HECTOR BENOIT
O Capital e o modo de exposição
O Capital de Marx se desenvolveu a partir da estreita vinculação com a luta histórica da classe trabalhadora e, em certo sentido, constituiu-se como a expressão teórica da consciência de classe da classe trabalhadora. Como todos sabemos, ao mesmo tempo que escrevia O Capital, organizava Marx a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores e escrevia, para esta organização, textos diretamente “ideológicos/políticos” embasados na sua obra “científica/econômica”[1]. Até que ponto, no entanto, tal diferenciação ou “corte epistemológico” é pertinente para a obra de Marx? Nesse sentido, como procuramos sustentar recentemente[2] o desenvolvimento dialético do primeiro livro de O Capital expressaria de maneira teórica, para a consciência da classe trabalhadora, o movimento efetivamente desenvolvido pela própria classe trabalhadora, um movimento que é, ao mesmo tempo e de maneira inseparável, crítica (teórica) da Economia Política (ciência ideológica) e crítica (revolucionária) da economia política burguesa (sociedade de exploração da força de trabalho). Ressaltamos no referido artigo, como Marx, diversas vezes em sua obra, retoma a palavra dos próprios organismos operários de luta e explicitamente atribui à própria classe trabalhadora o papel de sujeito histórico dessa dupla crítica, crítica à “ciência” ideológica e à sociedade de exploração. Nesse sentido, Marx em O Capital apenas daria formulação teórica a uma oposição posta historicamente, aquela entre a “economia política burguesa” e a “economia política da classe trabalhadora” (politische Ökonomie der Arbeiterklasse) ou entre a “economia política do capital’ (politische Ökonomie des Kapitals) e a “economia política do trabalho”(politische Ökonomie der Arbeit). Oposição contraditória esta que se expressa, antes de tudo, como combate, como luta ideológica, econômica e política, isto é, como luta de classes, e que possui, do ponto de vista de Marx (e daquele da classe trabalhadora), como conclusão programática a supressão dialética do primeiro termo pelo segundo: “expropriação dos expropriadores”, “negação da negação”[3].
Portanto, em certo sentido, Marx em O Capital, romperia com todo tipo de teoricismo característico dos saberes do “entendimento”, e assim não fundaria nenhuma nova “ciência” econômica, nenhuma nova ontologia, filosofia, sociologia ou qualquer “ciência positiva” marxista, mas sim, teria, antes de tudo, desenvolvido uma teoria que emergiu da prática histórica de uma classe e destinada portanto a uma determinada ação histórica desta classe, isto é, à efetiva superação da sociedade burguesa. O Capital seria a estratégia mais geral da revolução socialista, uma teoria inseparável da ação revolucionária, e assim enquanto teoria revolucionária, em certo sentido, a própria teoria do programa revolucionário. Se tal teoria ainda pudéssemos ou quiséssemos chamá-la “ciência”, seria apenas a ciência negativa da revolução[4].
Esta questão, a teoria exposta em O Capital enquanto teoria do programa revolucionário, explicaria talvez as grandes preocupações de Marx com omodo de exposição [die Darstellungsweise] e as suas tentativas de “espelharde forma ideal a vida da matéria [das Leben des Stoffs]”[5]. O modo de exposição de O Capital, o próprio devir e percurso dos seus capítulos se vincularia de maneira inseparável à procura do devir e percurso da realização programática. Os múltiplos esboços, planos e redações que precederam a publicação do livro I não seriam assim preocupações meramente estéticoformais ou literárias. A grande preocupação de Marx pela forma definitiva da sua exposição seria inseparável do conteúdo revolucionário contido em O Capital. A busca de Marx por uma ordem de exposição ‘ideal’, anunciada impropriamente pela metáfora orgânica “vida da matéria”, seria, na verdade, a procura do momento sintético do analítico, isto é, a superior e interna unidade dialética entre as partes, o momento propriamente dialético[6]. Em outras palavras, Marx procurava a rigorosa unidade dialética de uma teoria que fosse efetivamente crítica e, ao mesmo tempo, também revolucionária, isto é, uma teoria que dialeticamente se ultrapasse a si mesma enquanto mera teoria analítica, uma teoria que pelo seu momento analítico-sintético se metamorfoseie em programa de ação de uma classe e, finalmente, em efetiva ação de fazer histórica, práxis[7].
Por que Marx, na sua exposição, não seguiu caminhos aparentemente mais fáceis ou mais bem fundamentados? Por exemplo, por que não começou a exposição pelo capítulo XXIV (que é uma parte mais “histórica”)? Ou ainda, por que Marx não começou pelo capítulo V (que estudando o trabalho humano, permitiria fundar o começo “antropologicamente” ou “ontologicamente”)? Ou então por que, ao menos, Marx não começou por qualquer outro capítulo mais fácil que o capítulo I, A mercadoria? Como se sabe, muitos comentadores fizeram proposta desse tipo no sentido de “corrigir” o modo de exposição do autor de O Capital[8]. Por que partir exatamente da mercadoria e se preocupar com todas aquelas mediações dialéticas para, só então, pouco a pouco, expor os pressupostos históricos, políticos, sociais, das categorias econômicas? Por que partir da “riqueza, imensa coleção de mercadorias e da mercadoria a forma elementar” e realizar tão longo e penoso desenvolvimento para, só então, pouco a pouco, introduzir de maneira cada vez mais concreta a história e a luta de classes? Por que só ao final do livro I, na seção VII, mostrar claramente que a luta de classes é um pressuposto posto objetivamente já nas próprias relações de mercado[9]?
Se Marx, modificando a forma, começasse O Capital, diretamente, sem qualquer mediação, pelos elementos que são pressupostos, provavelmente, ele transformaria o próprio conteúdo geral de sua obra. Se o pressuposto aparecesse imediatamente como posto, Marx estaria fazendo apenas a reprodução dogmática das suas análises da sociedade capitalista, a reprodução dogmática do momento analítico de sua investigação, jamais chegaria ao momento analítico-sintético, e estaria fazendo assim talvez mais uma obra do “entendimento”, isto é, talvez uma obra de sociologia ou de economia burguesas, mas não uma obra “crítica e revolucionária”, isto é, uma obra dia/ética. Se o livro I descreve para a classe trabalhadora o desenvolvimento da sua própria crítica, luta e consciência, é fundamental, para Marx, reproduzir no próprio modo de exposição esse longo e penoso desenvolvimento da maneira mais aproximada possível ao próprio movimento real, ao próprio “movimento vivo da matéria”. E assim fundamental partir da forma mais ilusória, aparente e imediata do modo de produção capitalista, ou seja, a riqueza do modo de produção capitalista na sua forma elementar, a mercadoria (sobretudo, a compra e venda da mercadoria força de trabalho). Trata-se de partir do modo de produção capitalista como ele aparece para a consciência atual mais imediata e alienada, consciência ainda adormecida pela ideologia burguesa, consciência sem nenhum desenvolvimento. Esta consciência será conduzida através das diversas formas aparentes do modo de produção capitalista e, pouco a pouco, vão sendo desveladas as contradições lógicas do capitalismo e postos os seus pressupostos históricos.
No livro I, nas seções I e II (capítulos I a IV), que permanecem na esfera do mercado, não há [aparentemente][10] luta de classes, aqui se assina pacificamente o contrato de trabalho, todos são iguais, livres e proprietários realizando a “justa” troca de equivalentes. Mas já aparece o enigma: de onde pode surgir a mais-valia? Ao se abandonar “a cena barulhenta do mercado”, como dizia Marx, ao se entrar, com a seção III, “A produção da mais-valia absoluta” (a partir do capítulo V), no interior do processo produtivo, ou seja, no interior da fábrica, as contradições se aprofundam. Desvela-se o segredo da mais-valia e começa abertamente a luta de classes, ainda que o combate se trave apenas para a conservação da classe trabalhadora (limitação da jornada de trabalho). Na seção IV, “A produção da mais-valia relativa”, são destruídas as ilusões no aumento da produtividade do trabalho e assim em todo desenvolvimento e progresso, para a classe trabalhadora, no interior do modo de produção capitalista. Na seção VI, se analisam as diversas formas de salários e o que está escondido (em termos de exploração) atrás dessas formas. Até aqui todas as lutas permanecem no interior dos limites aceitos pelo regime burguês: ainda se acredita na troca de equivalentes, ainda são obedecidas as leis burguesas, ainda não se desmascarou a legitimidade da propriedade burguesa sobre os meios de produção.
Finalmente, com a seção VII (capítulo XXI e seguintes), com a análise da reprodução simples e da acumulação de capital, desvela-se para a classe trabalhadora que ela é paga (pela classe capitalista) com o seu próprio trabalho. É destruída a lei da troca de equivalentes. Com a acumulação primitiva se desvela finalmente o próprio pressuposto originário: a expropriação violenta dos produtores diretos, este era o princípio pressuposto historicamente que agora foi finalmente posto pela ex-posição . Aponta-se então para a negação da negação, a expropriação dos expropriadores. O princípio (“violência – luta de classes expropriação”, conclusão que resultou de toda a demonstração) é colocado novamente no começo, sua posição efetiva e, ao ser colocado no começo, refunda todo o percurso anteriormente realizado, refunda todas as hipóteses anteriormente postas. A consciência que percorreu todo o percurso (a do leitor ou do operário alienado) coincide agora com a consciência do autor (Marx) ou com a consciência daqueles que já conheciam todo o percurso (os que constituem a “vanguarda” da classe, e que historicamente, pela primeira vez, teriam vislumbrado tal caminho). O princípio posto agora no começo, após o longo e paciente esforço dialético, permite que a consciência da classe trabalhadora dispersa na multiplicidade de suas lutas e alienada nos diversos momentos analíticos de sua dupla crítica, re-funde todo o processo anterior e, finalmente, atinja a síntese e história da multiplicidade de suas experiências e lutas, desperte de maneira definitiva e atinja plenamente a sua consciência de classe, o seu projeto histórico, a estratégia do seu programa revolucionário que objetivamente (e agora também subjetivamente) se conclui pela “negação da negação”, pela “expropriação dos expropriadores”. Em certo sentido, portanto, com este movimento apenas devolve-se à classe o que ela própria produziu, no seu próprio devir, na sua própria luta: o seu programa de ação histórica enquanto classe revolucionária[11]. O Capital constituir-se-ia, assim, claramente, como uma espécie de “fenomenologia materialista” que descreve o desenvolvimento programático da consciência revolucionária a partir do desenvolvimento das contradições objetivas da própria economia capitalista. Partindo-se assim [aparentemente][12] das formas mais ilusórias da economia capitalista mostra-se finalmente que em cada mercadoria está presente já a contradição da luta de classes, a necessidade objetiva da expropriação dos expropriadores. Nesse sentido, o resultado político (a negação da negação) não é uma sobreposição dogmática ou arbitrária, não’é uma “conscientização” cultural, ética ou humanista posta exteriormente, mas sim, apenas o desencadear do processo de contradições, o caminhar pelo antagonismo de classes objetivamente posto, o percorrer um processo de transição dialético através das objetivas contradições econômicas. O “programa” político (subjetivo) mostra-se (ao final do processo) como inseparável do econômico (objetivo) e surgindo imanentemente dele.
Entre as leituras de O Capital nessa direção, já lembramos aquela de Rosa Luxemburgo[13]. Na mesma direção, mas de maneira teórica mais precisa, célebres são também as anotações e reflexões de Lenin a respeito da Ciência da lógica de Hegel e, a partir daí, do desenvolvimento dialético de O Capital[14]. Pelas suas anotações e esquemas, percebe-se sobretudo como Lenin dava ênfase ao caráter ininterrupto do desenvolvimento das contradições: “Marx não nos deixou uma Lógica (com um grande L), mas nos deixou a lógica de O Capital (…) A mercadoria – o dinheiro (produção da mais-valia absoluta, produção da mais-valia relativa) – o capital [História do capitalismo e análise dos conceitos que resumem esta história.]”[15] Em outra passagem, na mesma direção, escrevia Lenin que Marx em O Capital analisa inicialmente o que há de mais simples, de mais habitual, parte da mercadoria e das suas trocas. Em seguida, corretamente, observa Lenin que Marx desvela neste fenômeno elementar “todas as contradições da sociedade contemporânea. Sua exposição nos descreve logo após o desenvolvimento (e o crescimento e o movimento) destas contradições e desta sociedade…”[16]. É evidente que essas reflexões “filosóficas”, tratando-se deste autor, não permaneceram abstratas ou voltadas para um conhecimento meramente “positivo”. Na “lógica” de O Capital, na “lógica” das contradições do modo de produção capitalista, certamente Lenin encontrava também algo da própria “lógica da luta de classes”, da “lógica da revolução” ou, se quisermos, uma certa teoria geral do programa revolucionário. No entanto, Lenin parece jamais ter elaborado por escrito algo que poderia ser reconhecido como propriamente um programa sistemático de reivindicações embasado de maneira direta no desenvolvimento dialético de O Capital. Parodiando ao próprio Lenin, poderíamos dizer: “Lenin não nos deixou uma Lógica (da Revolução) com um grande ‘L’, nos deixou a Lógica da sua práxis histórica, a lógica da Revolução Russa.[17]
Para a possível interpretação de O Capital enquanto teoria programática foram realmente necessárias as experiências históricas da Revolução Russa. Pois, estas experiências foram a primeira superação dialética (Aufhebung) e assim realização da teoria de O Capital se suprimindo plenamente enquanto mera teoria analítica, se metamorfoseando em programa revolucionário e em ação hist6rica vitoriosa de uma classe. Nesse sentido, pode-se dizer que foi somente com a Revolução Russa que o modo de exposição de O Capital atingiu plenamente “a vida da matéria“. Pela primeira vez na história, o processo da “negação da negação” se realizou até o fim: após se superar o nível “pacífico” do mercado, se manifestou de maneira aberta a luta de classes, primeiramente, enquanto mera conservação da classe trabalhadora e, posteriormente, enquanto “negação da negação”. Sobretudo, nessas experiências foi fundamental a determinação clara da gênese da “negação da negação” se constituindo materialmente no interior da própria estrutura econômica, na própria instância produtiva, a partir dos comitês de fábrica até o poder dos sovietes[18]. Em determinado momento, as lutas econômicas pela imediata conservação da classe trabalhadora foram se transmutando, como na seção VII de O Capital[19], em formas “políticas” que faziam o rompimento com as leis “justas” da troca de equivalentes. Dos comitês de fábrica e comitês de trabalhadores em geral surgiram os conselhos (sovietes) e finalmente o caráter irreversível de uma dualidade de poder que se expressou enquanto “negação da negação”, “expropriação dos expropriadores”[20].
A Revolução Russa foi assim um grande desenvolvimento histórico e teórico na compreensão de O Capital, sobretudo, este pensado enquanto a crítica (dialética) da classe trabalhadora à economia política burguesa, uma crítica que termina com a revolução socialista. Particularmente, esta compreensão resultante da Revolução Russa está expressa em uma questão programática fundamental. Alguns setores da nova Internacional, após a revolução, começaram a criticar a diferença entre um programa mínimo (econômico) e um programa máximo (político), diferença que caracterizava os partidos da II Internacional. Isto foi o resultado da interpretação, a partir, principalmente, da própria prática objetiva da Revolução Russa, de que as lutas econômicas não são um programa mínimo que deve se opor de maneira absoluta a um programa máximo político (a tomada do poder). O processo objetivo da revolução, como o desenvolvimento dialético de O Capital, permitia supor que realmente o “resultado” político podia nascer de maneira imanente das contradições econômicas estruturais, superando a oposição luta econômica e luta política[21].
O próprio processo histórico da revolução iluminara a análise dialética de O Capital e mostrara que as contradições econômicas, diretamente materiais e objetivas, seriam também e ao mesmo tempo políticas e subjetivas, bastaria desenvolvê-las dialeticamente, isto é, de maneira imanente, ampliando sempre as contradições fundamentais (estruturais) sem desviar-se ou dispersar-se com sobreposições externas (questões meramente conjunturais, em geral de caráter só superestrutural): como mostrara teoricamente Marx, em cada mercadoria, em cada objeto do modo de produção capitalista existe a contradição valor de uso e valor, e nesta contradição está, na verdade, já contido o movimento dialético ininterrupto da luta de classes, ainda que como pressuposto. Esta experiência (da unidade dialética entre o econômico e o político) vivida na Revolução Russa atestou a força das reivindicações econômicas que se embasam em contradições estruturais do modo de produção capitalista e como, a partir delas, se constrói a dualidade de poder primeiramente localizada, depois em âmbito nacional, surgindo daí o poder revolucionário dos conselhos e a expropriação dos expropriadores[22].
Esta experiência histórica da revolução russa não foi, no entanto, de maneira imediata sintetizada teoricamente. Porém, este trabalho foi tentado em alguns textos dos quatro primeiros congressos da III Internacional Comunista[23]. Na Tese sobre a situação mundial e a tarefa da Internacional Comunista apresentada no III Congresso em 1921 e redigida por Trotski[24], pode-se perceber elementos dessa compreensão programática. Descreve-se a situação mundial do pós-guerra como extremamente difícil para os trabalhadores: “A redução dos salários ultrapassa a baixa dos preços. O número de desempregados e semi-desempregados tornou-se enorme, sem precedentes na história do capitalismo.”[25] Afirma-se também que a tentativa de sobrevivência do capitalismo “tem como condição sine qua non a intensificação da exploração, a perda de milhões de vidas humanas, o rebaixamento de milhões de seres humanos abaixo do nível mínimo das condições médias de existência, (…)”[26]. Diante disso o proletariado tem que organizar a sua luta defensiva, ou seja, embasada em reivindicações econômicas. Eis então que se coloca como tática dos comunistas, justamente, uma dialética de transição que conduza das lutas defensivas à luta pelo poder: “A tarefa capital do Partido Comunista no interior da crise que atravessamos é de dirigir os combates defensivos do proletariado, de os alargar, de os aprofundar, de os agrupar e de os transformar – segundo o processo de desenvolvimento – em combates políticos para a meta final”[27]. Como se vê, em certo sentido, a proposta é encontrar uma espécie de “lógica objetiva da revolução” (“o processo de desenvolvimento das contradições”), que partindo da luta defensiva aparentemente mínima, vá realizando sínteses cada vez mais amplas das múltiplas contradições, alargando, aprofundando, agrupando e transformando os combates defensivos, de forma que se realize a transição ininterrupta para a luta “política” final, a derrubada do capitalismo. No entanto, a própria noção de “transição” e de “reivindicações transitórias” não estava ainda desenvolvida de maneira clara no III Congresso. Isto fica evidente quando examinamos a tese sobre a tática, apresentada por Rádek[28].
Em primeiro lugar a tese combate os “ultra-esquerdistas”. Como “A tarefa mais importante do momento[29]“, a tese coloca que a Internacional Comunista deve procurar exercer um trabalho amplo e de massa, atingindo uma influência preponderante sobre a maior parte possível da classe operária. Os partidos da Internacional não podem ser “pequenas seitas comunistas” que procurem exercer sua influência sobre as massas operárias “unicamente pela agitação e propaganda”, mas, continua o texto, devem “tomar parte na luta das massas operárias, guiar esta luta no sentido comunista e constituir no processo de combate grandes partidos comunistas[30]“. Nesse sentido, repudia abertamente todas as “tendências sectárias”: ao nível sindical postula que é necessário participar dos sindicatos existentes e vencer a sua burocracia reacionária no próprio interior destes, transformando-os em instrumentos de combate; rejeita assim a fundação de sindicatos “comunistas”, isto é, paralelos aos sindicatos existentes[31]. A forte luta contra o sectarismo “ultraesquerditas”, expressa pela tese, tem assim como principal preocupação a rejeição do trabalho político como mera agitação e propaganda ideológica e externa, pois a tática dos partidos da Internacional, deve se situar “o mais firmemente possível sobre o terreno do movimento de massas”, e os comunistas devem assim” penetrar em todas as particularidades concretas deste movimento e fazer das reivindicações isoladas ou parciais dos operários o ponto de partida de sua própria agitação e propaganda (…)[32]“. Como se vê, contra a pregação “externa” e “dogmática” dos ultra-esquerdistas, se propõe o trabalho “interno”, o partir das condições, necessidades e consciência atuais das massas, para daí desencadear o movimento rumo à tomada do poder. A formulação, no entanto, não é suficiente clara: combatendo os “ultraesquerdistas” fala-se em partir das “reivindicações isoladas e parciais”. Para explicitar esse “ponto de partida da agitação e da propaganda” que os partidos comunistas deveriam considerar, o texto desenvolve inclusive o item específico “Combates reivindicações parciais”.[33] Como se vê, fala-se aqui de reivindicações parciais, mas não ainda de reivindicações transitórias. Ora, partir das reivindicações parciais rejeitando a agitação e propaganda mais geral não seria escapar do “ultra-esquerdismo” para recair nas posições reformistas da II Internacional? Não seriam justificáveis as desconfianças então existentes de Zinoviev, Bela Kun, Ruth Fischer e da”oposição “ultraesquerdista” em geral? Qual a diferença entre estes “combates e reivindicações parciais” e o “programa mínimo” da II Internacional? Tanto a dificuldade realmente existia, que o texto procura de maneira direta enfrentá-la.
Nessa direção, escreve-se: “Os Partidos comunistas não colocam para este combate nenhum programa mínimo tendendo a fortificar e a melhorar o edifício vacilante do capitalismo. A ruína deste edifício permanece sua meta diretora, sua tarefa atual. Mas, para preencher esta tarefa, os Partidos Comunistas devem emitir reivindicações cuja realização constitua uma necessidade imediata e urgente para a classe operária e eles devem defender estas reivindicações na luta das massas (…)[34]“. Como se vê, esta “nova” tática que aqui, com dificuldade, procura-se explicar, deve-se afastar tanto do ultra-esquerdismo que, abstraindo as condições imediatas, salta sem mediação para a “conclusão” e agita dogmaticamente um programa político máximo à classe trabalhadora, quanto do reformismo que, adaptando-se às situações imediatas, ancora-se na aparência, e ilude as massas com um programa mínimo de reformas e prosperidade no interior do próprio capitalismo.
Tentando explicar melhor estas reivindicações “parciais”, se acrescenta, agora de maneira mais clara: “No lugar do programa mínimo dos reformistas e centristas, a Internacional Comunista coloca a luta pelas necessidades concretas do proletariado, por um sistema de reivindicações que no seu conjunto realize a demolição da potência da burguesia, organize o proletariado e constitua as etapas da luta pela ditadura proletária; cada uma dessas etapas] em particular dá sua expressão a uma necessidade das largas massas, mesmo se estas massas não se colocam ainda conscientemente sobre o terreno da ditadura proletária[35]“. No entanto, devido ao próprio nível excessivamente empírico da análise (expressa na ausência de referência ou embasamento direto na teoria de O Capital), não fica suficientemente esclarecido o que são afinal essas reivindicações parciais, assim como o que é esse movimento irreversível (quase mágico) que levaria das reivindicações parciais à tomada do poder. Assim, em certo momento, se lê no texto: “Os operários que lutam por suas reivindicações parciais são arrastados automaticamente (grifos nossos) a combater toda a burguesia e seu aparelho de Estado[36]“. Como essas reivindicações parciais poderiam ter esse poder quase fetichista de “arrastar automaticamente” mesmo as camadas inconscientes do proletariado à luta política final? Apesar de alguns outros esclarecimentos, em geral, extraídos empiricamente das experiências da Revolução Russa (lutas econômicas – controle operário – sovietes), esta tese sobre a tática permanece aquém do desenvolvimento teórico necessário. Sobretudo, não rica clara a diferença entre estas reivindicações parciais e o programa mínimo da social-democracia. Tanto é assim que após todas as tentativas de esclarecimento desenvolvidas, a tese sobre a tática volta a defender-se dos possíveis ataques “ultra-esquerdistas” afirmando: “Toda objeção contra a elevação de reivindicações parciais deste gênero, toda acusação de reformismo por causa destas lutas parciais, decorre desta mesma incapacidade em compreender as condições vivas da ação revolucionária que se manifesta já na oposição de certos grupos comunistas de participarem nos sindicatos e de utilizarem o parlamento[37]“. E logo adiante, na mesma direção, tentando defender as reivindicações parciais, mas não esclarecê-las teoricamente, acrescenta a tese: “A qual ponto as objeções contra as reivindicações parciais são despidas de base e estranhas às exigências da vida revolucionária, isso se manifesta sobretudo no fato de que mesmo as pequenas organizações fundadas pelos comunistas ditos de esquerda, como asilos da pura doutrina, tem sido obrigadas a colocar reivindicações parciais, quando elas quiseram tentar arrastar na luta massas operárias mais numerosas que aquelas que se agrupavam em torno delas(…)[38]“.
O IV Congresso realizado em 1923, confirmará em linhas gerais a linha tática adotada no m Congresso. No entanto, de maneira precisa, aprofundará teoricamente aquela linha tática num ponto de extrema importância: desenvolverá uma diferença conceitual inexistente nos textos aprovados pelo III Congresso, a diferença entre reivindicações parciais e reivindicações transitórias. O termo “reivindicações transitórias” nem sequer aparecia no texto sobre a tática de 1921. As chamadas “reivindicações parciais” se confundiam assim com aquelas da social-democracia, no entanto, como vimos, elas “pretendiam” possuir outro conteúdo. Que conteúdo? Exatamente o conteúdo dialético de transição. Assim é que no texto sobre a tática do III Congresso aparece inclusive a palavra transição, mas aplicada apenas à noção de “período”. Assim se lê naquele texto: “O caráter do período de transição (grifo nosso) torna um dever a todos os partidos comunistas de elevar ao mais alto ponto seu espírito de combatividade. Cada combate isolado pode desembocar num combate pelo poder[39]“. Mas, como vimos, apesar de caracterizar o período como de transição para a revolução socialista, o texto insiste em uma terminologia que seria realmente mais própria à social-democracia e às suas reivindicações e conquistas parciais.
Nesse sentido, a introdução do conceito de “reivindicações transitórias” é uma grande inovação teórica ocorrida no IV Congresso. Vejamos, particularmente, a Resolução sobre o programa da Internacional Comunista. Manifestando um grande esforço de centralização a nível mundial, este texto determina que todos os projetos de programa das diversas seções nacionais devem ser enviados ao Comitê Executivo da IC. Determina-se também que estes projetos devem seguir algumas prescrições gerais. Os projetos devem colocar nos seus objetivos a luta por reivindicações transitórias. Sustenta-se também que a necessidade da luta por reivindicações transitórias deve ser explicitada e “motivada com precisão e nitidez[40]“. E, como no III Congresso, enfrentando ainda as resistências e pretextos dos “ultra-esquerdistas, que recusavam a nova tática, exige-se que toda recusa “conjuntural” no sentido de agitar reivindicações transitórias deve ser justificada. Desta maneira, afirma a resolução: “as reservas sobre as relações destas reivindicações com as condições concretas de tempo e de lugar devem ser mencionadas[41]“. Mas, é sobretudo importante o item 4 desta resolução. Aqui volta-se a falar de reivindicações transitórias como também de reivindicações parciais, porém, exatamente para precisá-las e diferenciá-las teoricamente. Diz o texto: “Os fundamentos teóricos de todas as reivindicações transitórias e parciais devem absolutamente serem formulados no programa geral.” E a seguir o texto opõe reivindicações transitórias a reivindicações parciais, sustentando que as primeiras, as transitórias, não se vinculam ao oportunismo (do menchevismo ou da social-democracia), são sim as segundas, as parciais, que podem servir para “atenuar ou substituir os objetivos revolucionários fundamentais[42]“. Mas, esta resolução sobre o programa vai ainda além nas suas exigências de determinação das reivindicações transitórias. Observa o item 5 que devem ser “nitidamente enunciados os tipos históricos fundamentais entre os quais se dividem as reivindicações transitórias das seções nacionais”, isto será feito, explica a seguir a resolução, “conforme as diferenças essenciais da estrutura econômica e política dos diversos países, como por exemplo, a Inglaterra de um lado, a Índia de outro, etc (…)[43]” como se vê, com estas diferenciações abria-se um corte teórico claro entre o que poderia vir a ser o programa transitório dos partidos da Internacional Comunista e o programa mínimo dos “reformistas”, permitindo assim também fazer claran1ente a crítica dos “ultra-esquerdistas”. As reivindicações transitórias respeitariam as especificidades nacionais e, de acordo com cada situação concreta, poderiam ser combinadas com certas reivindicações parciais, as quais, agora diferenciadas das transitórias, poderiam sem risco de reformismo ainda serem ocasionalmente utilizadas. No entanto, o III e IV Congressos apenas esboçaram essa teoria da tática do programa transitório, caberia ao V Congresso realizar efetivamente boa parte do trabalho[44].
O V Congresso se reuniu entre 17 de junho e 8 de julho de 1924. Na seção inaugural Zinoviev, que foi o presidente deste congresso, realmente, lembrou que o problema fundamental da reunião era a questão do programa.[45] No entanto, Lenin, o grande iniciador da nova tática, morrera em janeiro de 1924. Toda a situação interna do PC russo e da Internacional mudara. Ao invés de uma continuidade do trabalho teórico em direção do programa marxista ocorrerá a chamada “bolchevização” dos partidos e dos seus programas[46]. A Internacional, conduzida por Zinoviev, realizará uma grande guinada à “esquerda”. Os “ultra-esquerdistas” não aparecem mais como grande perigo: “O verdadeiro perigo,” diz Zinoviev, “o constituem aqueles que exigem uma maioria estabelecida estatisticamente de noventa e nove por cento, ou pouco menos, antes de querer escutar falar de batalha revolucionária[47]“. A noção de reivindicações transitórias desaparece e volta-se a falar imprecisamente de reivindicações parciais[48], evidentemente, volta a ocorrer a confusão com o programa mínimo dos “reformistas”, sobretudo, nos infom1es e resoluções dominantes, aqueles pronunciados por Zinoviev: “Se nos separamos dos mencheviques”, diz o presidente do V Congresso, “não foi porque estivéssemos contra as reivindicações parciais, senão porque vinculávamos estas aos problemas fundamentais da revolução. Para os mencheviques as reivindicações parciais são um meio de substituir a revolução pela evolução reformista; para nós são um dos meios de preparar a revolução[49]“. Da mesma forma, na sua “tese sobre a bolchevização”, escreve Zinoviev: “os comunistas demonstrarão às massas, através de sua própria experiência, que são os reformistas os que sabotam todas as lutas sérias em favor das reivindicações parciais e que os partidos comunistas, que apontam às lutas pelo poder, são os únicos capazes de conduzir a luta pelos interesses cotidianos das massas operárias e de defender seu nível de vida. Renunciar às reivindicações parciais é incompatível com a bolchevização[50]“.
Como se vê, com esta guinada “esquerdista”, ao abandonar-se a noção de reivindicações transitórias, não se perdia totalmente a concepção do programa como um processo. Este processo era concebido, no entanto, de maneira simplista, como um caminho que iria mecanicamente das reivindicações parciais (da social-democracia) às reivindicações pelo poder. Bastando para isto sempre agitar, juntamente com as reivindicações parciais, aquelas pela derrocada do capitalismo. Tratava-se de pensar a passagem entre o particular e o geral sem qualquer pressuposto, e acreditando que a garantia de que o particular desembocaria no geral poderia ser dada pelo constante adiantamento (“esquerdista”) do geral em cada momento particular; como se o geral pudesse externamente “puxar” ou “rebocar” (quase como um guincho) o particular. O resultado desta forma de compreender o processo do programa é um “encavalamento” entre o particular e o geral, que resulta num “amontoado” de palavras de ordem sem qualquer ordem, sem qualquer modo de exposição. Esta concepção “vulgar” de processo está claramente exposta na resolução do V Congresso intitulada Sobre a tática comunista[51], particularmente o item X, nomeado de maneira precisa Reivindicações parciais. Aqui pode-se ler que as reivindicações parciais “devem relacionar-se com o propósito final.” E explica-se: “Devemos ir do particular ao geral, das reivindicações parciais a todo o sistema de reivindicações, o conjunto das quais constitui a revolução social[52]“. Ora, na “estratégia” de O Capital, assim como nas concepções táticas do III e, sobretudo, do IV Congresso, não se vai, propriamente, do particular ao geral, mas sim, muito mais, se vai do geral ao particular que retorna ao geral, isto é, se vai do geral (pressuposto que impulsiona internamente a imediatez contraditória) ao particular (imediatez contraditória fundamental, a forma mercadoria; ou reivindicações transitórias) que retoma ao geral agora posto pela longa demonstração ou exposição (totalidade histórica, luta de classes, negação da negação, expropriação dos expropriadores; derrocada do poder burguês)[53].
Nesta concepção verdadeiramente dialética de processo, a conclusão da tática mostra-se, finalmente, como o próprio movimento e a própria realização interna do telos da estratégia, o qual estava lá, desde o começo, como pressuposto. Na concepção “vulgar” adotada no V Congresso, a tática e a estratégia desde o começo são apresentadas juntas e literalmente “misturadas”, “amontoadas” e “confundidas”. Ocorre então o que ocorreu com a III Internacional após o V Congresso: as táticas terminam se sobrepondo a qualquer estratégia. a diversidade da imediatez se mostrando rebelde a qualquer superação, a infinita multiplicidade do particular se sobrepondo a qualquer geral. A infinitude múltipla das particularidades aparece sempre como o “concreto” e o geral sempre com o “abstrato”. Conforme então à última impressão imediata, oscila-se sem rumo no caos da particularidade e a “elasticidade” tática rege toda e qualquer estratégia. Sabese bem, foi um pouco assim o repleto caminho de derrotas trilhado pela III Internacional, desde o V Congresso até a sua melancólica dissolução em 1943[54].
Já quase no encerramento do V Congresso da IC, na noite de 7 de julho de 1924, entre os oradores daquela trigésima seção, estiveram Lozovski e Riazánov. Ambos foram corretamente proféticos, mas, em sentidos contrários. O primeiro terminou a discussão sobre a tática sindical aclamando “a elasticidade” futura da Internacional “bolchevizada”: “A Internacional Comunista deve saber mudar de tática quando as condições mudam.(…) Eles [os burgueses] são elásticos, mudam seus métodos, procuram novas formas de organização. A Internacional Comunista, que está no volante da revolução, deve saber evoluir, porque caso se vá sempre reto tema-se quebrando a cara.” E conclui o seu pronunciamento Lozovski, para justificar a virada de então, dizendo que, se observamos a história do partido russo e da revolução, muitas viradas foram feitas “graças à elasticidade do bolchevismo[55]“. Após os aplausos calorosos a Lozovski, levantou-se Riazánov, o organizador do Instituto Marx-Engels e certamente o maior conhecedor de então das publicações e manuscritos de Marx: “Os debates a respeito do programa”, disse ele, “da mesma forma que os debates sobre a teoria da acumulação (…) mostraram toda a necessidade de um estudo em profundidade do marxismo. (…) Ainda temos muito que aprender na escola do marxismo revolucionário”, e acrescentou amargamente Riazánov que isto poderia ser demonstrado até por “alguns pequenos extratos dos livros de Marx e Engels[56]“. Após conclamar todos os presentes no sentido do desenvolvimento do Instituto Marx-Engels, disse: “Desejo-vos muita sorte no vosso trabalho revolucionário, mas”, recomendou ainda ele, encerrando o seu pronunciamento, “não esqueçais que sem teoria revolucionária não há boa prática revolucionária[57]“. Nunca talvez esta frase foi enunciada tão propriamente como ao V Congresso, já que as resoluções deste congresso abriram uma ruptura fundamental no desenvolvimento da teoria marxista do programa e, conseqüentemente, na totalidade da teoria e da prática marxista[58].
Lenin, Rádek e Trotski, aqueles que foram os principais responsáveis pelas teses sobre a tática nos III e IV congressos da IC, como se sabe, não tiveram qualquer participação ativa na elaboração da virada esquerdista de 1924. Lenin morrera em janeiro. Rádek, dois meses antes do V Congresso da IC, no XIII Congresso do partido russo, já havia sido excluído do Comitê Central do partido, caindo em desgraça[59]. Trotski, por causa da luta interna do PC russo que já começara, foi objeto de ataques durante o V Congresso da IC , tendo permanecido praticamente afastado da elaboração de toda a nova política[60]. Sem que sigamos aqui a complexa história pós-192, é interessante observar que tendo Rádek se “retratado” publicamente em 13 de julho de 1929[61], apenas o próprio Trotski restou como herdeiro direto da tática das reivindicações transitórias. Será inspirado nessas concepções que ainda fará a crítica do programa de 1928 da IC (elaborado no VI Congresso da IC), enquanto dirigente da Oposição de Esquerda Internacional[62]. Mas, foi sobretudo a partir de 1933, após a política catastrófica da IC na Alemanha, que Trotski, considerando definitivamente falida a ma Internacional, passou a projetar a elaboração de uma nova Internacional e assim de um novo programa[63].
Após a ascensão de Hitler em janeiro de 1933, já em setembro de 1933, esboçava Trotski o que deveria ser o programa de uma nova Internacional: A elaboração de um documento programático está agora na ordem do dia. O manifesto da nova Internacional deverá traçar um quadro geral do mundo capitalista moderno – como da União Soviética -, de suas relações econômicas, políticas, e internacionais. Todas as convulsões de nossa época – guerras, crises, barbárie fascista – devem ser explicadas como o resultado do atraso da revolução proletária. A responsabilidade deste atraso deve ser atribuída à II e III Internacionais. Um capítulo especial deste manifesto devia ser consagrado ao quadro do declínio das duas Internacionais. Em conclusão, os problemas da revolução proletária, assim como aqueles da defesa da União Soviética, exigem a criação de uma nova Internacional. Os capítulos de conclusão deveriam dar as grandes linhas do programa de ação da nova Internacional[64]“.
Trotski, de maneira otimista, previa que a elaboração coletiva de tal tarefa deveria estar concluída em alguns meses[65]. O documento que mais se aproxima de tal programa é “A agonia do capitalismo e as tarefas da IV Internacional”, texto que passou a ser conhecido como Programa de transição. Terminado somente em 1938, este texto corresponde, na verdade, muito mais ao conteúdo previsto para “os capítulos de conclusão” do amplo documento projetado em 1933. Para as nossas preocupações teóricas, no entanto, o texto é fundamental já que desenvolve justamente um sistema de reivindicações transitórias, procurando assim retomar as propostas táticas dos III e IV Congressos.
Examinemos o chamado Programa de transição de um ponto de vista estritamente teórico, procurando abstrair ou colocar entre parêntesis, dentro do possível, as suas proposições relacionadas com as lutas internas do movimento comunista, assim como, as suas caracterizações mais imediatamente conjunturais. Interessa-nos, particularmente, a tentativa existente no texto de retomar a concepção de programa como um processo transitório. Como se desencadeia esse processo? Seria um processo que poderíamos designar como “dialético”? Em que sentido? Mas, sobretudo, em que medida esse processo pode ser aproximado de um desenvolvimento dialético analógico àquele realizado em O Capital? Trata-se, portanto, de perguntar pela possível contribuição desse texto à teoria geral do programa marxista. Passemos à análise do texto seguindo tais abstrações e preocupações propostas[66].
Em primeiro lugar, façamos abstração dos dois primeiros itens: “As premissas objetivas da revolução socialista” e “O proletariado e suas direções” (ambos são conjunturais e, sobretudo o segundo, envolve a luta interna do movimento comunista). O terceiro item “Programa mínimo e programa de transição”, como coloca o próprio título, introduz já a problemática que nos interessa. O texto coloca: “É necessário ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista[67]“. Como se vê, na metáfora da “ponte” já aparece claramente a noção de “processo” contida no programa. A seguir, afirma-se: “Esta ponte deve consistir em um sistema de reivindicações transitórias (grifo do próprio texto) que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado[68]“. Como se vê, retoma-se aqui, claramente, os textos sobre a tática dos m e IV Congressos da IC. Nessa direção, como naqueles textos, por exigir-se que se parta “das atuais condições” e “da consciência atuar das massas, torna-se imediatamente necessário fazer a diferenciação destas posições em relação ao programa mínimo da socialdemocracia. Comenta-se então que a social-democracia fazia a distinção entre programa mínimo (reformas) e máximo (socialismo), no entanto, entre ambos “não havia qualquer mediação[69]“, a social-democracia não tinha necessidade de “mediação” ou “ponte” pois, na verdade, o programa máximo para ela era inatingível, somente posto “para os dias de festa[70]“. Como nos textos da IC, mais uma vez, também não se rejeita “as reivindicações do velho programa mínimo, à medida que elas conservaram alguma força vital[71]“. No entanto, explica-se que mesmo as reivindicações parciais mínimas chocam-se com as tendências do capitalismo decadente e, à medida que isso ocorre, justamente, avança-se “um sistema de reivindicações transitórias (mais uma vez, grifo do próprio texto)[72]“. Este “sistema” tem assim como papel fundamental a função de superar as reivindicações parciais, de ultrapassar as reivindicações que permanecem no parâmetro do sistema capitalista. Como literalmente afirma-se: “O velho programa mínimo é constantemente ultrapassado (grifo nosso) pelo Programa de transição (grifo do texto), cuja tarefa consiste numa mobilização sistemática das massas em direção da revolução proletária[73]“. Como se vê, há uma preocupação em não entrar em choque com as reivindicações parciais e com o programa mínimo (o que seria uma posição “ultra-esquerdista”), trata-se precisamente de superá-los, de ultrapassá-los dialeticamente.
Com o item seguinte, “Escala móvel de salários e escala móvel das horas de trabalho”, começa propriamente a exposição da “ponte”, “mediação” ou “sistema de reivindicações transitórias”. Vejamos em que consiste este “sistema”. Abrindo-se esta parte, coloca-se que, diante do capitalismo em decomposição, as massas mais do que nunca são ameaçadas de serem lançadas na miséria. Sendo assim, “elas são obrigadas a defender o seu pedaço de pão, mesmo se não podem aumentá-lo ou melhorá-lo[74]“. Parte-se, assim, da luta defensiva das massas. Observa-se, então, que nessa luta defensiva surgirão, de acordo com as diversas circunstâncias concretas, diversos males a serem combatidos e diversas reivindicações parciais. No entanto, coloca-se que dois males econômicos são fundamentais: o desemprego e a carestia de vida[75]. Contra estes males deve-se reivindicar trabalho e uma existência digna para todos. Estas reivindicações evidentemente parecem mínimas e aparecem como mínimas mesmo para os setores mais atrasados das massas. No entanto, o programa propõe em seguida as formas transitórias de defesa contra a carestia de vida e de defesa do direito ao trabalho. Estas formas transitórias irão superar o caráter mínimo ou parcial daquelas reivindicações.
Contra a carestia de vida, pela existência digna, coloca que não se devem aceitar nem soluções monetárias milagrosas, nem a estabilização dos preços, estas são medidas que terminam sempre se voltando, invariavelmente, contra o proletariado[76]. Recusando qualquer plano econômico “salvador” proposto pelos governos capitalistas, para combater a inflação, a reivindicação transitória que se propõe então é escala móvel de salários, ou seja, os contratos coletivos devem assegurar o aumento automático dos salários, correlativamente ao aumento dos preços[77]. Por outro lado, contra o desemprego, tanto “estrutural” quanto “conjuntural”, pelo direito ao trabalho, se propõe escala móvel das horas de trabalho, ou seja, de acordo com as diversas situações conjunturais (em fábricas, em regiões, em países) aplicar-se-ia uma redução móvel das horas de trabalho, o trabalho disponível seria repartido entre os operários existentes e a partir desta repartição se determinaria a duração da nova semana de trabalho[78].
As duas escalas móveis são assim as reivindicações transitórias que permitiriam superar as reivindicações defensivas mínimas por salário e trabalho e desencadear o restante do sistema de reivindicações transitórias. Estas duas reivindicações combinadas carregariam em si todo o desenvolvimento transitório posterior, e assim a própria ‘conclusão’ do programa, o socialismo. Em que sentido elas teriam esse poder? Em que sentido elas são de tal forma transitórias?
Ora, é evidente que, como já colocava Marx em O Capital[79], as questões do salário e do trabalho são as questões imediatamente fundamentais para a classe trabalhadora e a partir das quais começam as suas primeiras lutas. No mercado, como mostrava ainda Marx, enquanto “o paraíso dos direitos do homem”, o direito ao trabalho é o “direito justo” do trabalhador “livre, igual e proprietário da força de trabalho” de vender a força de trabalho no mercado, e o salário é o “equivalente justo” que ele recebe pela venda da sua força de trabalho[80]. Isto está posto pela própria ideologia burguesa. Aquilo que a combinação das duas escalas móveis coloca aparece assim, mesmo para a consciência mais atrasada, como algo núnimo, justo e possível: defender ao nível do mercado o direito do seu emprego (escala móvel das horas de trabalho) e impedir a redução do poder aquisitivo do seu já (insatisfatório) salário atual (escala móvel de salários)[81].
Realmente, o programa aparece como mínimo e possível, e é mínimo possível e realizável no interior do capitalismo, mas de maneira somente localizada e por um determinado espaço de tempo. O programa é perfeitamente realizável no interior de uma ou outra empresa e talvez numa região, durante um determinado tempo (pois logo tornaria a empresa ou região não competitiva, mesmo no mercado nacional), mas, certamente, é impossível e explosivo na medida em que se generalizar a diversas empresas, a regiões, em nível nacional, para não dizer em nível internacional. Tanto é assim que a mobilidade, sempre presente no grande capital e hoje acelerada, visa justamente escapar de reivindicações como essas que limitam e, a médio e longo prazo, exterminam as próprias leis de funcionamento da “livre” compra e venda da força de trabalho no mercado[82].
As duas escalas móveis combinadas, apesar de aparecerem como reivindicações mínimas, são assim portanto reivindicações transitórias, pois carregam em si o desenvolvimento e a ampliação das contradições insuperáveis do modo de produção capitalista. As duas escalas combinadas colocam a conservação dos salários atuais e o pleno emprego, ou seja, colocam algo que só pode ser atingido com o fim do mercado de trabalho, portanto, algo que só pode ser atingido, com a supressão do capitalismo, por uma economia socialista planejada. No entanto, imediatamente, para a consciência atual atrasada de amplos setores da classe trabalhadora, no processo “defensivo” de luta pelas escalas móveis, desvela-se apenas que o modo de produção capitalista não está garantindo à classe trabalhadora enquanto classe o direito “mínimo” ao trabalho e o direito “mínimo” da mera conservação do seu salário atual. A aparência contraditória da qual se parte não é, no entanto, uma mera ilusão, pois carrega internamente (como pressuposto) o processo contraditório de manifestação da verdade: o capitalismo, é realmente incapaz de dar trabalho e existência digna para todos[83].
Como se vê, o ponto de partida do programa transitório diferencia-se daquele do programa da social-democracia, pois apesar de situar-se também no mercado e no nível da circulação, apesar de situar-se na instância da troca de equivalentes, o ponto de partida transitório possui claramente como pressuposto a conclusão do processo, o resultado da análise marxista dos momentos da produção, da reprodução e da acumulação de capital, ou seja, possui como pressuposto a superação do capitalismo. O ponto de partida do Programa de transição diferencia-se também do ponto de partida de um programa “ultra-esquerdista”, pois o “resultado” socialista está posto no começo apenas como pressuposto, o ” resultado” não aparece, assim, desde o começo, o “resultado” não é adiantado e posto na dianteira do próprio processo (como fazem os “ultra-esquerdistas”[84]. Partindo da contradição fundamental manifesta no ato de compra e venda da mercadoria força de trabalho, as duas escalas móveis combinadas (aparecendo como um programa “mínimo” e “justo” do ponto de vista do próprio capitalismo) desencadeiam pacientemente o processo interno de ampliação das contradições, processo exposto no restante do programa.
O item seguinte intitula-se “Os sindicatos na época de transição[85]”. Não por acaso, o item posteriores ao das escalas móveis trata dos sindicatos. Os sindicatos são a forma organizativa fundamental para lançar o movimento pelas escalas móveis. Trotski, diversas vezes, nas suas discussões sobre o Programa…, procurou explicar aos seus seguidores a importância decisiva dos sindicatos, sobretudo, no trabalho inicial de lançamento da luta defensiva pelas escalas móveis[86]. Os sindicatos são considerados como o instrumento fundamental da organização da classe trabalhadora nas suas lutas defensivas, e assim, nas suas lutas ao nível do mercado, lutas vinculadas à negociação da venda da força de trabalho, lutas situadas portanto nos parâmetros do sistema capitalista[87]. Assim uma política correta sobre os sindicatos é fundamental para o sucesso no lançamento da campanha pelas escalas móveis e portanto para a aplicação de todo o programa[88]. Nesse sentido, o programa de transição, reproduzindo a política a respeito dos sindicatos dos III e IV Congressos da IC, combate todo o sectarismo e toda a recusa a trabalhar nos sindicatos de massa, condenando a fundação de pequenos sindicatos “revolucionários[89]“. Condena-se também, por outro lado, toda tentativa de considerar os sindicatos como os substitutos do partido. Observa-se que os sindicatos “não têm e não podem ter programa revolucionário acabado, em virtude de suas tarefas, de sua composição e do caráter de seu recrutamento[90]“. Os sindicatos seriam assim insubstituíveis, mas, apenas enquanto os organismos fundamentais para lançar ou desencadear o movimento pelas reivindicações transitórias iniciais, as escalas móveis. Após o desencadear do movimento, segundo o programa, os sindicatos serão, em muitas situações, ultrapassados por novas formas organizativas: os comitês de greve, os comitês de fábrica, que nos momentos de ascenso congregam a massa em luta.
Assim, com o avançar da luta pela escalas móveis, se generalizarão greves e choques em muitas e muitas fábricas. Segundo o programa, chega assim o momento de agitar e criar os comitês de fábrica, título do novo item. [91] Analogicamente com o processo de O Capital (livro I, seção terceira, “A produção da mais-valia absoluta”) e com o processo da Revolução Russa (onde se multiplicaram, em certo momento, os comitês de fábrica), abandonamos o “paraíso dos direitos do Homem”, saímos do nível do mercado e entramos no âmbito da produção, penetramos no interior da fábrica[92]. Aqui a luta de classes começa a se manifestar, agora, abertamente, “como uma luta entre o capitalista coletivo, isto é, a classe dos capitalistas, e o trabalhador coletivo, ou a classe trabalhadora[93]“. Durante as greves, ocorrem ocupações das fábricas e criam-se comitês de fábrica. Localizadamente, aparece assim a dualidade de poder. Como se lê no texto: “Desde que o comitê aparece, se estabelece de fato uma dualidade de poder na fábrica. Por sua própria essência, esta dualidade de poder é transitória, porque encerra em si própria dois regimes inconciliáveis: o regime capitalista e o regime proletário[94]“.
Nesse sentido, ainda aprofundando a luta pela escalas móveis, os sindicatos e, sobretudo, as comissões de fábrica deverão agora agitar “fim do segredo comercial[95]“. Evidentemente, a generalização da luta pelas escalas móveis terá acirrado os conflitos e começado a deixar claro que o programa das escalas não é tão “mínimo” para os capitalistas. Multiplicar-se-ão os argumentos dos capitalistas e de seus economistas a respeito da impossibilidade de atender as reivindicações. Muitas empresas alegarão a impossibilidade de continuarem funcionando com tais exigências. Eis então que se coloca na ordem do dia a questão do fim do sigilo comercia, industrial, bancário; exige-se localizadamente e depois de maneira generalizada a “abertura dos livros das empresas”, desenvolve-se o “controle operário” sobre a economia[96].
Ao avançar a dualidade de poder e o controle operário sobre a economia, ao mesmo tempo, está se fundando, como diz o texto, “a escola da economia planejada”. E acrescenta-se: “Pelas experiências do controle, o proletariado preparar-se-á para dirigir diretamente a indústria nacionalizada quando tiver chegado a hora[97]“. A classe trabalhadora, como na seção sétima do livro I de O Capital (capítulos XXI a XXIV), começa então a compreender, claramente, o processo de reprodução e de acumulação de capital. Em O Capital ocorre então a “transmutação” (Umschlag)[98] das leis de propriedade da produção de mercadorias, estas mostram-se como leis da apropriação capitalista. A lei da troca de equivalentes no mercado é desmascarada. A classe trabalhadora é paga pela classe capitalista com o próprio trabalho da classe trabalhadora. Chegou a hora de começar a expropriação. Às mesmas conclusões, chega a classe trabalhadora a esta altura do desenvolvimento do programa: escalas – comitês de fábrica – dualidade de poder – fim do segredo comercial- controle operário da economia – funcionamento na prática da escola operária de economia planejada e, conseqüentemente, primeiras expropriações[99].
Seguindo o desenvolvimento dialético de O Capital, é exatamente isto que nesta altura do desenvolvimento propõe o Programa de transição. O item seguinte se intitula precisamente “A expropriação de certos grupos capitalistas[100]“. Começa-se a passar ao terceiro momento dialético da transição, o momento da negação da negação, da expropriação dos expropriadores. Nesse sentido, os itens seguintes continuam o processo transitório. Mas ainda em termos de um processo pacientemente ou dialeticamente conduzido. Propõe-se “expropriação dos bancos privados e a estatização do sistema de créditos”, “banco único do Estado[101]. Este ponto, como ressalta o programa, é fundamental para conceder aos “pequenos agricultores, artesãos e pequenos comerciantes, condições privilegiadas de crédito[102]“. Os momentos transitórios finais se aproximam.
Neste momento, o novo item do programa coloca diretamente a questão militar[103]. Mostra-se que “os piquetes de greve são as células fundamentais do exército do proletariado. É de lá que é necessário partir. Por ocasião de cada greve e de cada manifestação de rua, é necessário propagar a idéia da necessidade da criação de destacamentos operários de autodefesa.”[104] Seqüencialmente, colocam-se as palavras-de-ordem milícia operária e armamento do proletariado. O armamento do proletariado, no entanto, como todas as palavras de ordem transitórias obedecem aos momentos do processo de transição e, ainda que comandado e dirigido pela vanguarda, o armamento do proletariado, como na Revolução Russa, deve irromper do próprio avanço do proletariado e do movimento de massa em geral. Como afirma o programa: “Quando o proletariado o quiser, encontrará os caminhos e os meios de armar-se[105]“.
O item seguinte do programa é “aliança dos operários e camponeses[106]“. Esta parte do programa pretende selar a aliança dos trabalhadores assalariados com todos os setores pequeno-burgueses e, particularmente, com os operários agrícolas e pequenos camponeses. Neste sentido, se propõe comitês de pequenos lavradores, comitês de vigilância dos preços, coletivização da agricultura, nacionalização da terra.[107] Ressalta-se que deve-se excluir do processo de expropriação aos pequenos agricultores e, tirando lições de processos revolucionários anteriores, jamais deve-sepregar uma coletivização forçada[108]. Pequenos artesãos e pequenos lojistas também serão respeitados em seu direito de “proprietários que não exploram trabalho”, sendo excluídos do processo, já acelerado, de “expropriação dos expropriadores[109]“.
A seguir o programa trata da luta contra o imperialismo e contra a guerra, um item, de maneira evidente, vinculado à situação que antecedia a Segunda Guerra Mundial. Conforme havíamos proposto inicialmente, este item, como outros itens conjunturais, permanecerá entre parêntesis.
Logo após entramos na fase definitivamente conclusiva da transição. Coloca-se apalavra-de-ordem “governo operário camponês”, explica-se o conteúdo político desta reivindicação e o sentido que se pretende dar a esta proposta de governo: ditadura do proletariado[110]. Finalmente, como resultado e término do processo transitório coloca-se o item “Os sovietes”[111]. Explica-se que os sovietes ou conselhos, nada mais são do que a centralização de uma multiplicidade de comitês de fábrica, de bancários, de vigilância dos preços, etc, que surgiram durante o processo transitório. Explica-se, inclusive, que “os conselhos só podem nascer onde o movimento das massas entra em um estágio abertamente revolucionário[112]“. Afirma-se que a palavra-de-ordem sovietes “é o coroamento do programa de reivindicações transitórias[113]. Agora a dualidade de poder se generalizou a nível nacional, “o regime burguês e o regime proletário, opõem-se inconciliavelmente um ao outro. O choque entre eles é inevitável. Do resultado desse choque depende a sorte da sociedade. No caso de derrota da revolução, a ditadura fascista da burguesia. No caso de vitória, o poder dos conselhos, isto é, a ditadura do proletariado e a reconstrução socialista da sociedade[114]“. Como se vê, claramente, das escalas móveis ao poder dos sovietes, ocorre um processo dia/ético de transição que pacientemente vai ex-pondo o que desde o início estava posto como pressuposto[115].
Portanto, percorrendo o sistema de reivindicações transitórias, evidencia-se que o chamado Programa de transição possui realmente um desenvolvimento dialético que procura embasar-se em O Capital e, como esta obra de Marx, ainda que em outro nível teórico, também é uma retomada das próprias reivindicações e lutas históricas do próprio movimento operário, também é, acima de tudo, o repetir, em síntese teórica, as palavras e o devir da própria classe trabalhadora. No primeiro momento, ainda afirmativo, totalmente limitado aos parâmetros do mercado capitalista e à troca de equivalentes, parte-se aparentemente das reivindicações mínimas e parciais, aquelas vinculadas à conservação da classe trabalhadora, à defesa de um contrato “justo” no ato de venda da força de trabalho, um contrato que garanta o direito ao trabalho e à conservação dos salários atuais (lançam-se as duas escalas móveis reivindicações transitórias que pressupõem todo o processo – forma organizativa deste momento: sindicatos) [este momento corresponde à 1ª e 2ª seções de O Capital, limitadas ao âmbito da circulação]. No segundo momento, ocorre o começo do processo negativo, entra-se no âmbito da produção, entra-se no interior da fábrica: com a ampliação do movimento pelas duas escalas, desenvolvem-se as greves, as ocupações de fábrica, as comissões de fábrica (dualidade de poder localizada – abolição do segredo comercial- controle operário sobre a indústria) [este momento corresponde às seções 3a a 6a de O Capital, âmbito da produção – produção da mais-valia absoluta/relativa e salário – começo aberto da luta de classes exatamente pela redução da jornada e por salário]. No terceiro momento, ocorre a negação da negação: a partir da dualidade de poder localizada, do desenvolvimento do controle operário sobre a indústria, surge na prática a escola da economia planificada, os operários compreendem o processo de reprodução e de acumulação de capital, começa então a expropriação de certos grupos capitalistas – expropriação dos bancos privados – estatização do sistema de créditos – armamento do proletariado – aliança com os setores pequeno burgueses – nacionalização da terra coletivização da agricultura – ditadura do proletariado – poder dos sovietes [este momento corresponde à seção 7ª do livro I de O Capital – reprodução e acumulação de capital – desmascaramento da lei “justa” da troca de equivalentes, expropriação dos expropriadores].
Como se vê, as semelhanças entre o desenvolvimento do primeiro livro de O Capital e o desenvolvimento do sistema de reivindicações do Programa de transição, não são meras analogias superficiais. De fato, o Programa de transição, dando continuidade às tentativas realizadas nos primeiros congressos da Internacional Comunista, procura ser a expressão tática geral de uma estratégia geral de programa desenvolvida no próprio modo de exposição dialético de O Capital[116]. No entanto, mesmo entre os trotsquistas, que adotaram este texto como seu próprio programa, poucos foram aqueles que, superando o grosseiro empirismo nas ciências sociais burguesas, compreenderam a dimensão teórica e dialética do sistema de reivindicações transitórias[117]. Em 1940, James Burnham, dirigente do SWP (Socialist Workers Party), seção americana da IV Internacional, reconhecendo-se empirista, renunciara ao programa[118]. Fora do trotskismo, pelas próprias divergências acirradas da luta prática, este texto jamais foi sequer considerado de maneira mais aprofundada. Passados sessenta anos de sua redação, ele permanece incompreendido e inaplicado. No entanto, hoje, após tantas aventuras e desventuras, pelo próprio diálogo e solidariedade que se abriu internacionalmente entre as diversas correntes do marxismo, já é hora deste programa ser rediscutido mais amplamente e considerado como uma possível contribuição teórica na tentativa de, algum dia, realizar-se, historicamente e, assim, efetivamente, o ainda (e talvez, sempre) inacabado modo de exposição dialético de O Capital[119].
[1] Por exemplo: Manifesto inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, MEW, 16, p.5 e 55. Publicado originalmente nos números 2 e 3 de Der Social-Demokrat, em 21 e 30 de dezembro de 1864.
[2] cf. “Sobre a crítica (dialética) de O Capital”, in Crítica marxista, n”3, 1996
[3] cf. Ibidem, particularmente, pp. 29-31,38-39 e pp. 40-42; e Marx, sobretudo, Das Kapilal, livro I, p. 249, n40, MEW, 23, onde o autor reconhece que está reproduzindo documentos do comitê de greve dos operários da construção civil, greve ocorrida em Londres, 1860-61; também Marx, Manifesto inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, onde faz o elogio da economia política dos trabalhadores, in MEW, 16 p. 11; escreve Marx ao final do capo XXIV de O Capital, livro I, cil., p.791 : “Soa a hora final da propriedade capitalista. Os expropriadores serão expropriados. (Die Expropriateurs werden expropriiert)”, e ainda: Isso é a negação da negação. (Es ist negation der negation)H. Significativamente também ao final deste capítulo cita longamente o Manifesto do Par/ido Comunista, cf. p. 791, nota 252.
[4] Ainda que se possa sustentar a inquestionável existência de partes “ positivas” na obra de Marx (a análise do valor, ou mesmo contribuições à teoria da História), nenhuma dessas partes, do ponto de vista Marx, seriam passíveis de abstração e de análise ‘epistemológica’ separadas do conteúdo negativorevolucionário que dialeticamente dá a significação e determinação últimas tanto de cada proposição de sua obra, assim como, particularmente, da sua própria concepção de ‘universalidade científica’. Pois é a realização hist6rica da negatividade de sua obra (realização da supressão das classes) que permitiria, para Marx (desde pelo menos a Ideologia alemã até a época de O Capital, atingir uma plena superação de toda ideologia e assim uma plena universalidade científica. Para Marx, só numa sociedade além da dominação de classe não seria mais necessário “apresentar um interesse particular como universal ou ‘ o universal’ enquanto algo dominante.( ein besonderes interesse als allgemeines oder ‘das Allgemeine’ als herrschend). “Die deutsche Ideologie, p. 48, MEW, vol. 3, Berlim, 1958). Para Marx, os próprios conceitos” epistemológicos de ‘particular e ‘universal’ seriam inseparáveis das relações de apropriação historicamente determinadas das forças produtivas: “Que diria o velho Hegel se soubesse que o universal (Allgemeine) em alemão e nórdico nada mais significa do que a terra comum [gemeindland] e que o particular [das Sundre, Besonde] nada mais do que a propriedade privada separada da terra comum?” (carta de Marx a Engels, 25/3/1868, MEW, vo1.32, p.52). Neste sentido, também escreveu a respeito da “ciência” econômica: “o desenvolvimento da economia política e da contradição que dela resulta ocorre paralelamente com o desenvolvimento real das oposições sociais e das lutas de classe contidas na produção capitalista.” (Histoire des doctrines économiques, 1. VIII, 185- 186, A. Costes, Paris, 1949). No mesmo sentido, sobre o desenvolvimento da economia política enquanto “ciência” sobre determinado diretamente pelo desenvolvimento da luta de classes, cf. posfácio da 2 ed. O Capital (ed. ci1., pp.19-22).
[5] idem, ibidem: “spiegelt sich nun das Leben des Stoffs ideel wider… ”
[6] A respeito do juízo analítico-sintético escreveu Hegel: “Este momento tanto sintético como analítico do juízo, através do qual o universal inicial se determina por si mesmo enquanto o outro em relação a si, é preciso nomear como o [momento) dialético [das dialektische). “(Wissenschaft der Logik, S. Werke, ed. F. Frommann, Stuttgart, 1964, vol. V, p.336. Isto é, o momento dialético do juízo é aquele no qual o analítico sem sair de si mesmo se toma outro, ou seja, alcança um conteúdo sintético, ultrapassa o conteúdo meramente tautológico do analítico. E sobre a “idéia absoluta” que é o ‘resultado’ da lógica, escreve Hegel: “só a idéia absoluta é ser, vida imperecivel [unvergängliches Leben], verdade que se conhece a si mesma, e é toda verdade.” (ibidem, p.328). Como se vê, já Hegel associava a totalização (da idéia absoluta) com a noção de “vida”.
[7] Também Hegel dizia no último capitulo da L6gica: “A idéia absoluta como ela se deu, é a identidade entre a (idéia I teórica e prática”. (ed. ci1., p.327) Se esta difícil procura da forma “ideal” no livro I de O Capital, terminou em relativa euporia, relativa “feliz_chegada” expressa no último item do capitulo XXIV (“A tendência histórica da acumulação capitalista”, item onde a “tendência histórica” é a revolução socialista), paradoxalmente, Marx foi obrigado depois a “desconstruir” o livro I, para justamente camuflar o conteúdo revolucionário do seu livro e do seu modo de exposição. Para escapar da censura (sobretudo, em certos países corno a Rússia czarista), como observa M. Rubel (Marx, Oeuvres de K. M. economie I, Pléiade, pp.1705-6), Marx termina o livro I com o capítulo XXV, “A teoria da moderna colonização” (que representaria ainda a “a primeira negação”) de forma a não terminar o livro com a “negação da negação”. Isto aponta também para refletirmos de corno talvez estão distantes da forma definitiva (e assim, também do conteúdo revolucionário definitivo)’os livros II e III publicados por Engels. De qualquer maneira, como já observei (cf. meu art. cit., p.40, nota 93) significativamente, o livro terrmina com o capítulo sobre as classes sociais. E em carta de 30/4/68, MEW-32, p.75) Marx anunciava a Engels que o livro III terminaria com a luta de classes, aquilo que faria “a dissolução de toda essa merda” (Alflösung der ganzen Scheisse), isto é, a dissolução do capitalismo. O próprio Engels escreve no prólogo do livro III: “Do último capítulo existe só o começo. Aqui deviam ser estudadas a três grandes formas de renda: renda da terra, lucro, trabalho assalariado, correspondentes às três grandes classes da sociedade capitalista desenvolvida – proprietários do solo, capitalistas e trabalhadores assalariados – e a luta de classes (Klassenkampf) dada necessariamente com a sua existência como o efeito resultado (Ergebnis) do período capitalista…” (MEW, 25, pp.14-15)
[8] cf. Althusser,”Commente lire le Capital”, in Positions, Paris, 1976; Marta Harnecker, O Capital: conceitos fundamentais, Global, São Paulo, 1978; F. J. S. Teixeira, Pensando com Marx: Uma leitura critico-comentada de O Capital, Ensaio, São Paulo, 1995. Teixeira, por exemplo, apesar de pretender estar “pensando com Marx”, sente necessidade de corrigir o modo de exposição do autor, e antes de entrar na análise da mercadoria e assim do capítulo I, sente necessidade de desenvolver toda uma teorização sobre o trabalho como categoria fundante da “sociabilidade humana”; ou seja, procura embasar “antropologicamente” e “ontologicamente” o modo de exposição de Marx e, para isto, é obrigado a “adiantar” toda uma série de partes do capítulo V (sobre o processo de trabalho) e de outros trechos do livro I.
[9] Que este é o resultado do livro I, fica bastante claro na continuidade da obra. Já no começo do livro 11, “O processo de circulação do capital”, Marx afirma: “A relação de classe (Klassenverhältnis) entre capitalista e trabalhador assalariado está portanto já presente, está já pressuposta (vorausgesetzt), no momento em que ambos de enfrentam no ato dinheirotrabalho ( T-D do lado do trabalhador).” (MEW, 24, p.37) Ou seja, o livro II de O Capital retoma novamente o processo de circulação, mas exatamente a partir do resultado do livro I, isto é, com os pressupostos (a produção, a história, a luta de classes) da circulação agora já postos (pelo livro 1).
[10] “Aparentemente”, pois, não me parece correio afirmar como Ruy Fausto que a luta de classes está “em inércia” em O Capital (cf. Marx. Lógica e política, São Paulo, Brasiliense, 1987). Mesmo no primeiro capítulo do livro I de O Capital, para Marx, a luta de classes está posta historicamente (pois antecede a própria redação do livro e todas as relações de mercado) e pressuposta teoricamente pelo autor.
[11] Neste sentido, o primeiro livro de O Capital,, em termos do seu desenvolvimento dialético, teria semelhanças também com a Fenomenologia do espírito de Hegel. Na Fenomenologia…. o desenvolvimento dialético parte do momento da consciência enquanto “certeza sensível”, desta se chega à consciência de si e finalmente à razão, figuras da teoria do conhecimento que, pouco a pouco, com as diversas experiências da consciência vão sendo superadas enquanto conteúdos definitivos e mostrando-se como abstrações de um conteúdo histórico, portanto, mais amplo e concreto. Isto fica claro quando se atinge o momento do espírito: “O espírito, escreve Hegel, é então a essência absoluta e real que se sustenta a si mesma. Todas as figuras anteriores da consciência são abstrações deste espírito. Elas são pelo fato de que o espírito se analisa, distingue seus próprios momentos e se retarda nos momentos singulares. Esta ação de isolar tais momentos pressupõe o espírito c subsiste nele; ou existe somente no espírito que é a existência. Estes momentos assim isolados parecem existir como tais, mas sua progressão e seu retorno no seu fundamento real e em sua essência revelam que eles são somente momentos ou grandezas que desaparecem, e esta essência é justamente este movimento e esta resolução de tais momentos.” (p.11, vol. II, trad. J. Hyppolite, ed. Aubier).
[12] Mais uma vez, lembramos: “aparentemente”, pois o “resultado”, a “conclusão” já está “entre parêntesis”, comopressuposto, no começo.
[13] cf. “Sobre a crítica (dialética) de O Capital”, pp.43.44.
[14] V. I. Lenin, Cahiers Philosophiques, Paris, Sociales, 1955; pp.71-202. Nestas páginas estão as anotações a respeito da ciência e da lógica da “pequena” lógica (contida na Enciclopédia de Hegel); Observe-se que Lenin ainda consultou vários comentadores sobre a Lógica de Hegel (p.370 e ss.); leu ainda as Lições de Hegel, tanto as da História da filosofia como as da filosofia da História Universal. Não existem, no entanto, as suas anotações sobre a fenomenologia do espírito.
[15] op. cit., p.201
[16] ibidem, p. 280.
[17] Sobre a relação entre ‘as teses de abril’ e as reflexões de Lenin a respeito da Lógica de Hegel e de O Capital, cf. Michael Löwy, “Da grande lógica de Hegel à estação finlandesa de Petrogrado”, in Método dialético e teoria política, Paz e Terra, SP, 1976. Foi sobretudo na teoria e prática partidária que Lenin parece ter expressado a leitura dialética de O Capital. Compreendeu e aplicou a questão do pressuposto e do posto na teoria dos níveis de organização e atuação: nível ilegal(vanguarda clandestina marxista), nível semi-legal (grevistas e setores que já entraram em luta contra a classe burguesa) e nível legal(setores contraditórios com a burguesia e com o czarismo). Cada um desses níveis correspondia a níveis de consciência diferentes de acordo com as experiências históricas realizadas até ali por cada um desses setores. A tarefa da vanguarda clandestina (como Marx, o autor de O Capital) seria apenas aquela de desencadear a “exposição” do princípio pressuposto do modo de produção capitalista( a violência originária e sua negação, a negação da negação) para os outros níveis de experiência e de consciência. Para Lenin, às vésperas da insurreição, as diferenças entre os níveis de consciência se dissolveram, ao menos momentaneamente, e o comitê central marxista, em certo sentido, devia apenas acompanhar o movimento final da insurreição popular. Para o líder bolchevique fundia-se em universal concreto a vanguarda marxista e a classe trabalhadora, esta então quase conduzindo aquela. Lenin, na época, tentando convencer o relutante comitê central da necessidade da insurreição escreveu: “O povo tem o direito e o dever de tratar de tais questões não por votos, mas pela força; o povo tem o direito e o dever, nos momentos críticos da revolução, de guiar seus representantes, mesmo os melhores, ao invés de esperar por eles.”(Oeuvres, 45 vol., Paris Moscou, I. 26, p.241)
[18] Em abril de 1917 foi realizada já a Iª Conferência dos Comitês de Fábrica, com 499 delegados presentes e em agosto realizava-se a 11ª Conferência. Em julho realizou-se em Moscou a Conferência dos Comitês de Fábrica da cidade com 682 delegados. [m 3 de junho realizou-se o 12 Congresso Pan-Russo dos Sovietes, reunindo 1.090 delegados que representavam cerca de 20 milhões de pessoas. (cf. o livro clássico de Oskar Anweiler, Die Rätebewegung in Russland 1905-1921, Brill, Leiden, Netherlands, 1958; trad. francesa, Gallimard,1972)
[19] cf. sobretudo capítulo XXII, primeiro item, Umschlag der Eigentumsgesetze…, p. 60S e seguintes.
[20] Quando o IIº Congresso dos Sovietes se reuniu em 25 de outubro de 1917, como se sabe, a sorte já estava lançada, o
poder burguês havia sido derrotado.
[21] Os teóricos da II Internacional, Kautski, Bernstein e seus seguidores jamais compreenderam nessa direção o desenvolvimento dialético de O Capital. Não compreenderam, sobretudo, como sob a análise da circulação (nível do mercado) se inscreve na teoria marxista, como pressuposto, já a luta de classes, o nível da produção, a análise da reprodução e da acumulação de capital. Pensavam o modo de exposição de Marx corno urna mera evolução da circulação à produção e acumulação. Nesse sentido, o programa da 11 Internacional sonhava também numa evolução do programa mínimo (mercado: negociação do contrato de trabalho) ao programa máximo (negação da negação). Jamais ocorreu essa evolução e a 11 Internacional permaneceu em um programa mínimo que expressava o defeito teórico de todas as leituras de O Capital que pensam a circulação e o mercado corno efetivo ponto de partida (sem pressupostos).
[22] É evidente que também o chamado “economicismo” (cuja expressão mais clássica foi a própria II Internacional) separa o econômico do político e a sua ênfase em reivindicações econômicas é apenas uma manifestação dessa separação. O economicismo rompe com o desenvolvimento dialético de O Capital, sobretudo, com a seção IV, ou seja, “A produção da mais-valia relativa”, pois, ao contrário de Marx, dá esperanças à classe trabalhadora de que o desenvolvimento tecnológico do capitalismo pode, de alguma forma, melhorar a situação da classe e que assim são possíveis conquistas econômicas parciais, mesmo no inteiror do capitalismo, enquanto se acumulam forças (em geral, eleitorais) para a grande vitória política (o socialismo). O economicismo jamais conduz assim a luta econômica corno sendo o próprio engendramento dialético do poder revolucionário. As suas reivindicações jamais se encadeiam como um sistema de contradições e jamais levantam contradições que sejam estruturais. Ilude-se a classe com pequenas “vitórias” localizadas, mas o que se ganha numa luta se perde dourado em maior ou menor espaço de tempo.
[23] Manifestes, Theses et résolutions eles quatre premiers congrès mondiaux de l’Internationale Communiste 1919-1923, Bibliothèque Communiste, Librairie du Travail, 1934, reedition en fac-simile, François Maspero, Paris, 1975
[24] cf. Isaac Deutscher, Trotski, o profeta desarmado , ed. Civilização Brasileira, 1968: “Trotski apresentou o ‘Relatório sobre a crise mundial e as tarefas da Internacional’ na segunda seção do Congresso, em 23 de junho de 1921.”(1′.73, nota 76)
[25] ed. cit., p.92
[26] ibidem, p. 93
[27] ibidem, p. 93
[28] Rádek apresentava a tese sobre a tática, substituindo a Zinoviev que se inclinava então para a oposição “ultra-esquerdista”. Corno fica claro por certos trechos da tese, parece que os “ultraesquerdistas”, não compreendendo a dialética da nova tática, viam na proposta urna adaptação ao reformismo socialdemocrata. Lenin começara a desenvolver a “nova” tática já em 1920 no Esquerdismo, doença infantil do comunismo, a crítica aos ultra-esquerdistas, no entanto, tornou-se mais premente depois da revolta alemã de março de 1921. Corno observa Deutscher (op. cit., p.74): “Foi então que Lenin apresentou propostas de urna nova política à Executiva da Internacional. Encontrou forte oposição de Zinoviev, Bukharin, Bela Kun e outros. (…) Somente depois de animados debates, no curso dos quais Lenin e Trotski enfrentaram juntos a oposição, a Executiva foi persuadida a autorizar a política de ‘fortalecimento’ e a instruir tanto Lenin corno Trotski para que a defendessem perante o próximo Congresso da Internacional”.
[29] op. cit., p.95
[30] ibidem
[31] cf. pp.95-96.
[32] cf. pp 96.
[33] Este é o título do iem 5 da tese sobre a tática, p.99.
[34] ibidem, p. 99.
[35] pp. 99-100
[36] p.100
[37] ibidem.
[38] ibidem
[39] p.101
[40] p.165
[41] ibidem
[42] p.1 65: “O IV congresso se pronuncia totalmente e de maneira resoluta contra a tentativa de representar a introdução de reivindicações transitórias no programa como oportunismo, corno também, contra toda tentativa de atenuar ou de substituir os objetivos revolucionários fundamentais por reivindicações parciais.”.
[43] ibidem.
[44] Inclusive na própria Resolução sobre o programa do IV Congresso da IC, item 2, observa-se que os novos desenvolvimentos de programa deviam ser enviados ao Comitê Executivo da IC, “no máximo, três meses antes do V Congresso rara ratificação.” (p.165)
[45] Disse Zinoviev: “Diante do V Congresso se deve colocar o problema do programa da IC (…). Há dois nomes que são a expressão perfeita deste programa: Marx e Lenin.” (V Congresso da IC, Buenos Aires, rasado y Presente, Siglo XXI, Argentina, 1975, I, p.34)
[46] cf. Zinoviev , “Tese sobre a bolchevização dos partidos da Internacional Comunista adota das pelo V plenário ampliado do Executivo da IC” , in V Congresso da IC, ed. cit., 11, pp.183-211.
[47] ibidem, I, p.66. Tal foi a guinada à “esquerda” que a “ultra-esquerda”, representada neste congresso sobretudo por Amadeo Bordiga, considerará a resolução sobre a tática deste congresso um avanço em relação ao IV Congresso. Assim se pronunciou Bordiga a respeito da tese sobre tática: “A esquerda italiana, ainda quando sem estar de acordo votará o projeto Zinoviev, porque este marca um progresso em relação às resoluções do IV Congresso. As reservas recaem unicamente, além disso, sobre certas formulações da frente única, do governo operário e alguns assuntos secundários. “(ibidem, I, p.411)
[48] Ainda que de passagem, apenas nas discussões e não nas resoluções, alguns, corno Bukharin e Thalheimer, todavia usem o termo “reivindicações transitórias”; para Bukharin, ibidem, I, p.209; para Thalheimer, ibidem, I, p.251.
[49] ibidem, I, p.68.
[50] ibidem, 11, p.19ú. A citação faz parte do item intitulado “A bolchevização e as reivindicações parciais”(pp.195-196)
[51] ibidem, 11, pp. 40-64.
[52] ibidem, p. 57.
[53] Lenin tinha absoluta clareza deste percurso (geral [pressuposto] – particular – geral [posto] ) e isto era uma das divergências fundamentais que se manifestava entre ele e outros dirigentes na própria elaboração pauta das reuniões. Alguns queriam partir das questões ditas “concretas” e Lenin sempre das questões gerais ditas “abstratas”. Como recorda Trotski (in Em defesa do marxismo, São Paulo, Proposta, p.l02) : “os períodos anteriores aos congressos (pré-congressos) e os próprios congressos, se caracterizavam, invariavelmente, por uma amarga luta contra a ordem do dia. Lenin tinha o costume de propor como primeiro ponto da ordem do dia questões como a clarificação da natureza da monarquia czarista, a análise do caráter de classe da revolução, a análise das etapas da revolução, etc. Martov e Dan, líderes mencheviques, quase sempre objetavam: não somos um clube sociológico, mas um partido político; devemos chegar a um acordo não sobre a natureza de classe da economia czarista, mas sobre ‘as tarefas políticas concretas’. (…) Poderia acrescentar”, escreve ainda Trotski, “que eu, pessoalmente, cometi não poucos pecados neste aspecto. Porém, a partir de então, aprendi algo. Àqueles enamorados das ‘questões políticas concretas’, Lenin sempre explicava que nossa política não era conjuntural, mas de caráter principista; que a tática está subordinada à estratégia.” Portanto, continua Trotski, se para Lenin “o interesse fundamental de toda campanha política consistia I’m guiar os trabalhadores até as questões gerais, partindo das particularidades”, este processo e percurso, sustentava Lenin, é ensinado aos trabalhadores “pela natureza da sociedade moderna e pelo caráter de suas forças fundamentais “. Portanto, “a sociedade moderna”, “as suas forças fundamentais”, em outras palavras, “o geral” (posto como pressuposto) eram para Lenin o verdadeiro ponto de partida e portanto o primeiro ponto de pauta nas reuniões da direção e vanguarda revolucionárias. Cabe aqui ainda observar que, evidentemente, o “concreto” para Lenin ( como para Marx: “O concreto, é concreto porque ele é a aglutinação [Zusammnefassung] de múltiplas determinações” in “O método da economia política”) não era portanto o que os outros chamavam de “concreto”, ou seja, uma situação imediata.
[54] Do ultra-esquerdismo de 192-25, desenvolvido pela tática do V Congresso, passou-se à linha quase social-democrata de 192-27 (aliança com o Kuomintang, comitê anglo-soviético), política que levou, sobretudo, ao massacre dos comunistas chineses em 1927; no VI Congresso, reunido somente em 1928, voltou-se ao ultra-esquerdismo, desenvolveu-se a teoria do “terceiro período” (período de radicalização, limitação da frente única às bases), esta tática impediu a política de frente única com a social-democracia alemã (caracterizada então como “social.fascista”) e abriu o caminho para a ascensão de Hitler na Alemanha em 1933, erro tático que levou ao massacre do PC alemão; em 1934 retorna-se a uma linha direitista, defende-se a tática de frente popular, política teorizada no VII e último Congresso da IC, que se reuniu em 1935. Como se sabe, em 1943, por fim, vencendo de maneira definitiva a adaptação ao particular, a Internacional foi melancolicamente dissolvida e sem congresso. No seu lugar, em setembro de 1947, criou-se o Kominform, Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Sobre o Kominfom1 escreveu Fernando Claudín: “Da noite para o dia, o movimento comunista se viu a braços comum novo centro dirigente, sem ter participado da sua criação. Tudo se resolveu numa reunião secreta – celebrada na Polônia, em setembro de 1947 – de representantes dos nove partidos que, por vontade de Stalin, deveriam formar o novo organismo (…)Nem sequer os órgãos centrais destes partidos haviam discutido previamente as questões que se trataram na reunião(…)”(A crise do movimento comunista, vol.II, p.337, São Paulo, Global, 1986).
[55] op. cit., I, p.383.
[56] ibidem, p.384.
[57] ibidem, p.387.
[58] De um lado, com raras exceções, desenvolveu-se largamente um “marxismo” prático vulgar, não dialético, que levou os trabalhadores à série de derrotas deste século, e de outro lado, um “marxismo” teoricista, que sem desembocar em prática alguma (e nesse sentido, também não-dialético, apesar de muitas vezes “filosófico”) esgotou-se da mesma forma que o primeiro. A própria existência desse abismo entre um marxismo vulgar-prático e um marxismo-teoricista sem qualquer prática, no entanto, poderia ser pensada como tendo na raiz a própria interrupção do desenvolvimento da teoria de programa, isto é, da interrupção do modo efetivo de exposição da teoria marxista. Entre as louváveis e vitoriosas exceções, sem dúvida, estão Mao Tsé-tung e o PCC que, como.se sabe, desde janeiro de 1935 claramente se rebelaram contra as orientações da Internacional Comunista, Passando a formular desde então, brilhantemente, a especificidade dialética da sua própria tática (cf. F.. Claudin, op. cit., I, p.247; Ju Chiao-Mu, Treinta años del partido comunista de China, Pequim, 1957, pp.52-53; sobre as reflexões de Mao a respeito da dialética, cf. “Sobre a contradição”, escrito de agosto de 1937, onde inclusive Mao comenta as anotações de Lenin sobre a “lógica dialética” de O Capital.
[59] cf. introdução de E.H. Carr à ed. cit. do V Congresso, I, pp. 26-27.
[60] Ambos, Rádek e Trotski não foram eleitos para o novo Comitê Executivo da IC. Durante todo o Congresso, a única participação de Trotski nos trabalhos foi a elaboração de um manifesto apenas rememorativo sobre o aniversário de dez anos da Primeira Guerra. (cf idem, ibidem).
[61] Deutscher, Trotski, O profeta banido, São Paulo, Civilização Brasileira, 1968, p. 82.
[62] cf. Trotski, L’’Internationale Communiste aprés Lénine, Paris, PUF, 1969.
[63] Sobre a catastrófica e suicida política do PC alemão e da IC diante da ascensão do nazismo, escreveu N. Poulantzas: “O que nos surpreende, após os acontecimentos, é a cegueira absolutamente espantosa que demonstraram os dirigentes comunistas.” (Fascismo y dictadura: la tercera internacional frente ao fascismo, México, Siglo XXI, 1971, p. 63). Embora fazendo ressalvas a Trotski, observou ainda Poulantzas: “é necessário reconhecer a Trotski o que lhe é devido. Colocou notavelmente de maneira clara elementos importantes do fascismo: entre outros, sua relação com a classe operária c com a pequeno burguesia. Por outro lado, foi quase o Único que previu, de maneira espantosa, o desenvolvimento do processo na Alemanha.”(op. cit., p.(3). A reunião dos escritos de Trotski sobre a Alemanha encontra-se em, L. Trotski, Revolução e contra-revolução na Alemanha, São Paulo, Unitas, 1933.
[64] Trolski, Oeuvres, 2, julho de 1933 – outubro de 1933, Institut Léon Trotski, Paris, EDI, 1978, pp.159- 160 (artigo intitulado “La Conference de Paris, un solide noyau por une nouvelle internationale”, 1/9/33)
[65] idem, ibidem, p.160.
[66] Citaremos o texto a partir de: A questão do programa, São Paulo, Kairós, 1979; propriamente o texto” A agonia do capitalismo e as tarefas da IV Internacional – programa de transição” encontra-se nas páginas 69-119 dessa edição.
[67] op. cil., p.76
[68] ibidem
[69] ibidem.
[70] ibidem.
[71] ibidem.
[72] ibidem.
[73] ibidem.
[74] ibidem, pp. 77-78.
[75] ibidem, p. 78.
[76] Como afirma Marx, a carestia excessiva dos produtos de primeira necessidade não,é algo passageiro, mas “muito mais um principio (vielmehr Prinzip)” do capitalismo e “o melhor sistema para submeter o trabalhador assalariado” O Capital, I, ed. cit., p.784). No entanto, sobretudo, após a hiperinflação alemã de 1923 (cf. Constantino Bresciani- Turroni, The economics of inflation -A study of currency depreciation in post-war Germany 1914-1932,24 ed.,Londres, 1953) e a chinesa de 1949 (desembocando na entrada dos comunistas em Pequim), os governos capitalistas e seus economistas sempre temem o surgimento de situações de hiperinflação e sempre criaram “soluções” para combater momentos inflacionários mais agudos. Em 1924, adotou-se o Plano Dawes na Alemanha; após a crise de 29, diversos planos de “recuperação” foram aplicados em toda parte; por exemplo, na própria Alemanha, em 1930, aplicou-se o Plano Young que desembocou em um desemprego altíssimo , já na década de 60 e 70, sobretudo na América latina, governos militares aplicavam os chamados “choques ortodoxos”: proibição de greves, congelamento dos salários, controle seletivo de preços (M. H. Simonsen, Inflação: gradualismo versus tratamento de choque, Rio de janeiro, APEC, 1970); na década de 80, vieram os “choques heterodoxos”, o “Austral” na Argentina( junho /1985), um similar em julho/1985 em Israel e o “Cruzado” no Brasil em fevereiro de 198& (Persio Arida, org. , Brasil, A’8entina, Israel, inflação zero, Rio de Janeiro,Paz e Terra, 198&). Finalmente, na década de 90, vieram os planos de “modernização” e “adaptação” à economia “globalizada”, e em toda a América latina comemora-se o “fim” da inflação. No entanto, para o proletariado, invariavelmente, as conseqü.ncias são catastróficas. Sobre o caso México, escreveu F. Chesnais: “O ano de 1995 registrou uma queda de 5% no PIB e uma taxa de inflação de quase 50%. O desemprego alcançou 25% da população ativa, enquanto os salários sofreram uma perda de poder aquisitivo da ordem de 55%, e mais dois milhões e meio de pessoas caíram abaixo do limite de ‘pobreza extrema/. “(A mundialização do capital, São Paulo, Xamã, 1996). Segundo relatório da OIT, o desemprego na América latina vem crescendo de maneira acelerada desde 1993 (justamente, após os planos), na Argentina, por exemplo, atingiu 17,1 % em 199& (jornal O Estado de S. Paulo, 16/1/97).
[77] Programa de transição, p. 78. Apesar desta reivindicação estar hoje presente (mas, “engavetada”) no programa de muitos sindicatos, em geral, os líderes sindicais e partidos ditos de “esquerda” sempre acabam sendo “seduzidos” pelos planos de “estabilização” capitalista. Observe-se também que a escala móvel de salários, quando adotada pelos sindicatos ( ou mesmo aceita por alguns governos capitalistas), em geral, ocorre sob uma forma “modificada”. Trata-se de um “gatilho” que dispara somente quando a inflação atinge um determinado patamar.
[78] ibidem. Já as Resoluções cio I Congresso ela Associação Internacional cios Trabalhadores (redigidas em parte por Marx) colocam como fundamental a “limitação legal da jornada de trabalho” e fazem desta luta “o estandarte comum de todas as reivindicações da classe trabalhadora do universo” (Marx, Oeuvres Économie, I, Paris, Pléiade, p.1466). Hoje, os sindicatos, em geral, costumam apenas fazer urna propaganda a respeito da redução das horas de trabalho e as reduções, quando obtidas, são relativamente insignificantes, não afetando substancialmente o desemprego estrutural. Por outro lado, a “terceirização” e as conseqüentes “contratações” precárias, conduzem a jornadas de trabalho cada vez mais longas.
[79] cf. livro I, nas seções 3., 4. e 5., onde analisa a produção da mais-valia absoluta e relativa e, conseqüentemente, a luta pela redução das horas de trabalho; na seção 6., por outro lado, analisa o salário e, conseqüentemente, as lutas salariais.
[80] cf. Marx, O Capital, livro I, seção 1. e 2., sobretudo, capítulo IV, “A transformação do dinheiro em capital”.
[81] Nas últimas décadas, estas reivindicações apareceram como “mínimas”, mesmo para a maioria dos trotskistas (dos diversos agrupamentos internacionais), pois durante todo o Último período de inflação da economia brasileira, que em 1979/80 já chegava a 100%, os militantes trotskistas propunham nas campanhas salariais brasileiras sempre índices de reajuste bem acima da própria inflação. Para eles, pedir somente escala móvel de salários parecia pouco(!!) e seria ficar atrás dos índices de reajuste proposto pelas burocracias sindicais. Espantosamente, não compreendiam o caráter transitório das escalas móveis.
[82] Sobre essa mobilidade do capital, já escrevia Marx:”Muito capital que hoje comparece nos Estados Unidos sem certidão de nascimento, é sangue de criança [Kinderblut] recentemente capitalizado na Inglaterra.”O Capital, I, cap. XXIV, ed. cit., p.784). Hoje, escreve F. Chesnais referindo-se à atual mobilidade das empresas multinacionais: Nessa mobilidade tende necessariamente a limitar a eficácia de medidas como a redução do tempo de trabalho, se não puderem ser impostas às empresas por toda parte – ou, pelo menos, nos principais países – onde estas sejam suscetíveis de se localizarem. (Mundialização do capital, São Paulo, Xamã, 1996). Realmente, na Indonésia ou Bangladesh, em empresas como Nike e Sears, trabalha-se cerca de 60 horas por semana, e isto por um salário mensal de US$ 30 a US$ 40 (dados citados por Ricardo Antunes, in Folha de S. Paulo, caderno Mais”, 14/7/ 94). Mas, por isto mesmo, este programa é proposto para uma Internacional.
[83] O caráter irrealizável da combinação das duas escalas vale tanto para o grande período de crise das décadas de 20 e 30 (período entre as duas Grandes Guerras), como, evidentemente, para o período pósguerra e para hoje: segundo o Fórum Econômico de Davos, na Suiça, realizado 1996, estima-se que existam atualmente no mundo 800 milhões de desempregados. Em países como o Brasil, os números são claros: segundo dados da CNI (Confederação Nacional da Indústria), divulgados em janeiro de 1997, as horas trabalhadas na produção caíram no Último ano 9,42% em relação ao ano anterior. Para citar dados da indústria paulista (Depea-Fiesp), de maio de 1995 até rim de 1996, somente em São Paulo a mão-deobra industrial foi reduzida em 315.643 vagas em um universo de cerca de 2 milhões de trabalhadores.
[84] Por isso mesmo, a maioria das organizações trotskistas, desde os anos 50, quase sempre “ultraesquerdistas”, dificilmente aplicam o programa de transição. O programa de transição, em geral, aparece somente nos estatutos dessas organizações e não tem quase função em suas práticas, em geral, de extrema esquerda. Sobre a história do movimento trotskista pós-guerra cf. Trotskiism versus revisionism. A documentary history, Londres, New Park Publications, 1973 e ss., 6 volumes (ampla documentação, mas sob a perspectiva da corrente inglesa ‘healyista’); para a América Latina, cf. O. Coggiola, O trotskismo na América Latina, São Paulo, Brasiliense, 19R4.
[85] Programa de transição, pp. 79-81
[86] No período em que viveu no México, são particularmente freqüentes as discussões de Trotski com os membros do SWP (seção americana da IV Internacional), cf. L. Trotski, Escritos, particularmente, tomo IX, X e XI (1937-1940), Bogotá, Pluma, 1979.
[87] Nas resoluções da I Internacional afirma-se que o objetivo imediato dos sindicatos, desde a sua origem, era voltado “para as necessidades das lutas cotidianas, voltado contra a usurpação constante do capital, em urna palavra, voltado para as questões de salário e das horas de trabalho. Esta atividade não é somente legítima, ela é necessária. Não se pode renunciar a esta atividade, enquanto o sistema atual permaneça.”(Marx, Oeuvres – Économie, I, Paris, Pléiade, p. 1470).
[88] Observe-se que toda campanha salarial de qualquer categoria profissional de trabalhadores assalariados coloca na ordem do dia a discussão das escalas móveis. Inclusive as escalas móveis, pela sua capacidade de conter universalmente as particularidades, permitem unificar campanhas salariais dos mais diversos sindicatos, das mais diversas categorias, tanto em nível nacional corno internacional. A escala móvel de salários, por exemplo, supera as diferenças de índice de reajuste salarial existentes a partir das diferentes datas de dissídio e das diversas categorias profissionais. Potencialmente, todas as “campanhas sindicais” e todos os dissídios coletivos poderiam ser unificados, em nível mundial, por essas duas reivindicações transitórias.
[89] Programa de transição, p. 80. Aqui mais uma vez se percebe a distância entre a prática de certas organizações trotskistas e o programa de transição. Por exemplo, em 1979/80, no Brasil, a OSI (organização brasileira ligada à OCl francesa) propunha a fundação dos “sindicatos livres”, ou seja, “sindicatos paralelos”, fazendo inclusive a agitação de uma “Conferência Nacional pelos Sindicatos- Livres” (cf. revista da 051, A luta de classe, nº2: setembro de 79, pp.30-31)
[90] ibidem. Essa concepção teórica de sindicatos substituindo o partido político impera sobretudo nos “anarco-sindicalistas” .
[91] pp.81-82
[92] Marx ao terminar o cap. IV, abandonando a esfera da circulação, e se preparando para entrar na produção (Cap. V), escrevia que agora íamos para “o lugar secreto da produção [verborgne Stätte der Produktion]” (ed. Cit., p. 189), isto é, a fábrica, somente aqui será revelado finalmente “o segredo [Geheimnis] da mais-valia (ibidem)”. Analogicamente, somente aqui será revelado o “segredo” transitório das escalas móveis.
[93] Marx, O Capital, p.249.
[94] p.82. É evidente, nesse sentido, que as hoje existentes “comissões sindicais de fábrica” possuem outro caráter. Essas comissões ainda que, muitas vezes, importantes na luta dos trabalhadores, evidentemente, não possuem a dualidade de poder transitória, estas são comissões institucionalizadas. Nas fábricas metalúrgicas de São Paulo, como se sabe, nos últimos anos, existiram muitas comissões de fábricas “permanentes”.
[95] O novo item do programa se intitula justamente: “o ‘segredo comercial’ e o controle operário sobre a indústria (pp.82-850”.
[96] Polemizando com Thalheimer, ainda antes do desastre político da Alemanha, explicava Trotski a respeito do momento correto de lançar a palavra de ordem do “controle operário”: “O controle pode ser muito ativo, autoritário e geral. Mas continua sempre controle. A própria idéia desta palavra de ordem nasceu do regime transitório nas empresas onde o capitalista e seu administrador já não podem dar um passo sem o consentimento dos operários; mas onde também, por outro lado, os operários ainda não criaram as premissas políticas para a expropriação, ainda não adquiriram a técnica da direção, ainda não criaram os órgãos para tanto necessário [grifos nossos] (Revolução e contra-revolução na Alemanha, ed. cit., p.316)”. Thalheimer, coerente com seu “ultra-esquerdismo” de então, defendia, sem mediações, já a palavra de ordem “direção operária”, isto significava já “igualdade de direitos com os patrões”. Os acontecimentos da Alemanha em 1933 demonstraram que Thalheimer estava realmente enganado, os operários ainda não tinham condições de dirigir a economia. Mas, sobretudo este texto de Trotski é aqui importante pois mostra como ele compreendia a necessidade de lançar cada palavra de ordem do programa em um determinado e preciso momento do processo transitório.
[97] Programa de transição, p.84
[98] O Capital, livro I, Cap. XXII
[99] Estas primeiras expropriações não possuem ainda um caráter propriamente revolucionário, e podem começar por empresas em má situação financeira que passam para o controle operário. O próprio Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos) possui hoje um programa voltado nessa direção e diversas empresas vem passando para o controle operário, por exemplo, a Cobertores Paraiba situada em São José dos Campos.
[100] Programa de transição, p.85
[101] Programa de transição, p.85
[102] ibidem. Este ponto, evidentemente, é fundamental para construir a aliança com todos os setores possíveis da pequena burguesia urbana e rural. Já as Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha (1848), colocava: “10 – Todos os bancos privados são substituídos por um banco do Estado C…) Esta medida permite de regular no interesse de todo o povo o sistema de crédito e destrói também a dominação dos grandes banqueiros.” (Marx, Oeuvres – économie, I, ed. cit., p.1461). Corno se vê, o Programa de transição (corno O Capital) apenas ordena dialeticamente, reivindicações históricas desenvolvidas pelo próprio movimento operário.
[103] pp..87-89
[104] p. 88
[105] p.89. Como se vê, as propostas de “luta annada” e “guerrilha” impulsionadas pelo SU (Secretariado Unificado da IV Internacional) na década de 70, sobretudo, a partir do seu IX Congresso (1969), não coincidem com o Programa de transição. Sob o impressionismo da Revolução Cubana e da guerrilha vietnamita, naquele momento, o SU afastou-se das propostas do Programa. A mais significativa e bem sucedida experiência guerrilheira dos trotskistas foi a do PRT-Santucho que criou o ERP na Argentina. No entanto, segundo o. Coggiola, após maio de 68, o SU chegou a propor a luta armada na França, baseando-se nas supostas “tradições de luta armada do campesinato francês” (cf. o. Coggiola, op. cit., p.70)
[106] pp.89-92
[107] Também aqui retomam-se reivindicações históricas do movimento operário. Em 1868, a I’ Internacional, em relatório redigido por César De Paepe já defendia a nacionalização da terra. Marx apoiava a resolução que recebeu objeções dos proudonianos.(d. “la nationalisation de la terre” in Marx, Oeuvres – Économie, I, ed. cit., pp.1473-1479).
[108] p.91
[109] ibidem.
[110] pp.97-100. Afirma-se que aqui o sentido desta palavra-de-ordem é aquele que teve entre os bolcheviques em 1917.
[111] pp. 100-102
[112] p. 101.
[113] ibidem.
[114] pp. 101-102
[115] Muitas organizações trotskistas, no entanto, não compreendem o Programa de transição corno um processo. Não percebem que existe urna “ordem” dialética nas palavras de ordem. Por isso mesmo jamais conseguiram aplicar este programa; quando tentam, jogam as palavras corno um “amontoado” sobre a realidade, ou as repetem insistentemente e fora de hora: “greve geral!” ,”expropriação dos bancos!”, etc.. Nesse sentido, Trotski claramente observou contra o “ultra-esquerdismo” do PC alemão: “Sem uma larga campanha contra a vida cara, pela redução da semana de trabalho, contra a diminuição dos salários; sem se ler arrastado a esta luta os desempregados de mãos dadas aos operários que trabalham; sem a aplicação, coroada de sucesso, dd política de frente Única, as pequenas greves improvisadas não farão o movimento desaguar na grande via.”(Revolução e contra-revolução na Alemanha, ed. cit. p.306) Da mesma forma critica a direção comunista a respeito da agitação permanente da greve geral corno se ela fosse “um meio universal” (cf. ibidem, p.307). Em relação à palavra de ordem “controle operário”, polemizando ainda com o PC alemão, que agitava essa reivindicação, há muito tempo e fora de hora, comenta: “Na realidade, só fazem revelar sua incompreensão completa da dialética revolucionária de que é impregnada a palavra de ordem do controle operário, que os brandlerianos reduzem a urna receita técnica para a ‘mobilização das massas’ “. (ibidem , p.315) Acrescenta Trotski que quando chega a hora de realmente aplicar a referida reivindicação, os “ultra-esquerdistas” se vangloriam de que eles levantaram essa reivindicação primeiro, e comenta ainda : “O pica-pau que durante toda a sua vida bate com o bico no castanheiro, também pensa, sem dúvida, no seu foro interior que o lenhador que abateu a árvore a golpes de machado não fez senão plagiá-lo criminosamente.” (ibidem, p.316)
[116] Como observou bem R. Rosdolsky, Trotski se caracterizava por fazer as suas análises “políticas” embasadas dialeticamente nas análises “econômicas” de O Capital. Nesse sentido, Rosdolsky lembra urna longa passagem de A revolução traída, em que Trotski, a partir do “fetichismo da mercadoria”de Marx, faz um paralelo entre o fetichismo da forma dinheiro e o fetichismo do Estado. (cf. R. Rosdolsky, Genesis y estructura de EI Capital de Marx, México, Siglo XXI, México, 5ª ed., 1986, pp.l 61-162, nota 82). Porém de maneira mais clara escreve ainda o próprio Trotski a respeito do programa : “é impossível esquecer que não se pode esperar ver realizar as normas programáticas senão se estas representam a expressão generalizada das tendências progressivas do próprio processo objetivo (grifos nossos).”(L. Trotski, Em defesa do marxismo, Proposta Editorial, São Paulo, pp.233-234).Ora, como dissera crítico citado pelo próprio Marx, O Capital precisamente pretendia apreender “a lei da transformação e desenvolvimento, isto é, a transição [Übergang] de uma forma para outra, de um ordenamento de concatenações a outro.” (posfácio da 2ª ed., ed. cit., p.26 )
[117] Algumas tentativas foram feitas. Por exemplo, J. Hansen, “O programa de transição de Trotski: suas origens e sua importância atual”; e G. Novack, “O papel do programa no processo revolucionário” (ambos os textos in The transitional program (or socialist revolulion, Pathfinder Press, New Vork, 1973.) Esta obra, apesar de conter algumas observações interessantes sobre a história do Programa de transição, sobre a sua relação com os primeiros congressos da I C, não se aprofunda teoricamente na noção de reivindicações transitórias, nem nos aspectos dialéticos do programa, nem na sua possível relação com O Capital. Novack, sobretudo, expressando grande empirismo metodológico, pretende “desenvolver” o Programa de transição e sente a necessidade de criar uma série de novas reivindicações “transitórias”: para as mulheres, para os presidiários, etc.
[118] Escrevia Burnham em 21 de maio de 1940: “rejeito a ‘filosofia do marxismo’, o materialismo dialético (…) A teoria geral marxista de ‘história universal’, em sua amplitude, não possui qualquer conteúdo empírico, e me parece desprovida da moderna investigação histórica e antropológica. “E, mais adiante, ainda acrescenta claramente Burnham: “O documento do ‘Programa de transição’ me parece – por mais bonito que ele seja, quando foi apresentado pela primeira vez – mais ou menos, de completo não senso, e um exemplo chave da incapacidade do marxismo para trabalhar a história contemporânea, mesmo nas mãos dos seus mais brilhantes representantes.” (carta reproduzida in Em defesa do marxismo, ed. cit., pp. 237-.238)
[119] Este debate teórico parece-me importante e possível, porque, como o próprio Trotski afirmou diversas vezes em seus Escritos, jamais considerou o Programa de transição como um programa fechado ou acabado. Tanto na instância da estratégia como da tática, especificidades nacionais e conjunturais sempre existirão (como o demonstraram os diversos processos revolucionários deste século) e exigirão determinações e reivindicações particulares, mas isto, inclusive, é observado no próprio Programa. Após o chamado sistema de reivindicações transitórias, o próprio Programa ele transição coloca algumas das determinações regionais e conjunturais então, naquele período, necessárias: “Os países atrasados e o programa das reivindicações transitórias”(pp.l 02- 1 04); “O programa de reivindicações transitórias nos países fascistas” (pp.l 04-1 07);” A União Soviética e as tarefas da época de transição” (pp.l 08-112); e depois acrescentam-se mais alguns itens também conjunturais. No entanto, embora reconhecendo a existência de especificidades e particularidades, seria por isso impossível toda tentativa de criar um “teoria geral da tática” ? Não seria possível também ao nível da tática a relativa superação do empirismo? Parece-nos que na direção dessa importante tentativa teórica aponta o Programa de transição.