Transição Socialista

“Esquerda” exige o que burgueses peronistas já fazem na Argentina

A pandemia de coronavírus agravou a brutal crise econômica que já assolava o país, com forte queda de salários, aumento das demissões e da desocupação. Segundo o IBGE, o percentual de pessoas ocupadas na população em idade de trabalhar chegou a 49,5% no trimestre encerrado em maio, queda de cinco pontos percentuais em relação ao trimestre encerrado em fevereiro. Esse é o nível mais baixo de ocupação registrado desde o início da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), em 2012. O agravamento da crise econômica só torna mais urgente que a vanguarda se arme com o programa revolucionário (veja sobre isso, aqui1). Entretanto, a confusão programática continua reinando mesmo em setores da chamada esquerda, que, em meio à crise, tem defendido que o governo deve fazer um “decreto” garantindo a estabilidade no emprego e proibindo demissões..

O que explica tal linha é uma lógica de atuação política por “exigência e denúncia”, onde se reivindica do Estado burguês demandas que ele, supostamente, seria incapaz de atender… Acontece que na Argentina os peronistas atenderam às reivindicações de “proibição de demissões”, e aos poucos começa a ficar evidente a furada política que isso significa para a esquerda revolucionária e a classe trabalhadora.

Se passa com a “esquerda” brasileira um tipo de provincianismo que passava também com os “revolucionários” alemães da época de Marx, os quais ele zombava, afirmando que o que exigiam já estava realizado em outros países capitalistas:

“Tais reivindicações não passam de exageros fantasiosos da imaginação, e já estão realizadas. Acontece que o Estado que as pôs em prática não se encontra dentro das fronteiras do Império alemão, mas na Suíça, nos Estados Unidos etc.”
(Crítica ao Programa de Gotha, de 1875)

Delegando tarefas ao Estado burguês – o caso argentino

O governo de Alberto Fernández, atual presidente peronista da Argentina, fez literalmente a “esquerda” brasileira defende: decretou estabilidade no emprego, proibiu demissões e ajudou o pequeno negócio (as PyMEs, como são chamadas as pequenas e médias empresas na Argentina). O decreto 329/2020 de 31 de março de 2020 proibiu demissões sem justa causa, por conta de falta ou diminuição de trabalho ou força maior, pelo prazo de 60 dias, tendo sido prorrogado por 60 dias adicionais pelo decreto 487/2020 e o governo também facilitou o acesso ao crédito para as PyMEs (veja aqui2). A medida não impediu que a Latam Argentina, na esteira do colapso global das companhias aéreas por conta do COVID-19, fechasse, deixando 1715 trabalhadores desempregados. Alberto Fernández alcançou impressionantes 80% de popularidade no fim de maio, em parte por medidas mais razoáveis (se comparadas às de Bolsonaro) frente à pandemia, em parte devido às medidas contra demissões.

Mas a lei do valor é mais forte do que qualquer decreto. Com a palavra, Karl Marx: “As relações econômicas são reguladas por conceitos jurídicos ou, ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações econômicas?” (também na Crítica ao Programa de Gotha)

O que aconteceu na LATAM é uma prévia modesta do que ocorrerá dentro em breve com o restante dos trabalhadores argentinos: é uma questão de tempo até as medidas de restrição serem necessariamente afrouxadas e, com isso, as demissões começarem a acontecer em massa.

Tais demissões necessariamente virão e a classe trabalhadora argentina estará despreparada para enfrentá-las, pois lá – como ocorre com o oportunismo aqui – a esquerda depositou suas esperanças de salvação pelo Estado burguês. Uma vez mais, repetimos, com base em Marx: o Estado é um parasita que suga as forças e energias da sociedade; quanto mais se deposita nele, mais se tira da vida social. Assim, quanto mais a esquerda inculca na cabeça das massas que um salvador de cima virá, mais ela desarma a classe para resistir de verdade no local de trabalho.

Ao defender a mesma medida que o governo executa – e que não impedirá as demissões –, a esquerda argentina fracassará conjuntamente com o governo. As leis gerais da acumulação capitalista é que mandam no Estado e no governo argentino, e não o contrário!

A desmoralização da esquerda “revolucionária” é grave pois na mesma medida em que ela se enfraquece fortalecem-se os oportunistas, agentes burgueses no seio do movimento dos trabalhadores. Não é coincidência que, no Brasil, a CUT tenha reivindicado que o governo federal brasileiro adote as medidas que o argentino vem adotando (veja aqui)3.

Não cabe à esquerda que se pretende revolucionária reproduzir a política do oportunismo sindical argentino e brasileiro, mas traçar um outro caminho, com um programa que efetivamente aponte para a resolução do problema do salário e do emprego.

A classe trabalhadora – e não Estado! – é o sujeito revolucionário

O verdadeiro programa contra a crise é que está presente no Programa de Transição, escrito em 1938 por Trotsky, absorvendo a experiência dos bolcheviques em toda a primeira metade do século XX (veja nossa leitura desse programa, aqui 4). Tal programa, infelizmente, foi abandonado pelos “trotskistas” já no começo da década de 1950, os quais se adaptaram às reivindicações usuais da social-democracia, do sindicalismo e do reformismo.

O fundamental é erguer um programa que apareça como mínimo, factível e possível para a ampla maioria da população trabalhadora, mas que seja já (em essência) máximo, ou seja, que toque diretamente no problema da exploração (na extração de mais-valia) e trave as leis gerais de acumulação capitalista. Nenhum programa meramente estatista e sindicalista é capaz de fazer isso.

As reivindicações iniciais do Programa de Transição são as fundamentais, e não podem ser jogadas, de forma confusa e centrista, no meio de um monte de outras reivindicações do movimento sindical usual. Se assim se faz, simplesmente se mata o potencial transitório e revolucionário desse programa. Assim se capitula de forma envergonhada ao reformismo oportunista.

As reivindicações iniciais de um programa revolucionário devem ser:

– Nenhuma demissão! Pela escala móvel das horas de trabalho! Reajuste mensal das horas de trabalho necessárias numa empresa, sem rebaixamento salarial!

– Nenhum arrocho salarial! Pela escala móvel de salários! Reajuste mensal dos salários de acordo com a inflação dos produtos básicos!

­– Empregos a todos! Pela abertura de Frentes Públicas de Trabalho, com um plano de obras públicas concebido a longo prazo, que absorva desempregados e informais!

As organizações sindicais e de desempregados devem se unir e tratar a classe trabalhadora como uma classe só, sem dividi-la em empregados e desempregados. Essa divisão dá base à tragédia da crescente exploração dos trabalhadores.

Tais reivindicações não são de “exigência e denúncia”. Diferentemente de exigir “decretos” contra demissão, elas são uma tarefa da classe trabalhadora. A reivindicação por obras públicas está, aí, absolutamente vinculada e submetida às reivindicações transitórias (as escalas móveis), sem as quais qualquer exigência ao Estado vira mero reformismo. Isso ocorre porque, à medida que são empregados em obras públicas, em tal concepção os trabalhadores passam a ter seus salários reajustados mensalmente e suas horas de trabalho divididas.

Portanto, em vez da mera denúncia, a luta trazida por esse programa expressa-se em atos. Com esse programa, em vez de esperar a salvação de cima, do Estado, a classe trabalhadora, organiza e desenvolve, a partir da base, do chão de fábrica, do bairro, da ocupação de moradia, suas próprias formas de luta, independentes e paralelas ao Estado oficial. A classe trabalhadora, assim, é tomada como sujeito ativo da história e não como espectadora (que espera e nunca alcança).


1. Trabalhamos a questão no seguinte texto: https://transicao.org/conjuntura/o-programa-de-marx-e-trotsky-contra-a-crise/. Acesso em: 11 jul. 2020.

2. Para conferir os textos do primeiro e do segundo decreto, ver, respectivamente: https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/decreto-329-2020-335976/texto e https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/decreto-487-2020-337677.

3. Sérgio Nobre: MP 936 tem que proibir demissão em todo País e garantir 100% de renda. Disponível em: https://www.cut.org.br/noticias/sergio-nobre-mp-936-tem-que-proibir-demissao-em-todo-pais-e-garantir-100-de-rend-ba23. Acesso em: 11 jul. 2020.

4. Sobre o desenvolvimento dialético do Programa de Transição, ver: https://transicao.org/negacaodanegacao/textosfundamentais/sobre-o-desenvolvimento-dialetico-do-programa/. Acesso em: 11 jul. 2020.