Texto do antigo Comitê Internacional da Quarta Internacional, escrito em 18 de Setembro de 1973
Relembramos agora os eventos que levaram o general chileno Augusto Pinochet ao poder em 1973. O golpe no Chile foi um dos episódios mais trágicos que resultaram das ações do stalinismo e do reformismo, traições que foram repetidas com consequências igualmente desastrosas país após país.
Para milhares de chilenos, assim como para trabalhadores ao redor do mundo, o nome de Pinochet é sinônimo de repressão brutal. Imediatamente após o golpe de 11 de setembro de 1973, milhares de trabalhadores e jovens foram arrebanhados no estádio de futebol de Santiago e em outros campos de concentração improvisados, onde foram torturados e executados. Além disso, o golpe no Chile assinalou a intensificação de um derramamento político de sangue que custaria a vida de dezenas de milhares de sindicalistas, estudantes, camponeses e intelectuais socialistas por todo cone sul da América Latina.
Washington, sob a administração de Nixon, usou de todo o poder econômico dos Estados Unidos para estrangular o Chile, enquanto a CIA fomentava o caos econômico e o terror político antes de finalmente sistematizar a tomada militar.
Por mais que sejam terríveis os crimes de Pinochet, o que mais ressaltamos, pouco tempo após sua morte, é que esses crimes foram preparados pela política do governo de Frente Popular de Salvador Allende, uma coalizão dominada por seu próprio Partido Socialista e pelos stalinistas do Partido Comunista.
A derrota no Chile não era inevitável. Desde a chegada ao poder de Allende, em 1970, até o golpe de 1973, os trabalhadores chilenos participaram de uma extraordinária efervescência revolucionária, organizando os cordões industriais, ou assembléias de trabalhadores, que respondiam aos locautes (fechamentos de empresas promovidos por seus donos para impedir o acesso dos empregados ao local de trabalho) e às provocações dos empregadores através de ocupações e do gerenciamento das fábricas, dos transportes e do supri-mento de mercadorias e serviços.
O governo dos partidos Socialista-Comunista respondeu à contra-revolução apoiada pelos EUA com a palavra de ordem “Não à guerra civil”, tentando apaziguar a direita através da supressão da luta real da classe trabalhadora. Até 1973, o governo começara a retomar pela força as fábricas ocupadas pelos trabalhadores, levando Pinochet e outros generais ao gabinete ministerial e começando a perseguir os trabalhadores mais militantes, ajudando objetiva-mente, assim, a preparar o golpe que estava por vir.
Os eventos do Chile se desenrolaram como parte de uma insurreição mundial da classe trabalhadora ao final dos anos 60 e início dos 70, que testemunhou a greve geral de maio-junho na França em 68, ondas de greve na Itália e na Alemanha em 69, assim como protestos massivos contra a guerra, revoltas urbanas e lutas industriais militantes nos Estados Unidos que acabaram por levar à queda da administração Nixon em 1974. Dentro daquele mesmo ano, os regimes fascista-militares na Grécia e em Portugal entraram em colapso diante dos levantes ocorridos, enquanto na Grã-Bretanha a greve dos mineiros derrubou o governo de Heath.
A sobrevivência do capitalismo durante esse período dependia (tanto internacionalmente quanto nacionalmente) das traições levadas a cabo pelas burocracias stalinista, social-democrata e sindicalista, que trabalhavam para desviar a classe trabalhadora do caminho da revolução socialista.
No Chile, especialmente, essa traição foi apoiada pela tendência revisionista liderada por Michel Pablo e Ernest Mandel, que reivindicava representar a herança do trotskismo mas que, na re-alidade, havia abandonado o programa da Quarta Internacional, o Programa de Transição, para seguir as teorias de guerrilha de Fidel Castro e Che Guevara, ajudando assim a prevenir a ascensão de uma direção revolucionária dentro da classe trabalhadora.
Sob as condições que prevaleciam em 1973, uma revolução sucedi-da no Chile teria o potencial de transformar a situação mundial. Sua derrota e os tenebrosos golpes sofridos pelos trabalhadores chilenos serviram para fortalecer uma ofensiva capitalista que acompanhou quedas nos salários, nas condições sociais e nos direitos básicos dos trabalhadores na América Latina e em todo o mundo. O Chile se tornou um modelo econômico — propagandeado desde então por oficiais do governo americano, chefes corporativos e ec-nomistas de direita. Publicamos abaixo, de forma resumida, a declaração do Comitê Internacional da Quarta Internacional, dias após o golpe de 1973. A análise da dinâmica política e social dos eventos chilenos mantém sua validade e importância para a preparação de um novo período de luta revolucionária.
Não defendam seus direitos democráticos através de Frentes Populares e do parlamento, mas através da derrubada do Estado capitalista e do estabeleci-mento do poder dos trabalhadores. Não depositem suas confianças no stalinismo, na social-democracia, no centrismo, revisionismo ou mesmo na burguesia liberal. Construam o partido revolucionário da Quarta Internacional, cujo programa é a revolução permanente.
Tais lições estão sendo escritas a sangue pelo heróico proletariado chileno, enquanto tanques e esquadrões de execução da burguesia chilena cobram seu tributo assassino. Ao mesmo tempo, stalinistas, socialistas e a burguesia liberal percorrem os quartéis em busca de um general misericordioso ou se preparam para fazer as pazes com os novos senhores do Chile.
A classe trabalhadora jamais se esquecerá da resistência — insuficiente, porém inspiradora — dos trabalhadores chilenos, que demonstraram, não pela última vez, que são a única força revolucionária no Chile a enfrentar o imperialismo e os capitalistas locais. No entanto, nunca perdoará os líderes stalinistas e socialistas, cuja covardia política, alia-da à traição das suas bases, por si só permitiram que a burguesia chilena seguisse o exemplo da Indonésia, Grécia, Bolívia e Sudão. Tais eventos testemunham, na forma mais sanguinária possível, a cri-se de direção da classe trabalhadora e os enormes perigos que ela confronta como resultado do colapso do sistema monetário mundial e das medidas de Richard Nixon de 15 de agosto de 1971.
O stalinismo mais uma vez aparece como o mais consistente defensor da propriedade e do Estado burgueses e como o inimigo mais perigoso da classe trabalhadora na luta por seus direitos democráticos básicos.
Desde o início do regime de Salva-dor Allende, em novembro de 1970, todo peso da burocracia de Moscou tem sido usado para escorar a fraca e reacionária burguesia chilena e desorientar a classe trabalhadora através do auxílio do Partido Comunista Chileno.
Se em 1970-71 os militares eram incapazes de tomar o poder e tiveram que esperar três anos para executar seus planos, podemos dizer categoricamente que isso se deu porque dependiam da desorientação política planejada e sistemática dos stalinistas, para criar as bases de um possível golpe. A arma ideológica principal dos stalinistas chilenos para preparar as condições para o golpe foi a teoria menchevique de uma revolução em duas etapas e o conceito falido de um “caminho parlamentar pacífico ao socialismo” através das Frentes Populares — ambos desarmaram a classe trabalhadora e preveniram sua mobilização no momento crucial.
Ignorando os efeitos da crise econômica e monetária mundial, a qual trouxe Allende ao poder, e ignorando deliberadamente a natureza de classe reacionária do Estado capitalista, ao mesmo tempo em que exageravam e distorciam a inclinação reformista de um pequeno setor da burguesia chilena, o stalinismo se tornou o carrasco da revolução chilena.
Nenhuma defesa da classe trabalhadora é possível sem que antes se desvelem as mentiras, meias-verdades e as completas distorções feitas pelos stalinistas britânicos e europeus para acobertar as causas da derrota no Chile e subestimar a magnitude de suas conseqüências.
Tendo contribuído fortemente para enganar os trabalhadores chilenos através do apoio não-crítico a cada recuo reformista de Allende, os stalinistas europeus agora tentam apresentar os eventos chilenos como trágicos, porém historicamente inevitáveis. A última coisa que esses burocratas reformistas de-sejam é um exame honesto dos eventos chilenos.Seu medo e desprezo pela classe trabalhadora são tão grandes que não ousarão fazer a mínima crítica às suas próprias políticas. Pelo contrário, a der-rota chilena os encorajará a adotar a “via pacífica” ainda mais vigorosamente.
Todos os estágios da catástrofe chilena foram determinados pela crise de direção da classe trabalhadora, pela falência do stalinismo e da social-democracia chilena. Essa falência expressou-se na recusa absoluta a expropriar totalmente os capitalistas chilenos e na completa prostração diante do Estado capitalista, travestida com a defesa dos “100 anos de democracia congressual no Chile”.
As lições do Chile são universais e se aplicam com particular relevância àqueles países como Itália e França, onde o stalinismo domina o movimento trabalhista e usa de sua doutrina reacionária de “coexistência pacífica” e “democracia avançada” para acalmar as massas e permitir que o fascismo e o Estado capitalista preparem seus ataques.
Toda a história da América Latina do século XX, assim como a rica experiência do movimento da classe trabalhadora européia desde a Comuna de Paris, demonstraram com cruel clareza que o Estado capitalista não é neutro, que ele é sim a expressão do desejo coletivo da classe dominante — uma máquina para a coerção de uma classe por outra. A única função do Estado é a defesa das relações capitalistas de propriedade.
Na época do declínio do capitalismo — imperialismo — o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção é intensificado enormemente. Na mesma medida, aumenta a intervenção do Estado na vida social e econômica de cada país. O aparato da repressão — “destacamentos de homens arma-dos”, como Engels define a máquina do Estado — assume um tamanho desproporcional e o ataque às liberdades democráticas se torna uma característica que impregna a dominação capitalista. Se a classe trabalhadora falha em criar um partido revolucionário para derrubar Estado, então a transição ao fascismo e ao bonapartismo se torna inevitável.
Essa foi a lição da Alemanha, Itália e Espanha nos anos 30. Essa era a principal tarefa que a coalizão de Allende encarava em 1970. Dela, ajudado pelos stalinistas, Allende se esquivou resolutamente.
Nenhum regime popular poderia coexistir com as forças militares chilenas lide-radas pelos representantes mais reacionários dos capitalistas e proprietários. Cada um de seus líderes era um reacionário profissional treinado pela CIA.
Ao invés de dissolver o congresso, senado e as forças armadas e criar uma milícia popular, cujo poder derivasse dos conselhos de trabalhadores e camponeses pobres, os stalinistas chilenos se tornaram os maiores defensores da “lei” e da “ordem” burguesas através da criação do governo de Frente Popular.
Antes do golpe, em recente seminário organizado pelo jornal stalinista Crítica Marxista Mundial, o porta-voz do stalinismo chileno, Banchero, afirmou abertamente a atitude de seu partido diante do Estado: “Uma característica diferenciada do processo revolucionário no Chile é que ele começou e continua por dentro dos moldes das instituições burguesas do passado… No Chile, onde uma revolução popular democrática anti-imperialista, anti-monopolista e anti-feudal está acontecendo, nós mantemos essencialmente a velha máquina estatal. Gabinetes governamentais são ocupados principalmente por velhos oficiais… A administração exerce suas funções sob liderança e controle do governo popular”.
E acrescentou Banchero: “As forças armadas, observando seu status de uma instituição profissional, não tomam parte em debates políticos e se submetem legalmente ao poder civil constituído. Laços de cooperação e respeito mútuo se desenvolveram entre o exército e a classe trabalhadora em nome do objetivo patriótico de moldar o Chile como uma terra livre, avançada e democrática”.
E ainda, disse ele no seminário: “Elementos ultra-esquerdistas clamam pela ‘introdução’ imediata do socialismo. Nós esperamos, no entanto, que a classe trabalhadora ganhe total poder gradualmente: será conjuntamente com o controle que ganhamos da máquina estatal que a começaremos a transformar nos interesses do desenvolvimento posterior da revolução”.
Banchero também foi precedido pelo stalinista britânico Idris Cox, que conjuntamente pregava a “via pacífica”. Assim disse Idris Cox: “Na Grã-Bretanha é sempre colocada a questão, principalmente por elementos ultra-esquerdistas, a respeito de atingirmos nossos objetivos sem o uso da força armada ou da guerra civil. Ninguém pode nos garantir que isso não irá acontecer, mas entendemos que, com a mudança no equilíbrio das forças mundiais e com a posição enfraquecida da classe dominante britânica é improvável que esta usaria força armada para contestar os resultados de uma eleição democrática”.
Tal política foi expressa de forma ainda mais sintética por Pablo Neruda, poeta stalinista e embaixador chileno em Paris: “Quanto ao nosso exército, nós o amamos. Ele é o povo de farda”.
Os reais autores dessa estratégia reformista, no entanto, não se encontram na Grã Bretanha ou Chile, mas em Moscou, o centro da burocracia. Nos interesses de sua política externa e interna, a burocracia soviética tem sido a campeã não somente da “via pacífica”, mas também de uma abordagem nova e mais flexível sobre as forças armadas na América Latina.
Por gerações, é tradição dos socialistas latino-americanos e até mesmo de alguns setores dos stalinistas tratar o exército com hostilidade e suspeita, mas essa atitude entra em conflito com a política atual da burocracia da URSS, que é de reconhecer e negociar com cada ditador militar, seja ele Franco (Espanha), Papadopoulos (Grécia) ou Lon Nol (Camboja). Por isso que os “teóricos” stalinistas têm se ocupado em condicionar seus colegas latino-americanos a trabalhar com e sob o exército.
Para fazer isso, eles tentam obscurecer o caráter de classe do exército e seu papel essencialmente repressor. Na edição de novembro de 1970 do Comment, um tal Dr. Shuglovsky escreveu um longo artigo para esclarecer a nova linha, que realizou-se de forma sangrenta no Chile.
Escreveu Shuglovsky: “É opinião dos Partidos Comunistas que as forças saudáveis do exército devem cumprir um importante papel no movimento de libertação e na efetuação de profundas mudanças sociais. Os comunistas se opõem fortemente às visões anti-militares vulgares e à qualquer manifestação de sectarismo [!] em relação aos militares, porque estas simplesmente movem as águas do moinho reacionário”.
Apesar de apresentado como uma análise teórica, este artigo é claramente uma instrução aos PCs. Deve-se lembrar que, na década de 1920, Stalin instruiu os comunistas chineses a se subordinarem ao exército Kuomitang de Chiang Kai-Shek sob a justificativa de que este era moderno, progressista e até revolucionário. Essa teoria burocrática levou diretamente ao maior massacre de comunistas já testemunhado pela China — o massacre de Shangai.
Foi dada uma significância especial no Chile a essa questão, devido ao fato de que tanto o congresso quanto o senado eram dominados pelos partidos de di-reita “Democrático-Cristão” e “Nacionalista”, ambos dedicados à derrubada de Allende.
Os democrata-cristãos — liderados por Eduardo Frei, que possui vínculos com a CIA — se utilizaram ao máximo da falsa legitimidade concedida por Allende ao Congresso e ao Senado para atrasar e obstruir sua legislação reformista, ao mesmo tempo em que preparavam um plano de ataque em conjunto. Nesse plano, seus principais aliados eram os stalinistas, que apoiaram Allende incondicionalmente em sua recusa a construir uma milícia operária. No ápice da crise ministerial de 1972, Allende deixou especificamente clara sua determinação em extinguir a oposição de extrema-esquerda às suas reformas Fabianas, rejeitando expressamente a idéia de uma milícia popular.
Na época, Allende disse: “Aqui não haverá outras forças armadas além das estipuladas pela Constituição. Isso quer dizer, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Eliminarei qualquer outra que possa aparecer”.
Na escala da história, as exíguas reformas de Allende, que despertaram grandes esperanças nos trabalhadores, nos camponeses e na classe média, pe-saram muito menos que a traição dessas aspirações através de um respeito força-do à legalidade constitucional.
Os reacionários na oposição puderam, portanto, integrar seus planos mais efetivamente com os dos “gorilas” do exército, dos credores internacionais e dos monopólios expropriados. Usando sua maioria constitucional nas duas câmaras e aproveitando-se da crescente desilusão das massas diante da incapacidade de Allende em conter a inflação, a oposição colocou em prática a primeira parte de seu plano: forçar a abdicação dos ministros radicais e trazer os oficiais ao governo. Depois das eleições suplementares em janeiro de 1972, Allende foi forçado a demitir seu Ministro socialista do Interior, enquanto seus planos para a reforma do sistema de duas câmaras eram efetivamente bloqueados pela oposição.
Em junho de 1972, mais pressão e conversas secretas entre governo e oposição produziram outra crise de gabinete quando Allende demitiu seu Ministro da Economia, de esquerda, Pedro Vuskovic, e abandonou seus planos de nacionalização. Previsivelmente, isso obteve todo o apoio dos stalinistas que, assim como na Espanha em 1936, haviam se convertido na extrema direita da coalizão. Os stalinistas acusaram Vuskovic de “destruir a confiança nos negócios”. Ao mesmo tempo, foram partidários de um “diálogo” com os democorata-cristãos e aceitaram, no lugar da nacionalização, o suspeito programa da oposição de “participação operária”.
O líder sindicalista Figuero deu boas-vindas a esse plano corporativista em palavras muito ilustrativas: “A participação deve ser expressa NÃO na posse da propriedade da empresa por seus trabalhadores, mas sim em um papel efetivo no gerenciamento e planejamento desta”. Essa exortação veio combinada com uma guinada por maior produtividade e “trabalho voluntário”.
Em agosto de 1972, a “via pacífica” sofreu um brusco golpe quando lojistas se enfrentaram com a polícia em Santiago. Os stalinistas usaram isso imediata-mente como pretexto para exigir o bani-mento dos grupos de extrema-esquerda como o MIR do sul, com a ridícula alegação de que as ações dos grupos de esquerda “criariam pretexto para intervenção militar”.
A enorme hostilidade dos stalinistas em relação a qualquer grupo de esquerda que não seguisse a linha de Allende encontrou sua brutal expressão em agosto de 1972, quando membros stalinistas da polícia atacaram uma sede do MIR (grupo esquerdista-guerrilheiro) nas proximidades de Santiago e mataram cinco camponeses.
No fim de 1972, a reação estava pronta para a segunda fase: a greve de proprietários de caminhões no sul contra a nacionalização. Depois de quatro semanas, Allende não só capitulou à re-ação como também aceitou trazer três generais para seu ministério. Pela segunda vez, demitiu seu Ministro do Interior. A nomeação mais proeminente foi a do general Morio Prats, chefe das forças arma-das e notável reacionário. O Ministro do Interior, Del Canto, foi demitido porque permitiu “ocupações ilegais” de fábricas. A guinada à direita era inexorável.
Isso não foi só uma vitória para os reacionários, mas um avanço significativo para os stalinistas, que lutaram todo o tempo contra as ocupações de fábricas e a desapropriação de terras. Se opunham, assim, a qualquer luta que não fosse controlada por eles ou por Allende.
No mundo todo, a máquina de falsificações stalinista trabalhou para distorcer essas mudanças ameaçadoras. Em novembo de 1972, o Comment, periódico do PC inglês, não hesitou em defender Allende (e Prats): “Isso não é um sinal de fraqueza! Ou uma rendição! Seria uma traição? Não, a chegada desses oficiais ao governo, por mais estranho que possa parecer, é um sinal de que a direita está sendo manobrada e derrotada em sua tarefa na luta de classes.”
Da mesma forma que na Indonésia, onde Sukarno tentou balancear a esquerda contra a direita em seu conde-nado gabinete, Allende presenteou o stalinista Figuero com o posto de Ministro do Trabalho.
Por detrás das crescentes intrigas da oposição, da arrogância dos generais, das sistemáticas vacilações do presidente Salvador Allende e da capitulação dos stalinistas durante 1972-73, jazia a insolúvel crise do capitalismo chileno e mundial.
Quando Allende subiu ao poder, o Chile sofria uma grande crise econômica e financeira, que se aprofundou consideravelmente desde então. As reservas do Banco Central baixaram de $500 para $280 milhões de escudos. Em abril de 1972, estimava-se que não havia mais de $60 milhões. Ao mesmo tempo, a dívida externa excedia os 3 bilhões, da qual maior parte estava sob o controle dos bancos centrais europeus.
O fracasso em repudiar a enorme dívida nacional, aliada à contínua queda nos preços da exportação do cobre, significou que Allende teve que desvalorizar escudo chileno quatro vezes em dois anos. Somente a submissão à dívida nacional somou quase $300 milhões em um ano. O colapso de Bretton Woods e o corte na ajuda americana acabaram com todas as esperanças da economia chilena encontrar uma solução. O compromisso travado com os credores internacionais encorajou a reação local a aumentar a pressão para impedir qualquer nova nacionalização e preparar-se abertamente para a contra-revolução.
Manifestações de operários e estudantes contra a direita eram condenadas pelos stalinistas, ao passo que Allende se ocupava em elogiar os odiados carabineros, a elite da força policial usada em ataques contra trabalhadores e “invasores de propriedades”.
As palavras de Allende expressavam claramente a perplexidade — para não dizer a impotência — do médico pequeno-burguês centrista perante a máquina do estado capitalista e sua completa falta de confiança na classe operária.
Como declarou na época: “Não é por acaso que o lema dos carabineros é ‘Ordem e Pátria’. Ordem, baseada na autoridade moral, no cumprimento cor-reto dos deveres, que de nenhum modo supõe a negação da hierarquia. De fato, tem-se um senso de disciplina social e o uso da força pública” (Workers Press, 11 de maio de 1972). Foi precisamente esse “senso de disciplina e hierarquia” que levou o Guarda Presidencial dos carabineros a se render quando aconteceu o golpe militar.
Ainda em setembro de 1972, Allende descartou qualquer possibilidade de golpe militar: “Creio que o meu governo é a melhor garantia para a paz. Aqui há eleições e liberdade. Noventa por cento dos chilenos não querem um confronto armado”.
No entanto, os outros dez por cento não compartilhavam as ilusões stalinistas de Allende. Novos grupos, como a frente semifascista “Liberdade e Pátria”, começaram a armar-se abertamente contra o regime, enquanto os latifundiários no Sul formavam exércitos privados para impor “justiça” sumária sobre os camponeses. Além disso, sob os termos do acordo de outubro de 1972 com a oposição, Allende concedeu uma arma inestimável à reação ao liberar as 155 estações de rádio, desvinculando-as de uma ligação obrigatória com a rede do Estado.
Em 1973, a política de “moderação e conciliação” dos stalinistas havia desiludido os trabalhadores da indústria e, pela primeira vez, os mineiros do cobre começaram a fazer greves por aumento de salário. Esse foi um sinal importante da crise, mas, sob recomendação dos ministros stalinistas, Allende atacou a classe trabalhadora de maneira ainda mais cruel.
Ao retornar de Moscou em janeiro de 1973, Allende atacou os mineiros do cobre que estavam em greve, taxando-os de “verdadeiros banqueiros monopolistas que exigem dinheiro para seus bolsos sem nenhuma consideração pela situação econômica do país”.
No mesmo discurso, Allende revelou que a dívida externa havia aumentado de $3 para $4,02 bilhões em dois anos e admitiu, além disso, que o parla-mento deveria ter sido dissolvido em um estágio inicial. Esse foi o preço da “via pacífica”.
Aqui, os stalinistas também mostraram sua cara. Quando os mineiros da grande mina de cobre nacionalizada El Teniente entraram em greve por aumento salarial durante 70 dias, os stalinistas se opuseram às negociações de Allende como “vacilação” e “altamente inadmissíveis” e incentivaram o regime a usar canhões de água e gás lacrimogêneo contra os mineiros grevistas. A província de O’Higgins, a área em greve, foi colo-cada sob controle militar.
Ao mesmo tempo, Allende propôs trazer de volta os generais que abdicaram de seus postos em março de 1973. O propósito dessa ação era claro: Allende e os stalinistas queriam utilizar o exército contra a classe trabalhadora, apesar dos dirigentes do partido estarem convencidos de que um golpe estava sendo preparado pela oposição para agosto ou setembro!
Em junho de 1973, a direita fez sua primeira tentativa no poder depois da greve dos mineiros do cobre. Essa tentativa do Segundo Regimento Armado falhou, porém demonstrou quanto o regime estava extremamente vulnerável a um golpe.
Esse ataque estimulou a classe trabalhadora a entrar em ação, ocupar fábricas e fortalecer as assembléias de trabalhadores que surgiram de outubro a novembro de 1972.
A reação do líder stalinista chileno Luis Corvalán ao golpe abortado de 29 de junho atestou o pânico desses traidores quando viram que o governo de Allende estava condenado à morte. Foi-se a complacência e a euforia e, no lugar, tomou conta a paralisia de terror perante o Exército. Assim, chegou a declarar Corvalán: “A revolta foi contida rapidamente graças à ação pronta e determinada das Forças Armadas e da polícia… Continuamos apoiando o caráter absolutamente profissional das instituições armadas. Seus inimigos não estão no povo, mas no campo reacionário” (Marxism Today, setembro de 1973).
Mesmo nessa hora tardia, a situação poderia ser transformada com umaMas os trabalhadores chilenos receberiam um golpe ainda mais nefasto. Nessa busca desesperada por aliados, os stalinistas chilenos fizeram apelos ainda mais oportunistas às fileiras de fascistas e partidos nacionalistas-extremistas. Corvalán implorou descaradamente aos seguidores de Pablo H. Rodriguez, o fascista, por um “diálogo” para evitar a guerra civil, “unir nosso país, evitar divisões artificiais entre os chilenos, que têm um interesse comum”. Os fascistas previsivelmente trataram as súplicas de Corvalán com desprezo e escárnio… E apressaram os preparativos para a guerra civil.
Como os trabalhadores ficaram cada vez mais céticos com o regime e começaram a se organizar espontaneamente em autodefesa, a direita adiantou seus preparativos e falou abertamente em seguir a “via da Indonésia”. O maior diário burguês chileno, El Mercúrio, falou apaixonadamente no dia 27 de julho sobre o massacre “espontâneo e horrível” na Indonésia que, em sua opinião, “não era assim tão horrível” porque fez da Indonésia “uma das nações líderes no sul da Ásia, onde a economia se estabilizou e a ordem prevaleceu”.
Frei, o presidente anterior, chamou abertamente pela destruição do “exército paralelo” que crescia nas fábricas. Diante dessa situação, só uma ação de-terminada do governo, armando operários, dissolvendo o exército, alertando toda a classe operária e preparando-a para a luta teria prevenido ou derrotado um golpe. O governo e os stalinistas fizeram o contrário.
Uma “lei de controle de armas” aprovada durante a crise de outubro de 1972 foi reativada para impedir o arma-mento dos trabalhadores. Na marinha e no exército, os oficiais de direita se aproveitaram da apatia, passividade e indiferença dos stalinistas para doutrinar as tropas e prepará-las para a insurreição. Os fervorosos apelos ao exército de Allende só serviram para aumentar a de-terminação dos generais em dar um fim rápido e impiedoso à experiência da “via pacífica”.
O ataque final ao palácio presidencial de 11 de setembro foi o golpe culminante em um plano concebido graças ao consentimento do governo e do partido stalinista. Da mesma forma que Hitler e Franco, o General Pinochet venceu pela ausência de seu adversário graças à traição do stalinismo.
Uma pergunta final deve ser dirigida aos stalinistas: Por que nenhum líder stalinista se atreve a responder a pergunta crucial posta pela derrota? Por que a classe média, e com ela os soldados médios e rasos, se voltaram tão violentamente contra o regime? Se a “via pacífica” e o “respeito à legalidade” são a única garantia para se ganhar a classe média, por que falharam tão desastrosamente no Chile?
Atribuir a derrota às intrigas da CIA ou à tendência da classe média a sem-pre apoiar regimes militares, como agora sugerem os stalinistas, é insultar o marxismo e mascarar a traição da Frente Po-pular. Como Trotsky escreveu em Aonde vai a França? (1934):
A pequeno-burguesia se distingue por sua dependência econômica e sua heterogeneidade social, sua camada mais alta é ligada diretamente com a burguesia. Sua camada mais baixa se move com proletariado e chega até a cair no status de lumpen-proletariado. De acordo com sua situação econômica, a pequeno-burguesia não tem política própria, sempre oscila entre os capitalistas e os trabalha-dores. Sua própria camada mais alta a empurra para a direita, enquanto sua camada baixa, oprimida e explorada, pode girar repentinamente para a esquerda.
Em períodos de crise aguda e na ausência de uma direção revolucionária, a pequeno-burguesia, começa a perder a paciência e adota uma atitude mais hostil em relação a sua própria camada mais alta. Ela se convence da falência e da traição de sua liderança política… É precisamente essa desilusão da pequeno-burguesia, sua impaciência, seu desespero que o fascismo explora… Os fascistas demonstram ousadia, saem às ruas, atacam a polícia e tentam expulsar o parlamento à força. Isso impressiona a pequeno-burguesia desesperada.
Tais palavras descrevem precisamente a pequeno-burguesia sob o governo de Allende… Os pequeno-burgueses foram as primeiras vítimas da política de coalizão que tentou apaziguar a classe operária com assistencialismos ao mesmo tempo em que prometia um aumento na produtividade aos capitalistas industriais, detendo drasticamente a nacionalização e negando-se a repudiar o grande peso da dívida externa contraída pelo governo anterior pró-EUA de Frei.
A queda no poder aquisitivo e no consumo foi sentida de forma mais aguda pela classe média baixa… Os grandes capitalistas queriam uma total desvalorização do escudo ou um completo congelamento dos salários com o desvio de dólares de importação de gêneros alimentícios para bens capitais… Por outro lado, os trabalhadores queriam mais nacionalizações, controle operário e o fim da fraude parlamentar.
Allende e os stalinistas refutaram ambas alternativas e caíram na armadilha de suas próprias contradições. Tratava-se de uma questão de tempo até que os imperialistas e a junta atacassem. Como epitáfio ao governo de Allende nós sugeriríamos a seguinte citação de Lênin:
O proletariado não pode atingir a vitória se não ganhar a maioria da população para o seu lado. Mas limitar a vitória a uma maioria de votos nas eleições controladas pela burguesia ou condicioná-la a isto é estupidez grosseira ou engano absoluto dos trabalhadores. Para ganhar a maioria da população para o seu lado, o proletariado deve em primeiro lugar derrubar a burguesia e tomar o poder. Em segundo lugar, deve estabelecer o poder dos sovietes e quebrar completamente o velho aparato do Estado, através do que imediatamente desestabiliza o domínio, prestígio e influência da burguesia e da pequeno-burguesia acomodadas sobre os trabalhadores não proletários. Em terceiro lugar, o proletariado deve destruir completamente a influência da burguesia e dos acomodados pequeno-burgueses sobre a maioria das massas não proletárias e satisfazer suas necessidades econômicas de uma maneira revolucionária às custas dos exploradores.
Defender a classe operária chilena significa assimilar as lições vitais deste período e construir uma nova direção revolucionária baseada nos princípios de Lenin e Trotsky.
Ao mesmo tempo em que é verdade que o stalinismo desempenhou um papel central na derrota chilena, é impossível analisá-lo isoladamente dos centristas e revisionistas que cumpriram, consciente e inconscientemente, o papel de cúmplices do stalinismo.
Os centristas do MIR (Movimiento de Izquerda Revolucionaria), que possuíam um considerável grupo de seguidores entre o campesinato sem-terra do sul, não adotaram uma atitude principista em relação a Allende e geraram grande confusão entre os camponeses. Sua política de “apoio crítico” a Allende, significou, na prática, a capitulação à Frente Popular. Como o POUM na Catalunha, na Guerra Civil Espanhola, esse grupo retirou sua oposição a Allende nas eleições ao Congresso em março de 1973, exatamente quando um desafio ousado aos stalinistas e socialistas e uma reivindicação por um governo operário-camponês poderia ter reunido a maioria dos trabalhadores e camponeses pobres.
Os revisionistas do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SUQI) desempenharam um papel ainda mais criminoso. O Militant (jornal do Socialist Workers Party, dos EUA), em seu número de 4 de setembro de 1973 lamentava: “Mas ainda não há um partido que possa tomar esse exemplo (controle popular da produção) e estendê-lo através dos cor-dones (assembléias operárias) e através do país.”
Por que o SWP não diz a seus lei-tores o que aconteceu com o POR (Partido Operário Revolucionário, do Chile), que abandonou o Comitê Internacional e se uniu ao Secretariado Unificado para apoiar as teorias revisionistas de Mandel e Hansen, teorias que liquidaram o trotskismo na América Latina e o substituíram por idéias e métodos de Guevara e Castro? Por que o SWP não lembra que foi ele mesmo o principal protagonista dessa linha política?
Não é fato que o partido trotskista não foi destruído no Chile pelo stalinismo ou pela Junta Militar, mas pela aplicação consciente da teoria revisionista de que as revoluções podem ser vitoriosas sem a construção de um partido marxista?
A derrota chilena, no entanto, não mudará nada no Secretariado revisionista. Longe de aprenderem qualquer lição, esses acontecimentos os aproximam ainda mais da burocracia, da burguesia nacional e do imperialismo. É por isso que os revisionistas do Grupo Marxista Internacional, por exemplo, não hesitam em unir-se aos campeões stalinistas da Frente Popular na Inglaterra na manifestação contra a Junta chilena… E em defesa da Frente Popular no Chile.
O revisionismo certamente alcançou um novo estágio de sua degeneração. Ao marchar com a Frente Popular, se identificaram abertamente com as preparações contra-revolucionárias do stalinismo e da burguesia. Lutar contra o stalinismo e o castrismo é destruir politicamente o revisionismo.
O Comitê Internacional da Quarta Internacional chama pela máxima solidariedade da classe operária internacional para boicotar as remessas e produtos chilenos, assegurar a liberação de todos os prisioneiros políticos, assim como o cessar das execuções sumárias feitas pela Junta. Ao mesmo tempo, exigimos do governo da URSS e dos regimes da Europa Oriental que rompam todas as relações diplomáticas com a Junta chilena e que dêem toda a ajuda possível aos trabalhadores combatentes do Chile.
Abaixo a Junta Militar do Chile! Abaixo a Frente Popular!
Abaixo o stalinismo!
Viva os trabalhadores chilenos! Pela construção de seções do Comitê Internacional da Quarta Internacional!
18 de Setembro de 1973