“A realidade não perdoa nenhum erro de doutrina” (Léon Trotsky)
A discussão sobre o fascismo voltou à ordem do dia, com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República. Muitos analistas burgueses e da academia falam de um suposto fascismo de Bolsonaro (ou “neo-fascismo” ou variantes do gênero) e boa parte da esquerda segue nessa toada – basta ver como, em resposta às ações desprezíveis do governo nos últimos meses, levantou-se a bandeira do antifascismo, que chegou a, inclusive, mobilizar muitos lutadores às ruas em protesto, mesmo em meio à pandemia de COVID-19.
Pensamos, entretanto, que há muita confusão na caracterização do fenômeno, feita conscientemente por oportunistas que se dizem “de esquerda” e usam a acusação de “fascista” sem critério nenhum que não a sua conveniência política, para semear confusão e depois colher os frutos disso. Buscam confundir lutadores honestos que, quando se reivindicam antifascistas ou acusam o governo de ser fascista, procuram demarcar sua oposição radical a ele. Mas, como diz a citação de Trotsky, um erro na caracterização do inimigo pode ter desdobramentos práticos muito sérios. Justamente por conta da necessidade fundamental de demarcar posição em relação a esses oportunistas é que faremos nossa modesta contribuição com essa série de conteúdo sobre o fascismo.
“Fascista” não é uma mera etiqueta a ser colada em qualquer inimigo político. O fascismo é o último recurso, da parte da burguesia, contra a ascensão revolucionária da classe trabalhadora: é a mobilização da pequena-burguesia arruinada em partido político centralizado, organizado de modo a destruir a vanguarda dos trabalhadores pela força. Fazer como boa parte da esquerda faz, que é carimbar todo e qualquer adversário político com o rótulo de “fascista” é um desserviço ao combate ao fascismo propriamente dito, na medida em que banaliza um fenômeno gravíssimo, cuja emergência verdadeira é, muito literalmente, uma ameaça de morte para os revolucionários. Nós vimos a quantidade de oportunistas que prontamente se abrigaram sob o rótulo de “anti-fascistas” quando essa simbologia viralizou nas redes sociais e a História ensina o quanto estes mesmos oportunistas pavimentaram o caminho, justamente, para que o fascismo esmagasse inúmeros processos revolucionários.
Para que esse erro não se repita, neste texto retomaremos três experiências de regimes fascistas, procurando, por meio desses exemplos históricos, tratar de outras questões teóricas de suma importância (como, por exemplo, as noções de frente única e de governo de Frente Popular): a Itália de Mussolini, a Espanha de Franco e a Alemanha de Hitler. Ao final, oferecemos referências de leitura para os interessados em se aprofundar no assunto. Este não pode ser um debate escolástico ou meramente acadêmico, mas cada texto e estudo tem de ser instrumentos para preparar os lutadores para os combates que virão.
Neste primeiro tópico, falaremos do “caso clássico”, a primeira expressão histórica do fenômeno: a Itália de Mussolini. Para entender como foi possível a ascensão do fascismo, é preciso observar com atenção o processo de radicalização política dos anos que antecederam 1922, pois eles são a chave para entender o surgimento desse regime autoritário.
A Itália, após o fim da Primeira Guerra Mundial, foi palco de grandes conflitos de classe, com movimentações por parte de seus trabalhadores de dimensão inédita na história do país. Entre 1919 e 1920, ocorreram 3544 greves na indústria e 397 greves na agricultura; o Partido Socialista (PSI), principal organização do movimento operário, chegou a ter mais de 200 mil membros e os sindicatos, mais de 2 milhões e 300 mil filiados. Entretanto, o mais significativo desse “biênio vermelho”, como ficou conhecido, foi o salto qualitativo na organização dos trabalhadores: uma poderosa organização em comitês de fábrica, capaz de organizar greves massivas e mobilizar milhares de trabalhadores, além de ter sido o instrumento que possibilitou uma medida política muito mais radical, a ocupação das fábricas.
Em agosto de 1920, a Alfa-Romeo de Milão praticou o lockout (quando os patrões fecham os locais de trabalho para impedir a entrada dos trabalhadores) de sua fábrica, ao que os operários responderam com a ocupação. A Confindustria – a confederação de sindicatos patronais italianos – ordenou o fechamento de todas as fábricas na Itália, mas os operários, em resposta, iniciaram um movimento de ocupação que se espalhou por todo o país. Em Turim, os operários se adiantaram e ocuparam as fábricas antes do lockout patronal, sendo que, através da organização via comitês de fábrica, com destaque para o da Fiat, colocaram as fábricas para funcionar por um mês, por conta própria!
Esse era o ponto de não retorno: a propriedade privada capitalista tinha sido atacada no seu cerne e essa medida radical dos operários italianos necessitava de uma direção revolucionária para fazer sua luta avançar até às últimas consequências – isto é, para levar o proletariado até a insurreição armada. Infelizmente, as direções do proletariado, como o PSI, vacilaram e as consequências, como lembra Trotsky no Programa de Transição, não poderiam ser mais nefastas: “Por sua própria iniciativa, os operários italianos apoderaram-se das empresas em 1919-1920, assinalando a seus próprios ‘dirigentes’, assim, que a revolução social havia chegado. Os ‘dirigentes’ não deram ouvidos a esse sinal. O resultado foi a vitória do fascismo”. Dois anos depois, Mussolini realizaria a Marcha sobre Roma, organizando milhares e milhares de militantes fascistas – cuja composição de classe era, sobretudo, de pequeno-burgueses arruinados pela crise e de camponeses, muito numerosos na Itália –, e finalmente tomaria o poder, para suprimir o ímpeto revolucionário da classe trabalhadora italiana por meio do derramamento de sangue.
A base social do fascismo, pequeno-burguesa, é composta de sujeito dispersos pela produção, que trabalham isolados e que não tenderiam a se organizar de forma tão sólida quanto os próprios trabalhadores, não fosse pela falta de decisão das lideranças operárias.
O exemplo italiano mostra como o fascismo é, essencialmente, uma resposta da burguesia à uma situação de radicalização extrema do proletariado e que ele só pode erguer-se ao poder diante da falta de ação e da covardia das lideranças proletárias mais relevantes.
Quando a classe trabalhadora desenvolve formas organizativas e de luta mais avançadas, mas não avança para a tomada do poder, o fascismo surge como a cartada capaz de detê-lo recorrendo ao massacre pela via das armas.
A própria greve da Alfa-Romeo, de agosto de 1920, só foi quebrada pelo auxílio dos “camisas negras” fascistas, milícia paramilitar usada para a supressão de inimigos políticos. Esse exemplo serve para escancarar como não há sentido de se falar em “fascismo” sem uma mobilização revolucionária dos trabalhadores que lhe precede, e em relação ao qual ele se contrapõe. No próximo tópico, sobre a Espanha de Franco, veremos a trágica repetição desse fenômeno, que conta com um elemento que estava ausente no caso italiano: o governo de Frente Popular e sua impotência em deter o avanço da contrarrevolução.
“A derrota da revolução espanhola, que será inevitável se a dispersão e a debilidade dos comunistas continuar, conduzirá quase simultaneamente à instauração de um regime verdadeiramente fascista, no estilo do de Mussolini.” (Trotsky, A revolução espanhola)
As palavras de Trotsky, escritas em 1931, tornavam-se a amarga realidade em 1937, depois de seis anos de crise revolucionária: a derrota definitiva da revolução espanhola foi sacramentada pela vitória do regime fascista de Franco; a contrarrevolução derrubara, mais uma vez, a revolução permanente e instituíra na Espanha mais um regime fascista, após a tomada do poder por Hitler na Alemanha, em 1933. Mas não havia de ser necessariamente assim, como essa própria citação indica: a derrota só se consumou por conta de uma série de crimes tanto da parte dos comunistas (a III Internacional estalinizada) quanto por erros graves dos partidos e organizações que tinham ascendência sobre a classe trabalhadora espanhola, em mais um capítulo sangrento da crise de direção revolucionária.
O elemento novo na ascensão fascista espanhola, em relação às demais experiências europeias de então (como da Itália, Portugal e Alemanha) era o regime que imediatamente a precedera, o governo de Frente Popular. Governos de Frente Popular são governos de coalização entre os partidos da classe trabalhadora e o que Trotsky chamou de “a sombra da burguesia”, isto é, partidos burgueses que já não têm mais consistência ou força para, sozinhos, deterem o ascenso revolucionário dos trabalhadores – e que, assim, só podem ser bem-sucedidos nessa tarefa graças à sobrevida que lhe dão organizações como o Partido Comunista. São governos sustentados, por um lado, pelas formas de organização independente dos trabalhadores (como os conselhos operários e de soldados ou até sindicatos e federações sindicais) – que enxergam esses governos, em um primeiro momento, como a expressão do seu próprio poder, e procuram fazer com que eles executem suas vontades – e, por outro, pela aliança com a burguesia dita “progressista”. Procuram enquadrar o movimento dos trabalhadores nos quadros da política parlamentar e, o que é central, impedem suas ações mais audazes, inclusive recorrendo à força e à violência, além de trabalharem para o desarmamento e desmobilização militar da classe trabalhadora. Exemplos de governo de Frente Popular na História são o de Kerenski, em 1917 na Rússia, de Azaña e de Léon Blum, na Espanha e na França, respectivamente, ambos em 1936, e o de Salvador Allende no Chile, em 1973. Não há desfecho possível para um governo de Frente Popular que não seja a vitória revolucionária ou a da contrarrevolução, como os casos da Rússia e da Espanha, respectivamente, comprovaram.
Tais governos ditos populares são, portanto, a antessala de um inevitável desfecho violento de episódios de acirramento da luta de classes. O que resta resolver é, em geral, se vencerá a contrarrevolução ou a classe trabalhadora. E tais governos, ao ajudar a burguesia a desarmar nossa classe, acabam por facilitar justamente a vitória da reação.
O processo de crise revolucionária na Espanha começou antes da constituição do governo de Frente Popular, que surgiu para estancá-la. Em 1931, a monarquia espanhola caiu sem um tiro sequer ter sido disparado: nas palavras de Trotsky, a questão fora resolvida “pelas doenças da velha sociedade” e não “pelas forças revolucionárias da sociedade nova”. O governo republicano que se seguiu foi totalmente incapaz de realizar a contento e sustentar as medidas democráticas da revolução burguesa, como a separação da Igreja e do Estado, a questão da terra e a questão das nacionalidades. No século XX, elas só poderiam ser resolvidas por meio da ação da classe trabalhadora organizada, à exemplo do que fora feito na Rússia. Tanto é assim que a esse primeiro governo republicano liberal, que pouco ou nada entregou, a não ser repressão à classe trabalhadora, logo se seguiu um governo de direita que rechaçou o programa de reformas e intensificou a repressão.
Os trabalhadores respondiam. Levantes como os dos mineiros asturianos em 1934 e uma série de insurreições localizadas, em grande parte impulsionadas pelos anarquistas (que tinham uma influência no movimento operário muito maior na Espanha do que nos demais países da Europa ocidental), mostravam que os trabalhadores espanhóis não se dariam por vencidos facilmente. A ascensão do governo de Frente Popular se dá nesses marcos. A ascensão de Hitler na Alemanha provocara nos trabalhadores fortes impulsos em direção à unidade de suas organizações no combate à ameaça fascista. Mas a unidade de ação que era necessária para o combate ao fascismo – e que fora, na Alemanha, rechaçada pelos próprios stalinistas, antes deles se autoproclamarem campeões da “unidade antifascista” – foi substituída por uma unidade eleitoral, que submetia o programa das organizações revolucionárias ao da burguesia, apagando nele as posições e interesses próprios da classe trabalhadora. A unidade entre as organizações dos trabalhadores para combater o fascismo nas ruas e nas fábricas dava lugar à unidade entre essas mesmas organizações e a burguesia para “combatê-lo” nas urnas: a frente única antifascista, de ação e luta, dava lugar à Frente Popular, que ganhava uma maioria nas Cortes (o Parlamento) em 16 de fevereiro de 1936.
Mas não foram somente os stalinistas que, confundido a necessária unidade de combate ao fascismo com a unidade eleitoral, abandonaram o princípio fundamental, estabelecido por Marx já no século XIX, de independência de classe, para juntarem-se ao governo burguês e lá adotar um programa burguês. O POUM, Partido Operário de Unificação Marxista, fruto da união do Bloco Operário e Camponês da Catalunha com a Esquerda Comunista de Andrés Nin (anteriormente ligada à Trotsky e que por ele fora arduamente criticada graças à aproximação e depois fusão com o Bloco), acabaria por ingressar no governo da Catalunha, bem como os anarquistas ligados à Confederação Nacional do Trabalho (CNT). O medo do isolamento (temporário) em relação aos humores da massas, que no começo do processo entusiasticamente apoiavam a Frente Popular, levou o POUM a abandonar toda a experiência histórica acumulada pelo movimento dos trabalhadores, entrar no governo e terminar com as mãos atadas pelos compromissos que invariavelmente disso se seguiram. Como contra-exemplo, os bolcheviques, mesmo quando Kerenski fora ameaçado pelo golpe militar de Kornilov, não ingressaram no seu governo. Pelo contrário: defenderam-no de armas na mãos contra a ameaça contrarrevolucionária em julho de 1917 e posteriormente voltaram essas mesmas armas contra Kerenski, dada a continuidade de sua aliança com a burguesia.
Mas a Espanha não possuía uma direção revolucionária tão bem temperada na luta de classes quanto a russa para adotar política tão ousada na hora decisiva, que não tardaria: já em 17 de julho de 1936, o general Francisco Franco dava um golpe militar. O governo de Frente Popular nada fizera para alterar a estrutura do exército oficial oriundo da monarquia (uma situação que se repetiu tragicamente nos anos 1970, no governo de frente popular de Salvador Allende no Chile, que manteve seu futuro algoz Augusto Pinochet no Exército e, pouco antes do golpe, nomeou-o como Comandante-Chefe das Forças Armadas chilenas). Nessa arcaica estrutura, conspirava-se sem cessar e, finalmente, decidiu-se pelo pronunciamiento (nome pelo qual os golpes militares são conhecidos nos países de tradição espanhola) em 17 de julho de 1936. O governo também não tomou nenhuma iniciativa para impedir a deflagração do golpe e armar os trabalhadores para resistir a ele.
Os trabalhadores, felizmente, tomaram essa tarefa nas suas próprias mãos. Em Barcelona, uma das cidades mais industrializadas da Espanha, providenciaram armas e resistiram ao golpe fascista, arrastando os trabalhadores de Madri e Valença no mesmo sentido. Os marinheiros tomaram controle de suas embarcações, executando os comandantes golpistas; os camponeses começavam, por sua própria iniciativa, a coletivização das terras; formavam-se milícias operárias e comitês de trabalhadores. O golpe precipitara a revolução que ele procurara sufocar: a máquina do Estado burguês colapsara e a guerra civil aberta estava na ordem do dia.
Ou a revolução se desenvolvia até o fim ou o fascismo venceria. Era o ponto de não retorno. Mas o governo de Frente Popular não tinha interesse em levar a revolução até às últimas consequências. Pelo contrário, trabalharia justamente no sentido de “pacificar” a situação, como se isso fosse possível. Os maiores responsáveis por essa “pacificação” foram os stalinistas. Sacrificando a vitória da revolução proletária no altar dos interesses da política externa da URSS, como já havia se tornado praxe desde metade dos anos 1920 (como o banho de sangue com o qual a revolução chinesa fora afogada demonstrou tão bem), eles buscavam uma aliança com as burguesias da França, da Inglaterra e dos EUA, em nome de uma suposta defesa da URSS contra um ataque da Alemanha nazista e, para isso, precisavam garantir que a revolução espanhola não assustasse seus aliados “democráticos”. Como se sabe, eles posteriormente assinariam o infame pacto Ribentropp-Molotov com os alemães, entregando meia Polônia aos nazistas em troca de uma promessa – obviamente não cumprida – de não-agressão da parte de Hitler.
Assim, uma ajuda militar de Moscou à Espanha republicana foi condicionada a que o movimento dos trabalhadores não cometesse “excessos” revolucionários, para não melindrar a neutralidade da parte das potências imperialistas (os países fascistas, por sua vez, apoiavam energicamente os esforços de Franco: a contrarrevolução agia bem mais resolutamente dos que os supostos representantes oficiais da revolução). Segundo os dirigentes comunistas não se tratava de batalhar por uma Espanha socialista, mas sim “por uma república democrática com conteúdo social extenso” e pela “defesa da ordem republicana no respeito à propriedade” – e eles agiram perfeitamente de acordo com isso, aplicando seus métodos policiais para eliminar os revolucionários do lado republicano, fazendo assim boa parte do serviço da reação.
Um episódio marcante da infâmia stalinista na Espanha aconteceu em maio de 1937, em Barcelona. O governo e os stalinistas atacaram a companhia telefônica da cidade, que os trabalhadores haviam ocupado desde julho de 1936. O prédio tinha uma importância estratégica, já que o seu controle, da parte dos trabalhadores, permitia monitorar as conversas telefônicas dos ministros do governo. Retomá-lo das mãos dos trabalhadores era uma pré-condição para que o governo republicano quebrasse a dualidade de poder que desabrochava e tomasse o controle da cidade. O ataque stalinista foi rechaçado pelos trabalhadores, que se levantaram em defesa da revolução. Os líderes do POUM e dos anarquistas clamavam pelo cessar-fogo – e como poderia ser diferente, se eles mesmos se comprometeram com o governo que agora atacava os trabalhadores? –, e apenas um pequeno grupo de membros da Oposição de Esquerda, membros de base do POUM e o grupo anarquista “Amigos de Durruti” defenderam a tomada do poder pelos trabalhadores, denunciando o cessar-fogo.
Era a hora de uma medida resoluta da parte das direções do proletariado para que a resposta espontânea dos trabalhadores se desenvolvesse em uma luta revolucionária pela tomada do poder. Ao invés disso, os líderes do POUM e da CNT vacilaram no momento mais crítico, permitindo que os stalinistas tomassem o controle da situação. A ordem reinava novamente em Barcelona e a máquina de terror stalinista começava a trabalhar febrilmente: a GPU (polícia secreta soviética) aprisionou, torturou e executou milhares de revolucionários, incluindo o próprio Andrés Nin, dirigente do POUM, executado após ser torturado para “confessar” que era um agente fascista. O massacre dos revolucionários pelos stalinistas foi o prelúdio da derrota final da Espanha republicana pelo fascismo. O decurso dos acontecimentos fez confirmar, novamente, o prognóstico de Trotsky: “O fascismo não poderá triunfar novamente (…) a não ser como consequência da derrota da revolução e da decepção das massas enganadas que nela acreditavam. Mas, perante o desenvolvimento regular dos acontecimentos atuais, uma derrota somente pode acontecer como consequência dos erros extraordinários da direção comunista”.
E, acrescentaríamos nós, a derrota também só foi possível pela vacilação dos dirigentes do POUM e dos anarquistas, justamente quando era necessária a resolução para tomar a direção do levante operário de Barcelona, iniciado contra as provocações stalinistas. A participação das direções revolucionárias no governo de Frente Popular, ao fim e ao cabo, foi determinante para restringir a ação dos trabalhadores e levá-los para a degola. A Espanha mostrou as trágicas consequências a que a unidade eleitoral com a burguesia, em nome de supostamente combater o fascismo, levara: precisamente, à vitória do fascismo. Os acontecimentos da Alemanha, três anos antes, por sua vez, mostraram o preço a se pegar pela recusa de se fazer a unidade contra o fascismo nas ruas e nas fábricas, que será o tema da nossa próxima e última série de conteúdo sobre o fascismo: a ascensão de Hitler ao poder.
O DESTINO DA ALEMANHA COMO O DESTINO DA HUMANIDADE: REVOLUÇÃO OU CONTRARREVOLUÇÃO
No esteio do fim da Primeira Guerra, a Alemanha viveu anos de agravamento da luta de classes, permeados por processos revolucionários derrotados, golpes militares, governos autoritários e a ascensão dos fascistas como a principal força política do país. Em 30 de janeiro de 1933, pouco mais de uma década após a proclamação da República de Weimar, Hitler se tornava o chanceler da Alemanha, afogando a democracia burguesa com o sangue do proletariado, declarando guerra civil aberta aos revolucionários e construindo o regime que ficaria conhecido na história como nazismo, que duraria de 1933 até a derrota da Alemanha na Segunda Guerra em 1945.
A Alemanha é o objeto do último episódio da série porque, apesar da tomada do poder pelos fascistas lá ter acontecido antes da Espanha (em 1933), a gravidade da situação e o impacto no movimento dos trabalhadores se fez sentir por mais tempo e com maior gravidade, desempenhando papel central, inclusive, no próprio desenrolar dos acontecimentos da Espanha. Como Trotsky falava já em 1931, a chave da situação mundial estava na Alemanha, e a vitória da revolução ou da contrarrevolução definiria, como definiu, além dos rumos da política internacional, o próprio destino da humanidade, ameaçada pela barbárie nazista e sua política de extermínio.
A situação alemã era gravíssima, mas o desfecho contrarrevolucionário não era inevitável e todos os textos de intervenção de Trotsky no período (compilados no livro “Revolução e Contrarrevolução na Alemanha”) são uma tentativa de influir no curso dos acontecimentos para evitar a ascensão dos fascismo. A crise econômica de 1929 derrubara brutalmente a economia alemã que já sofrera, ao longo da década de 20, com o ônus da derrota na Primeira Guerra Mundial, uma hiperinflação que destruía o poder de compra dos trabalhadores, desemprego em massa e uma agitação política sem precedentes. Em 1918-1919, um levante revolucionário fora esmagado pela socialdemocracia alemã, que assassinara dois dos mais destacados líderes revolucionários do país, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht; em 1923, uma oportunidade revolucionária fora perdida e a insurreição novamente esmagada, devido à oscilação da política da Internacional Comunista. Nesse cenário turbulento, os fascistas começavam a crescer entre a pequena-burguesia desesperada pela crise e a burguesia recorria a medidas de exceção, finalmente desembocando no estabelecimento de regimes bonapartistas, que já tem características autoritárias e o objetivo de silenciar e controlar violentamente a classe trabalhadora, mas ainda em nível e de forma distinta do fascismo.
Esse cenário levou Trotsky a profundas discussões sobre a natureza do bonapartismo e do fascismo. A distinção entre esses dois regimes não era, e não é, uma discussão terminológica acadêmica, mas tem implicações práticas na estratégia a ser adotada pelos revolucionários em momentos de recrudescimento do regime. Trotsky caracteriza os governos que antecederam a ascensão de Hitler ao poder – Brüning e Franz von Papen – como, respectivamente, semi-bonapartista e bonapartista, ao passo que os stalinistas consideravam que, já com Brüning, o fascismo era um fato consumado, embora denunciassem que a transição para o governo de Von Papen tenha sido possível por meio de um… golpe de Estado fascista! E mais um golpe fascista seria necessário para Hitler tomar o poder. Nas palavras de Trotsky, para os stalinistas, “os acontecimentos que se desenrolam reduzem-se a isso: variedades diferentes do fascismo tomam o poder uma da outra por meio de golpes de Estado ‘fascistas’”. O ponto a ser destacado aqui é: nem um governo que fechava o parlamento, censurava a imprensa e estava sustentado no aparato policial-militar, como de Von Papen, podia, a rigor, ser chamado de fascista, mas sim de bonapartista. Por quê? Porque há uma diferença qualitativa fundamental no grau de violência empregado contra a classe trabalhadora pelo bonapartismo e pelo fascismo: a vitória do fascismo, significa, muito simplesmente, a guerra civil aberta contra o proletariado, a destruição das organizações operárias – inclusive da socialdemocracia –, o extermínio físico de sua vanguarda. É isso o fascismo: a organização militar, centralizada e hierarquizada, da massa pequeno-burguesa desesperada pela crise econômica, para destruir a organização do proletariado até sua raiz e em todas as suas manifestações; ele não pode tolerar a existência de sindicatos e partidos da classe trabalhadora, mesmo que sejam burocratizados e reformistas, mesmo que eles tenham uma longa ficha corrida de traição à classe, como era o caso da socialdemocracia alemã, responsável, por exemplo, por conduzir o proletariado alemão à guerra em 1914 e por massacrar a revolução em 1918-1919: ele precisa exterminá-los tanto quanto o faz com os revolucionários. É por isso que Trotsky tinha o cuidado de não chamar de fascista um regime bonapartista, sem prejuízo de reconhecer todos os seus traços autoritários e apontar perspectivas de luta contra ele, até porque não o combater de forma consequente poderia levar, como de fato levou, à ascensão do fascismo propriamente dito. Aquela situação extrema dos anos 20 e 30 da Alemanha exigia a maior clareza conceitual possível sobre a característica do regime a ser combatido. Era literalmente uma questão de vida ou morte.
O “SOCIAL-FASCISMO” E A RECUSA DA FRENTE ÚNICA
Mas os stalinistas não se importavam com esse espécie de debate conceitual, nem tampouco se contentavam em chamar apenas governos burgueses autoritários de fascistas: estendiam o rótulo à própria socialdemocracia alemã, doravante chamada de “social-fascista”, e com a qual nenhum acordo tático de combate ao fascismo seria possível. Essa incapacidade de fazer distinções entre um partido reformista e traidor, entretanto ainda com grande peso na classe operária, e o partido fascista e sua massa pequeno-burguesa militarizada e treinada para o combate cobraria um preço muito caro, em muito sangue e derrotas que reverberariam por décadas a fio.
Assim, a Internacional Comunista recusava-se a adotar a política de frente única. E o que é, afinal, a frente única? Ela pode ser sintetizada na célebre fórmula: “bater juntos, marchar separados”, ou seja, a celebração de um acordo tático com as demais organizações operárias relevantes, sobretudo as com maior influência e capacidade de mobilizar a classe – mesmo reformistas e traidoras, como a socialdemocracia –, para a consecução de tarefas pontuais, por exemplo, o combate aos camisas negras fascistas e a autodefesa do proletariado e suas organizações. Essa unidade ocorreria apesar das diferenças de programa entre as organizações. Cada uma conservaria sua plena liberdade de organização, imprensa e expressão para criticar as ações das demais com as quais entram em acordos táticos para ações pontuais em comum. A política de frente única era um dever, naquele momento histórico tão grave, pois havia um interesse comum entre a socialdemocracia e os comunistas em combater o fascismo: o interesse de não serem fisicamente aniquilados. Além do mais, a socialdemocracia, apesar dos seus muitos crimes, ainda arrastava atrás de si significativas camadas de trabalhadores – o que era decorrência sobretudo da política equivocada da Internacional Comunista nos anos 20 –, que ansiavam por ações unitárias, mesmo que isso significasse contrariar a vontade dos seus chefes. Uma ação resoluta da parte dos comunistas em realizar ações em comum demonstraria, aos olhos dos trabalhadores de base socialdemocratas, que eles eram os únicos efetivamente dispostos a travar o combate contra o fascismo até o fim: a frente única era pois tanto tática indispensável para garantir a integridade das organizações como ferramenta política de primeira grandeza para desmascarar as vacilações dos líderes da socialdemocracia, em um momento em que titubear era assinar uma sentença de morte. Pressionados pela necessidade urgente de ação, os líderes reformistas e traidores teriam de revelar suas reais posições ao longo de tal processo unitário de ação.
A Internacional Comunista, entretanto, tinha uma concepção bastante diferente de frente única que, afinal, desfigurava todo o seu sentido e tirava toda sua força enquanto tática revolucionária. Ela aceitava a realização da frente única com a socialdemocracia, se e somente se esta aceitasse o programa dos comunistas! Como se as diferenças programáticas não fossem, exatamente, o que justificava a existência de organizações diferentes: afinal, se a socialdemocracia, hipoteticamente, passasse a aceitar o programa dos comunistas, a estratégia de frente única não teria razão de ser. Incapaz de se valer dessa tática de ação comum para acessar a massa de trabalhadores socialdemocratas e desmascarar seus chefes, fazendo ultimatos à classe trabalhadora, ao invés de política revolucionária, os comunistas se isolaram das massas e aplainaram o terreno para a mais desmoralizante derrota possível, aquela feita sem que o combate seja travado até às últimas consequências. A ascensão do nazismo e o colapso irremediável da III Internacional como instrumento revolucionário: eis o saldo dessa política.
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