Transição Socialista

Os que respiram aliviados com a vitória de Biden

Frente à eleição de Biden, nada temos a dizer – pois não faz sentido – sobre o que significará seu governo. Nada de relevante mudará na política dos EUA. Cabe-nos analisar porque toda a “esquerda” brasileira e latino-americana, uma vez mais, capitula e respira “aliviada” com o novo presidente.

Na cabeça de boa parte da “esquerda” brasileira e latino-americana, a eleição de Joe Biden nos EUA coroa uma virada nos ventos. Até há poucos anos ou meses, segundo ela, o soprar dos ventos ia mal, mas eis que novos ares apareceram: a vitória de Luis Arce na Bolívia, a instauração de uma nova constituição no Chile, a ascensão de “alternativas” de “esquerda” como Boulos e Manuela D’Ávila nas eleições municipais brasileiras, e agora Biden. Tudo talvez precedido pela vitória de Fernandez na Argentina.

Nada mais delirante.

Obviamente, deve-se sempre duvidar de quem analisa política nessa forma biruta, seguindo o movimento dos ventos da “grande política” institucional-burguesa. Tal suposta esquerda, sempre voltada para as nuvens, não observa o movimento das placas tectônicas, as contradições reais (a luta de classes) da sociedade capitalista.

Eis por que ela até agora não aceita que Bolsonaro chegou no poder, no Brasil, graças a um legítimo ódio popular ao PT, que ganhou corpo imediatamente após junho de 2013 (período marcado pelo maior número de greves nas últimas décadas em nosso país). Eis por que ela também não aceita – como explicamos em 2016 – que o aumento da miséria nos EUA e o descontentamento com os democratas levou à vitória de Trump. Eis por que ela também não aceita que a derrubada de Evo Morales na Bolívia foi produto de um legítimo levante popular da maioria do proletariado boliviano (que estourou ao mesmo tempo no Peru, na Colômbia e no Chile). Eis por que ela não compreende que o processo constituinte no Chile tem tão-somente a função de desviar as lutas populares autônomas para dentro da legalidade estatal-capitalista (salvar e regenerar o Estado burguês). Eis por que ela acha que a projeção de Guilherme Boulos ou Manuela D’Ávila no Brasil tem qualquer relevância para um avanço real na luta de classes. Essa “esquerda” está sempre no inverso da realidade.

Ela vive numa realidade invertida pois se baseia nas noções superestruturais produzidas por pensadores mais ou menos ligados ao Partido Democrata dos EUA. Esse partido dirige ideologicamente 99% da “esquerda” latino-americana. Noções como “gênero”, “raça”, “sexualidade” e “direitos” (estatais) – determinações externas à estrutura da luta de classes – são valorizadas como o fundamento da realidade. Não à toa tanto Joe Biden quanto Kamala Harris disseram em seus discursos de vitória que combaterão o “racismo estrutural” e o “racismo sistêmico” (eis o termo, aliás repetido à exaustão pelas mídias do grupo Globo). São os mesmos termos usados pela nossa “esquerda” dita marxista. E é aí que opera a ideologia dos birutas: se o candidato que vence reproduz em seus discursos as noções superestruturais, dá-se uma “onda progressiva”. Se vence o que as secundariza, dá-se uma “onda regressiva”. Assim mudam os ventos, acredita a “esquerda”.

Carente de uma teoria para compreender a realidade, ela simplesmente não consegue explicar como Trump teve agora, em pleno 2020, um voto tão significativo entre latinos e negros (sobretudo na Flórida), a ponto de se poder dizer que o discurso identitário mingou nesta eleição. Como foi possível que Trump tenha obtido mais de 70 milhões de votos, apenas 4 milhões a menos que Biden? Como foi possível que seus votos tenham crescido, se comparados aos de 2016? Seriam todos “fascistas” e “golpistas”?

Para essa “esquerda”, linha auxiliar do Partido Democrata, incrivelmente, Trump era um “fascista” e estava preparando um “Golpe de Estado” nos EUA. Caso perdesse por pouco, Trump supostamente daria uma golpe para se manter! Trump perdeu por pouco – apesar da deformação do colégio eleitoral – e não deu nenhum golpe. Nenhuma fração do aparato militar estadunidense declarou apoio a um golpe (pelo contrário, algumas publicamente rechaçaram qualquer ameaça). Nenhuma fração real da burguesia americana declarou apoio a um golpe. Nem mesmo algum setor relevante do Partido Republicano. A Associação Nacional de Manufaturas dos EUA lançou uma declaração contra Trump, dizendo acreditar completamente na lisura do processo eleitoral, pressionando pela contagem de cada voto. A Câmara de Comércio fez a mesmíssima coisa. O Wall Street Journal se declarou contra a bagunça de Trump, bem como a própria rede trumpista de notícias, a Fox. As “ações de grupos de direita” a favor de Trump nas ruas foram praticamente insignificantes. E as bolsas de Wall Street (junto com nossa “esquerda”) foram à loucura com Biden.

Nada de grave aconteceu. A montanha pariu um rato? Na realidade, a nossa “esquerda” tem a dimensão de um rato. Nesse sentido, é triste ter de concordar com o liberal Glenn Greenwald (ex-Intercept), que, em entrevista à Folha de São Paulo no último dia 07 de novembro, afirmou que a mídia mundial cria a narrativa exagerada de que Trump é uma grande ameaça (aos direitos humanos, às minorias, à civilidade, à democracia) para que assim se possa mais facilmente canalizar o descontentamento popular numa falsa alternativa. Guardadas as devidas proporções, cremos, o mesmo se dá aqui com o palhaço chamado Bolsonaro. Cria-se um espantalho para que as pessoas fiquem aterrorizadas e abracem o outro carrasco (Lulas, Bidens etc.).

Trump é um ator. Não é mais nem menos perigoso que Biden. A situação dos EUA é menos que em qualquer lugar determinada pelo elemento “político”. O elemento “econômico” é por lá tão pujante, que o “político” é em grande medida um teatro. Um espetáculo; diversionismo. “Divertir” e “desviar” são a mesma coisa. Trump viveu de transformar ninharias em espetáculos, divertindo jornais e desviando a “esquerda”. Carentes de compreensão da situação política real, os jornalistas e a nossa “esquerda” acreditaram sempre que Trump preparava uma nova guerra – talvez a Terceira Guerra Mundial. Contra a China. Ou contra a Rússia. Ou contra o Irã. Ou contra a Coreia do Norte. Ou contra a Venezuela. Ou contra a Síria… E por aí vai. Entretanto, nada disso ocorreu. Trump facilmente humilhou a China, que nem esboçou resposta séria; tirou foto de mão dada com Kim Jong-Um; terceirizou o controle de parte significativa do Oriente Médio para Putin (diminuindo a presença dos EUA por lá); atuou no Iraque para favorecer o governo atual do Irã (o que passou pelo próprio assassinato do general Soleimani). Tudo sempre ao contrário do que esperava a nossa “esquerda”.

Vendo o mundo de forma invertida, submetida aos conceitos superficiais do identitarismo e ao empirismo jornalístico, a “esquerda” não compreende que os eixos de estruturação da política mundial não são arbitrários; têm uma base objetiva e material na produtividade dos países. China e Rússia, por exemplo, não são potências imperialistas de destaque (apesar do poderio bélico russo). E, mais do que isso, Rússia e China, por exemplo, são aliadas fundamentais dos EUA em tudo o que é mais relevante na geopolítica mundial (por exemplo: manter caladas e sobretudo não armadas potências econômicas reais, como a Alemanha e o Japão). Exatamente por isso, Rússia e China estão no Conselho de Segurança da ONU (Alemanha e Japão, não). Exatamente por isso, os EUA ajudam nas negociações entre Coreia do Sul e do Norte (mirando contra o Japão). Exatamente por isso, os EUA saem do tratado bélico-nuclear com a Rússia, permitindo a esta se rearmar (no Oriente Médio, e, sobretudo, em seu enclave europeu, Kaliningrado, a partir do qual Putin pode facilmente mirar a cabeça de Merkel).

Se Hillary Clinton tivesse sido eleita em 2016, em vez de Trump, nada desses eixos fundamentais teria mudado. Os eixos em torno dos quais gira a política estadunidense são os estabelecidos desde o final da Segunda Guerra Mundial (a própria URSS já fazia, na segunda metade do século XX, a despeito de todo discurso vazio de “guerra fria”, o papel de manter paralisada a Alemanha). Tais eixos não se alteram facilmente pois são doutrinas de Estado, pilares de sustentação do capitalismo americano. Eles não mudam nem mudarão graças à ação do insignificante republicano ou democrata da vez.

A “esquerda”, entretanto, por completo, seguindo sua função de linha auxiliar dos Democratas, respirou aliviada ante a vitória de Biden. De diversas formas. Seja com declarações diretas a favor de Biden (como Luciana Genro, do MES-PSOL, que afirmou que “as luzes venceram as trevas”); seja com a disseminação desesperada da informação infundada de que Trump daria um golpe em meio à eleição (como MRT/PTS e outros na América Latina e EUA); seja com declarações como “comemoro a derrota de Trump mas não a vitória de Biden”. Não adianta fazer discurso contra Biden, revelando seu caráter imperialista, mas no apagar das luzes respirar aliviado. É a resiliência de uma compreensão que impede a constituição de uma alternativa revolucionária: a política do “menos pior”. Uma postura minimamente decente, nessa ocasião, deveria fazer coro com Espinoza: “não rir, nem chorar, nem odiar: compreender”.

Também não adianta criticar os Democratas, falar da necessidade de uma “alternativa independente”, e, na prática, apresentar uma variação do seu programa. Pode-se dourar o quanto se queira um programa de gestão estatal com frases sobre socialismo, ele seguirá sendo um programa de gestão estatal. Não há alternativa revolucionária na Am. Latina porque não existe partido de esquerda em nosso continente (apenas organizações embrionárias). Todos os partidos legalizados capitularam à ideologia produzida pelo Partido Democrata: identidade, direitos e gestão estatal. A alternativa, entretanto, só pode surgir do exato contrário disso tudo: resistência no núcleo contraditório da luta de classes (defesa intransigente de empregos e salários, contra o aumento da exploração capitalista), que cria o poder proletário nos locais de trabalho e bairros, contraposto ao Estado burguês oficial (visando a derrubá-lo). Uma política é o contrário da outra. A primeira vive na lógica da identidade (que necessariamente vira afirmação/inclusão por meio do Estado). A segunda vive na lógica da contradição (que necessariamente vira negação e derrubada do Estado). A primeira é ideológica, a segunda é proletária. A primeira é biruta, a segunda é real.

Leon Trotsky escreveu o Programa de Transição da IV Internacional justamente a partir das condições econômico-sociais dos EUA. Ele sabia que lá o elemento “econômico” é muito pujante, e que o “político” é meramente discursivo (veja-se suas discussões com membros do SWP dos EUA). Ele criou assim, com base na experiência histórica dos bolcheviques, um programa que parte do aparentemente econômico (escalas móveis) e cresce até o “político” (enquanto poder proletário, contraposto ao Estado burguês, objetivado nos Comitês de Fábrica e depois em Conselhos). Mas a desgraça é que mesmo a nossa esquerda “trotskista” jogou fora esse programa há décadas, engrossando o caldo dos birutas, social-democratas e gestores estatais. Sua política é determinada pelo calendário eleitoral, não pelo calor da luta de classes. A burguesia do norte, após mais um espetáculo eleitoral, agradece.