Muito se comenta sobre a recente crise no Oriente Médio frente ao assassinato do general Qassem Soleimani (comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária Iraniana) e de Abu Mehdi al Muhandis (líder das Forças de Mobilização Popular, iraquiana) pelos Estados Unidos no início deste ano. A “escalada de violência” alardeada pela mídia burguesa, apontada como possível estopim de uma guerra a nível global, invadiu as manchetes de todo o mundo. Não obstante, a chamada “esquerda” socialista prontamente repudiou o assassinato tendo em vista, por esse meio, erguer uma luta “anti-imperialista” no Oriente Médio.
Embora haja diferenças entre cada organização ou grupo da “esquerda” (expressando graus de “radicalidade” discursiva entre os grupos), a defesa da “soberania iraniana” e de seu direito de “resistir” ao imperialismo dos EUA são um consenso. Honrarias ao sanguinário Qassem Soleimani, enaltecendo seu papel “heroico” no combate aos interesses americanos; alegações falsas de que os EUA queriam roubar o petróleo iraniano; análises ora superficiais ora sensacionalistas, distorcendo os motivos das recentes mobilizações no Iraque/Irã; e até a defesa absurda da “paz mundial” frente à ameaça de guerra – tais elementos formaram o arcabouço de palavras de ordem da chamada “esquerda”.
A despeito das alas evidentemente oportunistas e sem princípios da “esquerda”, o combate ao imperialismo norte-americano, repetido como mantra diante dos mais variados contextos, cega até mesmo os chamados “revolucionários”, fazendo-os ignorar as contradições internas aos países chamados por eles de “subjugados”. É só ver como pouco ou nada nossa “esquerda” elucidou sobre os conflitos existentes na região do Iraque e Irã, e suas análises, de forma geral, não superaram o próprio jornalismo da mídia burguesa.
Ora, não são as lutas de classes internas ao Irã que deveriam pautar a estratégia revolucionária nesse país? Será que é por meios assim que uma luta “anti-imperialista” deveria se impor? Sob qual contexto se deu a morte do general e, mais importante, a que serviu esse assassinato?
Examinemos a situação mais de perto.
Crise da dominação burguesa no OM
O conflito no Oriente Médio envolve diversos fatores particulares, seja da formação econômica, social e política desses países, seja dos interesses do grande capital, dado que é uma região estratégica entre o Ocidente e o Oriente, vasta em recursos naturais. A destruição conscientemente impulsionada sobre a região, apoiada nas divisões internas, é uma das estratégias para garantir melhores acordos sobre as nações destruídas.
Acontece que esse conflito atual está localizado em um período de extrema apreensão dos capitalistas ao redor do mundo. A iminente crise econômica que os EUA (e todo o globo) esperam enfrentar no curto-prazo é o fator que determina a tensão das nações burguesas sobre seus conflitos internos. Tendo em vista os interesses locais no Oriente Médio, assim como uma nova explosão de manifestações massivas (que atingiram também o Iraque e o Irã), a dominação burguesa nessas regiões encontra-se, para dizer o mínimo, arruinada. Vejamos.
Crise no Iraque: domínio dos EUA e do Irã
Desde que o país foi invadido pelos EUA em 2003, tendo Saddam Hussein sido assassinado, o regime iraquiano passou da ditadura de uma “corte” nacionalista sunita a uma teocracia xiita. O controle americano no Iraque se definiu pela ampliação e incentivo das divisões internas existentes num país com elementos de atraso. Os EUA acentuaram as diferenças étnico-religiosas entre a população, provocando intencionalmente guerras e submetendo governos a partir do financiamento de conflitos armados entre grupos paramilitares. No Iraque, encontrou lugar para construir sua maior embaixada e sua maior base militar no mundo, bem como instalar um enorme centro operacional da CIA, criando uma importante base para ação no Oriente Médio.[1]
O auto-abastecimento de petróleo de xisto e gás nos EUA, que o converterá em breve no primeiro produtor mundial de petróleo bruto, corroborou para uma queda no interesse americano no Iraque na última década. As tropas americanas desde 2009 foram sendo retiradas do Iraque, e, assim como os EUA fizeram na Síria (de terceirizar seu controle para a Rússia), os EUA também terceirizaram o controle do Iraque para o Irã. Isso porque, antes mesmo de qualquer disputa geopolítica, os EUA têm de se responsabilizar pela manutenção dos Estados burgueses nos países que destruiu, frente ao risco de levante proletário. Os EUA não podem simplesmente entrar num país, destruí-lo e sair. Mas, ao mesmo tempo, não podem mais, frente às suas contradições internas e ao abismo da crise mundial que se aproxima, manter tamanha intervenção em todo o mundo. Eis por que os EUA têm terceirizado, por exemplo, à Rússia, ao Irã e outros o domínio sobre países específicos.
Em 2009, por exemplo, o acordo para que o Irã ficasse responsável pela segurança interna do Iraque, “contra o avanço do Al Qaeda”, ocupando assim o posto dos EUA, foi acordado entre os três países. É sabido, inclusive, que as forças Quds iranianas se apropriaram de redes de informação deixadas pela CIA, logo após a retirada de mais tropas americanas em 2011.
A influência do Irã cresceu consideravelmente no Iraque na última década. Como? Dois elementos essenciais: 1) o Irã desenvolveu, dentro do Iraque, para conter o avanço do Estado Islâmico, as Forças de Mobilização Popular (FMP), uma força paramilitar treinada e financiada pela Guarda Revolucionária Iraniana. A FMP se recusou a entregar suas armas após o encerramento de conflitos com o Estado Islâmico e se tornou, de fato, uma força política (partidária), que disputa eleições, ocupa cargos ministeriais, etc.; 2) a influência do Irã no parlamento e cargos executivos do Iraque se apoia sobre as forças xiitas do país, para diretamente controlar o governo.
Acontece que esse controle iraniano sobre o governo do Iraque sofreu certa resistência nos últimos anos, como na eleição de 2018. Diante de divisões internas, o governo iraquiano demorou meses para conseguir finalizar suas negociações e se formar, e elegeu um primeiro-ministro relativamente distante das forças iranianas.
Em outubro de 2019, um novo e fundamental fator acentuou a crise de dominação: mobilizações de massa surgiram no Iraque, tendo como uma de suas principais reivindicações o combate à influência iraniana no próprio governo. Estas foram duramente reprimidas com ajuda direta do iraniano Soleimani, que coordenou um verdadeiro banho de sangue. A figura do general, desde novembro, ficou associada à repressão, que deixou mais de 500 mortos e 17 mil feridos. Embora o governo iraquiano tenha prometido reformas (todo o script burguês), a tensão continuou presente e o primeiro-ministro renunciou, tendo se instalado uma crise governamental, que se estende até hoje (não se sabe ainda quem o substituirá).
Não à toa, as manifestações subsequentes ao assassinato de Soleimani e Muhadis levantaram a bandeira: “Contra os ocupantes (americanos e iranianos)”.
Crise interna ao Irã
Os protestos que se iniciaram no Iraque irradiaram até o Irã, sublevando milhares de manifestantes contra o aumento no preço do combustível e contra todo o sistema político vigente. Para se compreender a dimensão da crise interna ao país, é necessário examinar as forças das frações burguesas em disputa. A chave desse conflito está na relação entre o governo (presidente) e a Guarda Revolucionária Iraniana (esta última respaldada pelo Aiatolá Khamenei).
Há, de um lado, uma fração “moderada”, do presidente Hasan Rohani e de seu Ministro de Relações Exteriores, Javad Zarif, e, de outro, a fração do aiatolá e da cúpula da GRI. A fração do presidente, embora esteja no comando “executivo” do país, não possui de fato nenhum poder real. Cabem ao Líder Supremo, Aiatolá, praticamente todos os direitos políticos de controle do país: ele pode dissolver o parlamento, destituir o presidente, controlar a política externa e interna do país etc.
Do lado do Aiatolá Khamenei estão os militares da GRI (Guarda Revolucionária criada a partir da Revolução Iraniana de 1979 – tendo sido Solemani o líder da Força Quds, responsável pela política externa). Esses militares controlam, de fato, a totalidade dos pilares da economia, desde o setor de petróleo e gás (vendendo-os inclusive por canais de contrabando ilegais), até o setor de construção civil e telecomunicação. Com a justificativa de garantir “a paz social”, a GRI ostenta dezenas de cartéis, centros de detenção secretos, conta com o direito de invadir domicílios sem qualquer autorização judicial, controla a Agência de Informação e Segurança do Estado e é responsável pela execução de milhares de opositores de todos os grupos políticos do país. Para completar, também controla dezenas de grupos paramilitares instalados nos bairros das principais cidades iranianas, além de ser responsável pela articulação e financiamento de milícias xiitas por todo o Oriente Médio. A GRI é, na prática, um poder paralelo (com mais poder de facto) dentro do próprio Irã. O setor GRI-Khamenei, ante a grave instabilidade interna que pode se instalar a qualquer momento, teria evidentes condições de realizar um golpe ou fechamento do regime (usando, por exemplo, a justificativa de enfrentar o “imperialismo yankee” com mais força).
Os EUA, buscando garantir melhores condições de acordo com Irã (seja comercial, seja no âmbito bélico-nuclear), realizou duras sanções contra a venda de petróleo nos últimos anos, o que abalou consideravelmente a economia iraniana, dependente da exportação petrolífera. A crise econômica no Irã é sem precedentes: nos últimos anos, centenas de fábricas foram fechadas, levando ao desemprego mais de 12 milhões de trabalhadores; a inflação ronda os 46% e o índice de pobreza, segundo o próprio governo, é de 54%, mais da metade da população. O que a burguesia iraniana tem feito é apenas aumentar a dependência econômica do país da venda do petróleo, controlada pela elite clérico-militar, que tem investido dinheiro público nas suas empresas de importação.
De toda forma, essa tensão diante dos protestos que também explodiram no Irã – em novembro, seguindo-se em dezembro, com centenas de milhares de pessoas, também respondidos com uma repressão brutal – não conseguiu esvaziar as ruas totalmente. A população se sublevou, antes de tudo, não contra o “imperialismo norte-americano”, mas contra sua própria burguesia.
A que serviu, então, o assassinato de Soleimani?
De um lado, apaziguou momentaneamente os protestos internos ao Irã. Ao resgatar certo sentimento “anti-imperialista”, reestabeleceu a ordem burguesa. Ou seja, a despeito de toda a repressão realizada por Soleimani contra as mobilizações proletárias que precederam sua morte, seu funeral reuniu gigantesca adesão popular.
Mesmo servindo para apaziguar a luta de classes interna, do interesse de ambas as frações burguesas iranianas, há de se trabalhar com a hipótese de que era do interesse da ala “moderada”, do presidente Rohani, que o assassinato ocorresse. Cortar a cabeça do líder da GRI, Soleimani, enfraqueceu internamente essa guarda, que exerce um contraponto de poder ao presidente, como falamos, enfraquecendo também, assim, o poder do aiatolá. É por isso que não descartamos a possibilidade de que os EUA tenham agido em comum acordo com essa ala do governo iraniano para matar Soleimani.
A queda inesperada do avião ucraniano, ao que parece, minguou parte da farsa que desmontava a contradição interna, e a fez ressurgir novamente. Entretanto, ela agora ressurge de forma curiosa, não mais contra todo o governo iraniano, mas focada na figura do Aiatolá Khamenei e da GRI. O próprio presidente Rohani foi habilidoso em manobrar o fato político, para que toda responsabilidade recaísse apenas sobre a GRI, desmoralizando-a ainda mais. Evidentemente, o jogo não cola por completo, e parte da ódio também se volta contra Rohani.
Não achamos, a princípio, que o assassinato de Soleimani foi uma estratégia particular dos EUA para conter suas próprias contradições internas. Falamos isso tendo em vista, sobretudo, a política americana no Oriente Médio nos últimos anos. A própria campanha eleitoral de Trump se construiu em oposição ao acirramento dos conflitos e guerras envolvendo os EUA na região. A apreensão e insegurança de Trump quando deu a notícia do ataque, parecem demonstrar, no mínimo, que ele sabia dos riscos de sua popularidade ser comprometida em ano eleitoral. Embora não se possa descartar a tese de que o ataque tenha sido estratégia eleitoral (para frear o impeachment em andamento) ou acordo realizado com o Estado de Israel (o principal interessado no domínio de ambos os países no OM), parece-nos que o assassinato mais fragilizou do que fortaleceu Trump internamente aos EUA, frente à maioria de sua população.
Qual deve ser a estratégia revolucionária diante da crise no Irã?
Muito além de quem apertou o gatilho contra Soleimani, nos parece que o assassinato deve ser explicado, antes de tudo, pelas contradições internas ao próprio Irã. Esse fato é o mais importante, pois é ele que determina uma estratégia revolucionária frente ao problema. Devido a esse elemento, tal estratégia não advém de um abstrato combate ao imperialismo, mas do caminho pelo qual a classe trabalhadora iraniana pode dar cabo de sua própria burguesia. O externo, nesse caso, é acessório ou secundário. O central no momento é liberar as energias da classe trabalhadora iraniana para que derrube seu próprio governo burguês – a começar pelo reacionário aiatolá Khamenei e pelo poder da GRI –, idealmente caminhando para a instauração de um governo proletário (mesmo num país com traços de atraso em sua formação econômica).
É evidente que o “apertar do gatilho” dos EUA contra Soleimani deve ser condenado, bem como a nefasta presença dos EUA na região, que só produziu balcanização, miséria e barbárie (para melhor dominar). Mas isso, notemos, parte significativa da própria burguesia já faz. A própria mídia burguesa de diversos países achou a ação contra Soleimani, por exemplo, totalmente absurda. Assim, não devemos nos ater ao limite da análise e da ação da burguesia, como faz praticamente toda a esquerda liberalizante e democratizante ao redor do mundo. O nosso papel é maior do que isso. Devemos encontrar o difícil e escondido fio da meada da ação revolucionária das massas e, nesse caso, como falamos, ele não passa pelo diversionismo “anti-imperialista”, que hoje empodera a burguesia iraniana, e sim pela proposição de derrubada do governo burguês pela classe trabalhadora – inclusive demonstrando que ambos os governos (EUA e Irã), a despeito das propaladas disputas, estabeleceram diversos acordos em comum nas últimas décadas.
Somente assim – lutando contra a burguesia iraniana – se poderia, de fato, inclusive, conduzir uma luta baseada em possíveis traços nacionais contra a presença dos EUA na região. Qualquer política que, apagando a primeira contradição (a contradição entre a burguesia iraniana e o proletariado iraniano), se focar apenas no conflito externo, necessariamente não terá forças para realizar o próprio combate “anti-imperialista” a que se propõe. Somente a liberação das energias do proletariado iraniano – que, como vimos, tem motivos de sobra para odiar sua própria burguesia – pode criar uma força capaz de conduzir o conjunto da população (incluindo os setores populares marcados pelo atraso econômico) a um combate contra qualquer opressão de outro Estado. Não se trata de apagar o caráter atrasado (resquícios pré-capitalistas) que existem nesse país, mas de submeter o programa nacional-democrático à luta revolucionária e socialista, impulsionado pela força do proletariado.
As massas
trabalhadoras do Irã, assim como as do Iraque, estão hoje mais revoltadas
contra os aiatolás xiitas (e seus títeres) do que contra Trump. Um caminho de
futuro, hoje, existe aí, mas ele só pode ser trilhado se a esquerda mundial
superar sua política atual, adaptada a
setores burgueses.
[1] Há de se destacar que Saddam Hussein foi um importante aliado dos EUA durante as décadas anteriores, tendo este financiado o golpe de Estado que levou Saddam ao poder em 1979. Os negócios sobre o petróleo iraquiano interessaram mais a Israel do que propriamente aos EUA.