Transição Socialista

Dez anos depois: Celebrar junho de 2013 ou condenar a derrubada do PT?

Dez anos após as jornadas de junho de 2013 sobram falsificações a respeito daqueles eventos. Há no interior da autointitulada “esquerda” um intenso debate acerca da relação entre aqueles acontecimentos e toda crise política que teria se sucedido na década seguinte.

O PT e seus satélites, vítimas de primeira linha daquela onda de manifestações, estão corretos ao identificar em junho de 2013 o ponto de partida dos movimentos e processos que os derrubaram do poder em 2016. A falsificação presente na narrativa petista, todavia, consiste em identificar esses processos como uma ascensão do “fascismo” no Brasil. Como já dissemos inúmeras vezes, não houve risco de fascismo no período recente, essa narrativa apenas serviu ao PT para que se reerguesse, até chegar novamente ao poder com Lula III em 2023.

A análise hegemônica no interior da autointitulada esquerda socialista, no entanto, é, em certa medida, ainda mais falsificadora do que as do próprio PT. Não condenam junho de 2013, mas tentam a todo custo desvincular aquelas jornadas das manifestações e dos processos que derrubaram Dilma da presidência três anos depois. Ocorre que a despeito da esquerda ter participado ela própria daquelas manifestações, de lá para cá capitulou gradativamente ao PT e às suas “narrativas” até, enfim, patrocinar seu retorno ao poder em nome do combate ao “risco fascista” no Brasil.

A esquerda busca, então, um “meio termo” para justificar suas próprias posições. Celebra junho de 2013, mas condena o que se sucedeu nos anos seguintes como um sequestro das mobilizações por uma extrema direita hábil e capciosa.  A verdade é que a esquerda se retirou da luta contra o PT e passou a sustentá-lo, e assim entregou as ruas e toda revolta social aberta em 2013 nas mãos de pirralhos desconhecidos, como os do MBL, e depois para o “cabeça de toucinho” Jair Bolsonaro.

É preciso dizer com todas as letras: junho de 2013 derrubou o PT e estremeceu o regime de dominação da burguesia. Os atos contra a Copa de 2014, o aumento vertiginoso das greves de trabalhadores, as centenas de ocupações das escolas secundaristas em 2015 e as gigantescas manifestações pelo impeachment da Dilma até 2016, mesmo as contradições que se desenvolveram no interior da burocracia estatal com a Lava-Jato, prisões de grandes figurões do empresariado e da política nacional… todos esse são elementos de continuidade da crise social e política abertas em 2013.

Como sustentamos nos últimos anos, o fenômeno da Lava-Jato foi expressão indireta e degenerada – por meios de elementos das camadas médias do judiciário – da pressão da classe trabalhadora que se fez mostrar diretamente em junho. Contudo, o abandono da esquerda em relação àquelas manifestações de revolta não deu a ela a vazão digna de sua radicalidade. A própria inatividade da esquerda também explica a proeminência da lava-jato como legado de junho. As limitações claras da agenda política dos juizecos da operação eram coerentes aos limites e à falta de autonomia da pequena-burguesia, num momento de agudo acirramento da luta de classes.

Assim como a Lava-Jato expressou a revolta, feneceu tão logo a revolta não encontrou caminhos para o fortalecimento da organização da classe trabalhadora, e foi prontamente regulada por camadas do judiciário mais firmemente atreladas aos interesses da burguesia: o mesmo STF (a mais política das esferas do judiciário) que livrou Aécio, Temer, e mandou prender Lula, depois o soltou e o repôs ao baralho das cartas necessárias à estabilidade política.

O PT – que em 2013 deixou de cumprir a sua única vocação histórica, controlar as massas e os organismos da classe trabalhadora, e “permitiu” que as ruas se insurgissem e as fábricas se movimentassem – foi reconvocado à sua tarefa histórica, tão logo a aventura bolsonarista se mostrou improdutiva para a estabilidade dessa mesma dominação burguesa. Depois do impeachment, o PT foi o principal sustentáculo dos governos Temer e Bolsonaro, emprestando seus quadros, fazendo acordos com os governos para controlar as contradições internas ao Estado e enterrar a Lava-jato, e sobretudo controlando, com seus aparatos, as organizações da esquerda e dos trabalhadores para arrefecer as mobilizações que se erguiam. Bloquearam as paralisações contra as reformas da previdência e trabalhista, usaram a burocracia sindical para impedir que as mobilizações de todo período se organizassem a partir dos locais de trabalho e das fábricas, controlaram e arrefeceram as manifestações que poderiam ter derrubado Bolsonaro em 2021, ajudaram a manter este governo sangrando e enfim canalizaram toda a indignação popular (inclusive com os descalabros em relação à condução do governo na pandemia) para seus interesses eleitoreiros em 2022.

Hoje, os socialistas sentam-se à mesa da burguesia para celebrar a derrota de 2013 com o retorno do PT ao poder. Lula com Alckmin, Haddad e tudo de mais podre que a velha política nacional tem a oferecer. Se naquela época, nos últimos atos de junho, organizações de esquerda foram expulsas por terem sido injustamente confundidas com o governo petista, hoje não haveria qualquer confusão a ser desfeita.

Imagens da agitação em junho de 2013 pelo Território Livre, movimento da juventude do MNN, atual Transição Socialista.


Junho e sua direção política

Junho de 2013 desvelou o potencial revolucionário da classe trabalhadora, foi uma fissura na normalidade burguesa que liberou forças sociais até então inimagináveis para toda uma geração. O rotineirismo sindical e parlamentar dos “socialistas” na ocasião foi atropelado pelo estouro das manifestações. O conservadorismo da “esquerda” já estava manifesto à época na condenação da radicalização dos atos e do fenômeno Black Block.

O mérito de acender a fagulha para a explosão que viria foi todo do Movimento Passe Livre (MPL), seus jovens e aguerridos militantes, desprendidos dos grilhões dos burocratas de esquerda, e que conduziram os atos ao enfrentamento. A propósito, no Território Livre/MNN nos vinculamos organicamente a esse movimento, sem sectarismo e dirigismo, e unificamos nossas fileiras, nossa agitação e nossa bateria com as do MPL. Mergulhamos de cabeça para engrossar a potência daquela juventude indomável que saía às ruas e para enfrentar a repressão policial. Nenhuma outra organização socialista aceitou “baixar a cabeça” e dar esse mesmo passo, se engalfinharam por um protagonismo artificial tentando inutilmente elevar seus próprios blocos e bandeiras acima do grande movimento que se abria.

Contudo, sempre apontamos como um problema do MPL, antes e depois de 2013, seu programa reformista com palavras de ordem como “Direito à cidade”, “tarifa zero” e todo esse amontoado de ilusões petistas da década de 1980, do qual nunca puderam se desvencilhar.

A luta defensiva que acenderam contra o aumento da passagem expressava a grande insatisfação com a carestia de vida em geral, todavia essa insatisfação não encontrava no programa do Passe Livre um desenvolvimento para além das revogações pontuais no transporte. Menos ainda, o programa do MPL apontava para as ruas, mas não indicava qualquer tentativa mais sólida de enraizamento nos locais de trabalho, o que daria um salto de qualidade às mobilizações. O limite deste programa ficou evidente inclusive com o fato de que Haddad e Alckmin facilmente desoneraram a passagem dos transportes, para onerar a classe trabalhadora com cortes em outros serviços estatais.

Tal debilidade programática também se manifestava como fragilidade organizativa do MPL. O agrupamento que despontou como principal movimento político daqueles importantes eventos, reconhecido e legitimado nacionalmente, hoje praticamente deixou de existir. Não consolidaram qualquer saldo organizativo para a luta da classe trabalhadora quando tiveram a faca e o queijo nas mãos. A recusa unilateral à organização partidária encontrou reverberação na juventude combativa à época, graças ao desgaste dos partidos políticos tradicionais (sobretudo do PT), mas ao mesmo tempo desembocou na dispersão e na pulverização de suas fileiras.


Não à toa, o quase homônimo MBL (Movimento Brasil Livre), facilmente despontou como um ‘partido político’ influente depois com as manifestações contra a corrupção e o governo Dilma. Até então desconhecidos, canalizaram a revolta das massas com o PT que a esquerda abandonou. Cresceram em influência, elegeram candidatos, se consolidaram a ponto de sua projeção ter eclipsado a própria existência do Movimento Passe Livre que o antecedeu. Em suma, o MPL perdeu uma importante chance de construir uma organização radical dos trabalhadores e da juventude dadas as suas limitações políticas.

Como já dissemos, os fedelhos do MBL e a “nova direita” também se enfraqueceram depois, a esquerda revolucionária teria sido a única capaz de herdar de forma consistente as revoltas de 2013. Contudo, não só abandonou a luta contra o PT aos olhos das massas, como se associou incondicionalmente a esse partido burguês. A “nova direita”, dados os seus interesses de classe, rapidamente se associaria à institucionalidade e à lama estatal da burguesia, com Temer e Bolsonaro, e cairia em descrédito para a população revoltosa, como vimos. É lamentável que não tenha havido uma esquerda capaz de canalizar essas revoltas para o fortalecimento de uma organização radical dos trabalhadores à altura da crise social aberta e que desse consequência a ela.

Que novos junhos voltem a derrubar o PT e todos os partidos da ordem burguesa e que uma vez mais abram caminho para a organização revolucionária dos trabalhadores!

Que movimentos maiores e melhores que o da última década voltem a nos surpreender, e que tomem novamente de assalto os carreiristas, os oportunistas, os bajuladores, os falsificadores e os burocratas de toda espécie que se levantam hoje contra a memória de Junho de 2013!

E para fazer jus a essas surpresas e à velha toupeira da história: construir dia a dia a organização revolucionária dos trabalhadores!

Imagens da agitação em junho de 2013 pelo Território Livre, movimento da juventude do MNN, atual Transição Socialista, em conjunto com o MPL.

Imagens dos panfletos do TL em junho de 2013.