única condição para isso acontecer é a existência da vanguarda organizada, que trabalhe e esclareça as limitações a cada passo.
É verdade que a luta contra medidas do Estado é um tema “espinhoso”, confuso, um tanto obscuro. É muito mais fácil, para o trabalhador comum, entender os ataques do capital em seu processo de trabalho. É muito mais fácil, para o trabalhador, revoltar-se contra a demissão, contra o aumento da intensidade de trabalho ou da jornada, ou contra o achatamento salarial. Isso é muito mais fácil pois é o eixo racional em torno do qual gira a exploração capitalista. Mas não se deve ignorar que as medidas estatais — superestruturais — também condicionam o rebaixamento do nível de vida da classe trabalhadora. Elas são muito queridas pelo grande capital.
Por ser uma luta brumosa, a luta em torno dos problemas do Estado tende a fazer ascender setores políticos que visam sempre a obscurecer a luta de classes. Tais setores alimentam a ilusão de que o Estado é neutro e pode, supostamente, atender às necessidades da população trabalhadora. Para esses setores, bastaria gerir melhor as verbas do Estado para fazê-lo servir à classe trabalhadora. Esse setor político, supostamente de esquerda, apaga a concepção marxista, de mais de 160 anos, de que o Estado é burguês e serve à burguesia. Trata-se de um setor político que representa uma pequena-burguesia, dependente, ela própria, em maior ou menor grau, do Estado, que busca sempre uma conciliação entre as classes. Para esses setores, bastaria não pagar (ou ao menos “auditar”) a dívida pública e investir as receitas do Estado principalmente em educação, saúde, previdência, etc. Apesar dos riscos que uma frente com setores claramente oportunistas, como os petistas, e setores pequeno-burgueses que alimentam ilusões no Estado (como os que giram em torno do PSOL), é necessário ir à luta em conjunto contra este ataque do capital.
Existe, é claro, o risco desses setores ascenderem politicamente, dado que a realidade busca sempre, primeiro, a linha mais fácil, a linha de menor resistência. Parece ser mais fácil, simplesmente, gerir melhor as verbas do Estado, mas isso é uma completa utopia, como provou recentemente a história do PT (e dos demais partidos reformistas de todo o século XX). Essa utopia precisa ser demonstrada, na luta, enquanto tal. Os revolucionários não devem temer a ascensão dos pequeno- burgueses. Setores como o PSOL são hoje muito frágeis para conter a classe trabalhadora, como ontem conteve o PT. Uma ascensão dos grupos pequeno-burgueses reformistas, que alimentam ilusões no Estado, na prática apenas paralisaria o grande capital, que necessita aprovar tais medidas. A divisão da burguesia e a paralisação dos interesses do grande capital são coisas boas para a classe trabalhadora, que pode ganhar tempo para se fortalecer. Da mesma forma, a ascensão dos pequeno- burgueses apenas prepara sua queda, dado que as contradições colocadas são demasiado grandes e demasiado poderosas para os pequeno-burgueses conseguirem resolvê- las. A única condição é a existência de um partido operário que saiba construir e canalizar uma via política de oposição ao Estado burguês (ou seja, a via da dualidade de poderes, a via das ocupações e da criação do poder operário).
Assim, os revolucionários não devem temer, de forma alguma, as alianças táticas pontuais com oportunistas e reformistas, visando a paralisar os ataques burgueses. Ao mesmo tempo, os revolucionários devem manter as mãos livres para fazer todas as críticas possíveis aos seus setores aliados nesta luta, e devem chamar a população trabalhadora a confiar apenas nas suas próprias forças, sem nutrir qualquer ilusão pelos parlamentares e figurões que queiram “ajudar” na luta. Total unidade contra a PEC e o pacote de maldades! Colocar as massas em movimento!
É verdade que a PEC não pode ser pensada fora do “pacote de maldades”. Na verdade, a PEC não pode ser pensada sem uma reflexão mais profunda sobre seu significa histórico-universal. Em realidade, a PEC (e todo o “pacote”) é apenas uma forma que assume a necessidade mundial de “austeridade” fiscal capitalista. A PEC no Brasil não é diferente das medidas de austeridade que os governos burgueses implementaram ou estão implementando na Europa e nos EUA. Não há nada de diferente entre a PEC no Brasil e os cortes em saúde, educação e previdência social no velho continente — trata-se de uma necessidade do grande capital nesta conjuntura de profunda crise econômica. Trata-se da necessidade de se ter condições financeiras para salvar o capitalismo em crise. Assim como nesses países a classe trabalhadora se mobiliza contra tais ataques, da mesma forma será aqui.
A atual crise econômica é apenas uma forma de manifestação da crise geral do sistema capitalista, que se manifesta mais ou menos desde a primeira guerra mundial. É uma só e mesma crise, desde o pré 1914, desde 1929, desde as diversas crises que estouraram durante o século XX. Trata-se da crise fundamental do sistema, onde as forças produtivas criadas pela burguesia tentam ultrapassar, e não conseguem, as relações de produção (privadas) burguesas. Assim, discutir o problema, como discutem os petistas e reformistas em geral — como mero problema técnico da PEC; como problema de gestão; como problema de auditoria ou não pagamento da dívida, etc., — é criar um processo ideológico que apaga a compreensão do caráter insustentável da economia capitalista. Trata-se de um processo ideológico que visa a impedir a compreensão da necessidade de superação da sociedade capitalista.
É preciso saber lutar contra os ataques, todavia, sem lutar pela ampliação do Estado capitalista. É preciso saber ser negativo — dizer não à PEC —, sem ser positivo — sem dizer sim ao aumento do Estado, à suposta capacidade de resolver as contradições capitalistas pela via da gestão estatal. Só assim se fará a negação da negação, ou seja, a superação das contradições capitalistas pela prática socialista da classe trabalhadora.
Após a crise de 1929, e sobretudo após a segunda-guerra mundial, a ordem burguesa esteve por um fio. Por isso, para salvar o sistema capitalista, ascenderam ao poder diversos partidos “comunistas” (stalinistas) e reformistas (social-democratas), em geral mesmo sem a participação de partidos burgueses. Governava-se para a burguesia, vergonhosamente, como disse Trotsky, apenas com a “sombra da burguesia”. Para salvar a ordem burguesa — dando os anéis para não perder os dedos —, a própria burguesia, via tais partidos, fez uma série de concessões para a classe trabalhadora em países importantes, como os da Europa, nos EUA e em países como o Brasil. Criou-se o Estado de bem-estar social, mais forte em países com grande acumulação de capital.
É hoje isso que está sendo desmontado pelo capital, como necessidade estrutural, em todo o mundo. Ainda que essas medidas de bem-estar tenham sido aprovadas para conter a revolução, isso não significa que os revolucionários não devam defendê-las. Elas são concessões dos capitalistas e significam, em certa medida, avanços e progressos universais. O socialismo deve ser erguido a partir desse patamar máximo, e não abaixo dele. O socialismo deve ser erguido sobre as estruturas de escolas e hospitais — e cultura e técnica de produção — criadas pela burguesia, e não abaixo delas. O socialismo trará a possibilidade, real e verdadeira, em nível planetário, do bem-estar das massas. Assim, a destruição da saúde pública e da educação pública não devem ser pensadas apenas de um ponto de vista “moral” — tendo-se pena da população afetada diretamente —, mas também, e sobretudo, de um ponto de vista histórico-universal. A destruição desses serviços públicos é destruição do que a burguesia construiu de progressista e é, ao mesmo tempo, o caminho para a barbárie; o caminho de crescente impossibilidade da revolução socialista.
É preciso apenas ter clareza de todo esse longo histórico. Ele comprova que não é possível resolver de verdade, no longo prazo, os problemas das condições de vida da população, sem uma saída revolucionária, de controle dos atuais meios de produção (privados) por toda a sociedade trabalhadora. A rigor, a luta contra a PEC deve ter essa perspectiva, e só pode ter essa perspectiva.