Não é necessário descrever em detalhes os fatos dos últimos dias no leste europeu. Todos têm acompanhado. E qualquer um que queira ver – sem as lentes dos órfãos do stalinismo – notará a agressão imperialista contra uma nação frágil. Já são meio milhão de ucranianos refugiados. A ação russa deve ser amplamente condenada!
Putin busca antes de tudo sufocar as graves insatisfações nacionais e proletárias que há alguns anos se espalham pelas bordas de sua nação. Com maior destaque, trata-se de liquidar pela raiz a instabilidade aberta pelo Euromaidan em 2014. Tal conflito proletário e popular – basta ver o documentário Winter on Fire, para compreendê-lo – derrotou Putin à época. V. Yanukovych, então presidente ucraniano e lacaio do Kremlin, foi obrigado a fugir do país, refugiando-se em Moscou. Comprovou-se assim a falibilidade do poderio imperial russo. Agora, no palco da já instalada nova crise econômica mundial, assistimos a protestos massivos na Bielorrússia (2020/2021) e, há um mês, a violentos protestos proletários no Cazaquistão (reprimidos pelas forças especiais russas). Tudo isso acelerou a atual ação de Putin na Ucrânia. A burguesia russa necessita manter sob controle as pequenas nações adjacentes, pois só assim consegue manter sob controle o seu próprio proletariado.
Se for vitorioso, Putin terá também controle sobre regiões economicamente importantes da Ucrânia: a chamada “Novorrosia”, a sul e a leste do país. Trata-se de um arco territorial que vai da cidade de Odessa à região do Donbass, passando pela península da Crimeia. Esta, particularmente, é chave para o controle do Mar Negro, portanto também para a localização nos conflitos do Oriente Médio (onde a Rússia, graças a diversos acordos com os EUA desde 2015, substituindo-os, tem assumido a função de fiadora militar da “estabilidade” ocidental).
As mentiras de Putin
Putin se vale de mentiras para realizar o velho chauvinismo grão-russo. São mentiras já manjadas, muito similares às propagadas pelo stalinismo no século XX.
A primeira é a ideia de que há um governo “neonazi” na Ucrânia. Na realidade, os grupos neofascistas da Ucrânia são pequenos, isolados e pouco relevantes. O governo de Putin é mais autoritário do que o de Zelensky; as liberdades políticas e sindicais hoje são menores na Rússia do que na Ucrânia; a camarilha do Kremlin tem mais ligações orgânicas com paramilitares neonazis do que sua correlata ucraniana (o Grupo Wagner – que tem esse nome para homenagear o compositor favorito de Hitler – e o RIM, ambos sustentados por Putin, estão aí para provar). Há sim um nacionalismo ucraniano, mas ele foi e é alimentado pelo chauvinismo que Putin, seguindo a tradição tzarista e stalinista, implementa. O nacionalismo ucraniano – nacionalismo de uma nação oprimida – não pode ser igualado a neofascismo. Além do mais, suas feições de direita – já ensinava Lenin – seriam enfraquecidas se os ucranianos tivessem direito à autodeterminação.
A segunda mentira de Putin é a ideia de que apenas responde a “provocações iniciais da OTAN (EUA)”. Na realidade, muito mais importante do que o suposto “avanço” da OTAN é a sua paralisia. Esse nefasto organismo militar burguês está há anos num impasse histórico. Tal impasse foi agravado seriamente pela crise capitalista de 2007/08 e hoje vislumbra o abismo frente à nova crise anunciada. O que ocorre é o contrário do que reza a lenda: justamente por notar a paralisia da OTAN, Putin tenta tirar um pouco de proveito. Mas isso só é possível de ser compreendido se os conflitos imperialistas são analisados de um ponto de vista propriamente materialista (marxista), não segundo a superficialidade dos analistas da mídia burguesa (ou segundo o que os governos falam de si mesmos).
A base material dos conflitos imperialistas
Como já esclarecemos em outros documentos, é falso que os eixos dos conflitos “geopolíticos” atuais sejam “EUA versus Rússia” ou “EUA versus China” (nem que Rússia e China sejam aliadas contra os EUA). Para além do teatro das nações, os conflitos “geopolíticos” têm lastro na potencialidade econômica de cada Estado-nação.
Para compreender isso, não basta olhar as dimensões dos PIBs (nem a população potencialmente alistável nos exércitos). Não é a quantidade de capital produzida em uma nação que determina a sua capacidade de ação externa, mas a qualidade desse poder-capital. Para uma análise marxista, não importa observar apenas o número da riqueza extorquida dos trabalhadores (o PIB); é preciso entender como essa riqueza pode ser usada para contornar contradições internas à nação e dar base a ações externas. Olhar só o PIB ou focar-se em questões tecnológicas – como saber quem lançou tal ou qual novo satélite – é considerar apenas o lado técnico-objetivo do problema. Um marxista, mais do que naturalizar ou objetificar as relações sociais (fetichizá-las), deve cruzar dados com algo social/subjetivo: a luta de classes entre burguesia e proletariado internamente a um país. Em suma: uma nação com grande PIB mas uma massa enorme na miséria não é capaz de agir amplamente, em forma sustentada, como imperialista.
Para uma análise marxista da questão, deve-se observar sobretudo as produtividades nacionais dos maiores países. Dados como o de PIB per capita, ou de produtividade por hora trabalhada, por exemplo, auxiliam-nos. Veja-se o gráfico abaixo:
(A fonte do gráfico pode ser encontrada neste link.)
Eis por que Rússia e China não são grandes nações imperialistas. Isso não significa dizer, obviamente, que elas não possam agir no palco internacional de acordo com seus interesses, sempre que vislumbrarem uma brecha entre as grandes potências (é exatamente o que ocorre hoje, com a ação de Putin).
A Rússia, particularmente, devido à necessidade histórica de subjugar em seu território diversas nacionalidades, constituiu-se como relativa exceção ao apontado acima: é um Estado-nação de frágil economia mas forte poder bélico. Ainda assim, seu necessário dinamismo externo é limitado pelas grandes contradições sociais internas, o que exige alto grau de repressão à própria população proletária. Por isso, a Rússia é o fraco da cadeia imperialista.
O verdadeiro problema da OTAN não é a Rússia, mas a Alemanha
Diferentemente do que creem os órfãos da “Guerra Fria”, a OTAN não foi criada para “impedir a expansão do comunismo”. Em primeiro lugar, porque a produtividade da economia soviética sempre foi baixa (e, por isso, tomada pelas insolúveis contradições do “socialismo num só país”, ela afundou). Em segundo, porque o Ocidente deixou para os burocratas de Moscou a tarefa de impedir a expansão mundial do comunismo. Na realidade, a OTAN foi criada para impedir que a Alemanha se reerguesse militarmente.
O próprio termo “Atlântico Norte”, que dá nome ao organismo, provém do fato de ser uma aliança estratégica entre EUA, Inglaterra e França, para manter controlada a principal potência econômica do continente europeu, a Alemanha (não banhada pelo Oceano Atlântico). Esta só ingressou na OTAN num segundo momento. Paralelamente à OTAN, a URSS teve seu papel nessa mesma tarefa. Além de sufocar os conselhos operários em empresas (Betriebsrat) e desarmar os trabalhadores alemães quando da queda do Estado hitleriano, a burocracia stalinista ganhou parte da Alemanha e de Berlim. A questão alemã ficou assim: a oeste, França (OTAN); a leste, URSS; no coração do país, divisão (muro). Só isso parecia capaz de paralisar a economia capitalista que em 1870, 1914 e 1939 tentara dominar o continente europeu.
Tudo isso responde também as seguintes questões, que analistas burgueses e a “esquerda” simplesmente não conseguem explicar: por que a OTAN não desapareceu quando, com a queda da URSS, acabou o Pacto de Varsóvia (e a Alemanha foi reunificada)? Por que Rússia e China são membros permanentes, com direito a veto, do poderoso e restrito (5 membros) Conselho de Segurança da ONU, mas Alemanha e Japão não? Por que os EUA e Inglaterra vivem reclamando que a Alemanha não investe dinheiro na OTAN? Por que a Alemanha está articulando a criação, desde 2017, da Cooperação Estruturada Permanente (CEP), órgão militar continental europeu independente da OTAN?
Assim como o objetivo da criação da OTAN não era impedir a “expansão da comunismo”, não é hoje “cercar o imperialismo russo”.
A Alemanha se rearma
A gigantesca crise capitalista de 2007/08, e, agora, a nova crise instalada sob as principais economias mundiais (e pronta para eclodir), solapam a ordem econômico-política do pós-guerra. Todos viram a patética impotência da OTAN frente às ameaças de Putin (o papel ridículo do presidente francês, E. Macron, e a paralisia calculada do chanceler alemão, O. Scholz). Inicialmente, a Alemanha, num tom de zombaria com a própria OTAN, enviou cinco mil capacetes militares aos ucranianos! Não à toa, o corrupto ex-pugilista Vitali Klitschko, prefeito de Kiev, questionou o que fazer com aquilo: lançá-los sobre os russos? Por fim, afirmou ironicamente que teria sido melhor o envio de travesseiros…
A burguesia alemã usa agora o fato consumado (a invasão russa) para mudar completamente sua política bélica, como nunca no pós II Guerra Mundial. Agitando o espantalho de Putin, ela busca reerguer um militarismo condizente com sua dimensão econômica. Sua poderosa indústria bélica, voltada hoje praticamente apenas à exportação, deverá se focar mais e mais ao rearmamento interno.
Claro, a burguesia alemã é inteligente; ela dá, por assim dizer, “uma no cravo e outra na ferradura”. No domingo, dia 27/02, anunciou suporte à OTAN; afirmou que enviará aos ucranianos armas velhas, já desatualizadas, do estoque da Bundeswehr (forças armadas alemãs). Além disso, autorizou que Holanda e Estônia enviem aos ucranianos sucatas provenientes da antiga Alemanha Oriental (tais armas foram vendidas pela Alemanha a tais países com a condição de que seu uso fosse previamente aprovado por ela). Mas, por outro lado – e muito mais significativo –, poucas horas após o agrado à OTAN Olaf Scholz anunciou que a Alemanha destinará 100 bilhões de euros para “modernizar a Bundeswehr” e triplicará seus gastos anuais com armamento. Note-se: não são gastos destinados diretamente à OTAN, mas às forças armadas alemãs, e superam muito os valores das velhacarias bélicas enviadas à Ucrânia. Assim, por um lado Scholz se livra da velhacaria bélica, e, por outro, recompõe seu exército com o que há de mais avançado.
Aos poucos, a deutsche Frage (questão alemã) se reergue no coração continental europeu. O central agora é saber em quanto tempo se desenvolverá o belicismo alemão, bem como para qual lado penderá a balança da luta de classes nesse país e na França. Uma terceira guerra mundial, a nosso ver, é pouco provável sem um rearmamento alemão e japonês. A ação de Putin prenuncia algo; é um chamado aos verdadeiros atores para que compareçam antagonicamente ao palco, sob o escuro céu da próxima crise econômica.
Pela derrota de Putin na invasão ucraniana!
Como foi Putin quem iniciou a invasão imperialista, aproveitando a brecha das grandes potências, é ele quem deve ser derrotado primeiro. Não há por que fazer diversionismo, como a nossa “esquerda”, que para qualquer repúdio a Putin tem de pagar um tributo ao discurso do “anti-imperialismo estadunidense” (quando não apoia abertamente Putin).
A mera condenação vazia da OTAN não apresenta ao proletariado qualquer caminho de poder. A derrota da Ucrânia para a Rússia levará à queda de Biden, Scholz ou Macron? Levará a algum empoderamento das massas proletárias nos EUA, Alemanha ou França, contra seus governos? Já, por outro lado, o que significaria o armamento geral da população ucraniana? O que significaria a possibilidade do autocrata capitalista Putin ser derrubado pela população russa?
Mais do que desejar uma vaga “paz”, é necessário agir conscientemente para que a Rússia seja derrotada na guerra. Os revolucionários brasileiros devem expressar publicamente seu repúdio à ação russa (por meio de manifestações nas ruas, por exemplo); devem encontrar formas de pressionar as autoridades russas no Brasil (manifestações na embaixada, por exemplo) e devem buscar meios de fortalecer a resistência da população ucraniana (ajuda com suprimentos, donativos de toda sorte etc.). Caso a resistência ucraniana se consolide pelo armamento geral da sua população, tanto melhor. Aí poderão ser criadas condições para que tais armas se voltem amanhã contra a corrupta burguesia ucraniana.
Uma derrota russa favorece muitas coisas. Em primeiro lugar, desmonta o discurso dos que afirmam que a OTAN está realizando provocações. Pois com tal derrota, os diversos pequenos países adjacentes à Rússia, que logicamente se sentem ameaçados de invasão por Putin (dado o histórico secular), respirarão mais aliviados. Seu direito à autodeterminação, que hoje os lança aos braços da OTAN, poderá mudar de rumo e talvez avançar autonomamente para uma política proletária.
Em segundo lugar, uma derrota russa pode levar a um levante interno a esse país. Afinal, há lá uma verdadeira ditadura bonapartista – similar à monarquia tzarista –, que usa os conflitos externos para suprimir, com punho de ferro, as oposições internas. Assim como a derrota da monarquia russa para o Japão levou à Revolução de 1905 e a desintegração do império russo na I Guerra Mundial levou às Revoluções de Fevereiro e Outubro de 1917, a derrota de Putin pode explodir seu governo e abrir espaço a formas de poder dos trabalhadores.
Como falamos, as rachaduras do castelo de Putin já aparecem por todos os lados (Ucrânia, Bielorrússia, Cazaquistão). A invasão atual não é apoiada pela maioria da população russa (conforme mostrou pesquisa do instituto russo Levada, no último dia 24/02). Centenas de milhares já saíram às ruas em manifestações contra a invasão, em mais de 50 cidades russas, com destaque para São Petersburgo e Moscou. Não houve manifestação favorável à guerra. Cerca de 7 mil manifestantes já foram presos pelo governo russo (neste site as prisões são atualizadas a cada minuto, e não param de crescer!).
Um vazio de poder na Rússia muito dificilmente seria ocupado imediatamente por potências ocidentais. Um vazio de poder num império, mesmo que secundário, é complexo demais para ser resolvido rapidamente por outra nação. Caberia à oposição burguesa tentar controlar a situação, mas ela teria capacidade? Já o vazio de poder na Ucrânia – a derrubada do governo de Zelensky – será resolvido num único dia, por meio da composição de um governo títere de Moscou, como tantos outros que existiram.
Entre os problemas geopolíticos não resolvidos do século XX está também, ao lado da questão alemã, o da Rússia como elo frágil da cadeia imperialista mundial. Com uma derrota e possível queda de Putin, os dados serão lançados.
Fora Putin da Ucrânia já!
Viva as manifestações russas contra a guerra!