Após lermos os textos de Henrique Canary, do MAIS (leia aqui) e de Simone Ishibashi, do MRT (leia aqui), contrários à greve dos policiais do Rio de Janeiro, pensamos em entrar na polêmica com alguns argumentos. Nesse ínterim, Francisco da Silva publicou um texto, também no site do MAIS, que, quanto à análise da condição dos policiais, nos contemplou bastante (leia aqui). Buscaremos trabalhar alguns elementos que, pensamos, não foram ainda tratados.
Francisco da Silva ofereceu um pouco do beabá do marxismo: o que interessa para definir um sujeito não é o que ele fala de si nem meramente sua “função social”, mas a posição que ocupa em relação aos meios de produção. A questão é entender se um indivíduo é proprietário ou não de meios de produção, e, caso seja, de que forma o é. De acordo com essa caracterização básica, o indivíduo deixa de ser pensado como um sujeito e passa a ser pensado como pertencente a uma classe social específica, materialmente existente. Marx e Engels expressam isso, claramente, desde 1845, na Ideologia Alemã (obra na qual surge o marxismo, segundo os autores).
O primeiro crivo para uma análise marxista séria é, portanto, tomar em consideração a base material, objetiva. No caso dos policiais, devem ser pensados como membros do proletariado porque não têm propriedade privada de meios de produção. “Proletário” tem esse nome pois é aquele que não tem nada, senão sua prole. O trabalhador não tem propriedade alguma, a não ser, relativamente, a sua família. Isso ocorre porque os atuais trabalhadores foram expropriados, violentamente, dos seus antigos meios de produção (quando eram camponeses). Isso iniciou-se no século XIV e deu origem à sociedade capitalista. Essa expropriação, mostra Marx ao final do primeiro livro de O capital, é a violência originária, a principal, mais forte e mais importante repressão histórica contra a classe trabalhadora, que é reposta todos os dias quando nossa classe é obrigada a trabalhar. Todavia, por essa repressão ter se naturalizado historicamente, ela aparece como “lei eterna do modo de produção”, diz Marx, e as visões superficiais não a percebem (considerando violentos apenas a polícia, o exército, os aparatos jurídicos e penitenciários, etc). Nesse sentido, toda a classe trabalhadora, inclusive os policiais, agentes de repressão, por serem assalariados, estão submetidos à maior e mais forte repressão cotidiana, a violência originária, que é permanente e presente. Os burgueses, que apenas desfrutam do trabalho alheio, não estão submetidos à repressão originária porque detêm os meios de produção.
Assim, não se pode dizer que um policial não é proletário. O que se pode dizer é que um policial não é um operário. “Operário” tem esse nome pois é aquele que opera as máquinas, ou seja, é o proletário que está inserido nos meios de produção. O operário é uma parte do proletariado (diga-se de passagem, a parte mais importante, a vanguarda objetiva do proletariado, pois é a capaz de controlar diretamente os meios de produção). A parte do proletariado que está fora dos meios de produção está na esfera da circulação de mercadorias ou na superestrutura repressora. Todos os setores do proletariado são importantes para a revolução do proletariado, mesmo os da esfera da circulação ou do aparato repressor, embora importantes em sentido e peso diferentes.
Diferentemente do que afirma Canary, Marx, ao final do livro terceiro de O capital, mostra que também os executivos das grandes empresas capitalistas acionistas são proletários. O fato de isso ocorrer revela, segundo Marx, o grau mais alto alcançado pelas contradições históricas do capitalismo; comprova que a burguesia é uma classe completamente inútil e parasitária, que não só precisa como pode ser extirpada, sem que qualquer mal se abata sobre a sociedade.
Numa sociedade de capitalismo avançado, como a brasileira, se um policial não for um elemento não-proprietário, só poderá ser, necessariamente, um elemento proprietário (burguês). Não há outra opção, outras possibilidades objetivas, materiais. Ou se é uma coisa ou outra. Há sim outras possibilidades ideológicas, imaginárias, mas aí se está fazendo sociologia (ou pós-modernismo) e não marxismo. Erroneamente, a esquerda cria teorias para justificar sua posição particular, sua concepção particular de mundo, e não, ao contrário, tira sua teoria da realidade objetiva e material. Assim, ela mesma cria ideologia — formas que encobrem o real.
Criar uma ciência particular para pensar um problema social é a essência da sociologia. É o que Marx fala no item 3 do Manifesto do Partido Comunista. Sociologia não é marxismo — sociologia é uma ciência que corresponde à pequena burguesia enquanto classe; é pré-marxista, anterior ao materialismo histórico, mantida artificialmente hoje pela burguesia para criar confusão e combater o marxismo. O marxismo se desenvolveu teoricamente exatamente na luta contra a sociologia. Ao fomentar formas de compreensão de mundo anteriores ao marxismo, formas que encobrem o real, a burguesia muito conscientemente cria ideologia.
Pensar os indivíduos pela noção não-marxista de “função” é exatamente o que fazem as formas de sociologia presentes, como o estruturalismo, derivado da escola “funcionalista” da linguística e, em grande medida, da escola “funcionalista” da sociologia, cujo teórico principal, Malinowski, tantas vezes atacou o marxismo como estreito e reducionista. O procedimento desse tipo de ideologia é sempre o mesmo: apagar ou relativizar a diferença objetiva entre as classes sociais e sobrevalorizar a função ou forma de inserção dos indivíduos ou elementos particulares dentro das estruturas e instituições. Foucault é um dos melhores resultados dessa ideologia pequeno-burguesa.
Apagando-se ou relativizando-se as classes sociais, tem-se necessariamente de sobrevalorizar o que os indivíduos falam de si mesmos. Assim, ao se analisar uma categoria que está objetivamente revoltada com a falta de salário, como os atuais policiais cariocas (e demais servidores), busca-se destacar os poucos que gritaram “Uh, é Bolsonaro”, ou aqueles que, revoltados com o PT e o sindicalismo pelego, confundem a esquerda revolucionária com esse lixo histórico e pedem para abaixar as bandeiras “vermelhas”. Aliás, junho de 2013 também exigiu a queda das bandeiras vermelhas e ninguém (senão sociólogos do PT) viu essas jornadas como reacionárias.
Não nos parece estranho que Canary se refira à sua própria análise como a de uma “sociologia marxista”. Se Lenin e Trotsky falaram, em poucos momentos, pontualmente, de “sociologia marxista”, isso foi um erro, influenciado por teorias da última fase de Engels. Lenin e Trotsky falam, em geral, de “marxismo” ou “marxismo revolucionário”. Marx nunca se referiu à sua própria teoria como uma sociologia ou a uma “ciência social”.
Assim como é absurdo identificar — pela noção sociológica de “função” — determinada pessoa com a instituição (ou empresa) onde trabalha, é também absurdo tentar diferenciar, entre as instituições capitalistas, aquelas mais “decentes” e aquelas mais “condenáveis”. Diferentemente do que afirma Canary, todas as instituições capitalistas são repressoras e contribuem para a acumulação capitalista.
Para entender isso, é preciso novamente estudar o beabá do marxismo: cada modo de produção desenvolvido na história ocidental tem uma estrutura e uma superestrutura. A estrutura é composta pela produção e pela circulação de produtos (ou bens). A superestrutura são as instituições das classes dominantes, que repõem, recolocam, condicionam ou pressionam — reprimem — a estrutura, para que esta se mantenha como é, favorecendo a classe dominante de cada modo de produção. Isso se manterá mesmo no socialismo (a fase de transição), favorecendo a classe trabalhadora em detrimento da burguesia. Numa sociedade comunista (após o socialismo, após dissolverem-se as classes, superando a história ocidental), haverá estrutura sem superestrutura; haverá apenas a gerência (controle) do que é produzido, e não a gerência anômala (controle) de pessoas.
No caso capitalista, a estrutura do modo de produção é formada pela produção de mercadorias e pela circulação de mercadorias. Acima delas, para recolocar ou manter a estrutura capitalista (a extração e realização da maisvalia; a acumulação do capital), se coloca a superestrutura capitalista. Ela é composta não só pelo aparato policial, mas também pelo aparato jurídico, político e ideológico. A maior parte, numericamente falando, do corpo repressor das instituições capitalistas está localizada nos aparatos jurídico e político — no legislativo, executivo e jurídico dos âmbitos municipal, estadual e federal — e não no aparato policial ou ideológico. O objetivo desses aparatos não é atender as “pessoas”, o “público”, como diz Canary, mas manter a classe trabalhadora como classe trabalhadora para o capital. Curiosamente, mesmo o sistema público de saúde não escapa dessa caracterização — o objetivo dos hospitais não é “salvar as pessoas”, mas impedir, minimamente, que a força de trabalho morra e assim não consiga se recolocar no mercado de trabalho para ser explorada.
No período de decadência do capitalismo, também o que é produzido nas universidades e nas escolas tem um caráter repressor. No período de decadência do capitalismo (virada do século XIX para o XX), as relações sociais burguesas (a superestrutura), como um todo, atravancam o desenvolvimento do conjunto das forças produtivas burguesas, em todas as áreas. Assim, mesmo a área que poderia não ser repressora nas instituições capitalistas — a área voltada às descobertas científicas, como as universidades e escolas — torna-se necessariamente repressora. As universidades e escolas poderiam desenvolver muito mais em ciência, mas a forma capitalista e privada, voltada ao lucro, impede o desenvolvimento pleno das ciências, que tendem há muito tempo à socialização.
Estudando-se mais a fundo o processo de formação da teoria marxista nos anos 1840 se notará não apenas que ela se desenvolveu contra a sociologia da pequena-burguesia, mas também que entre a sociologia e o marxismo existem duas estratégias diferentes em relação ao poder (ao Estado).
A visão de mundo sociológica, que corresponde à pequena-burguesia, tem a estratégia política chamada de social-democrata. Essa estratégia é não apenas a dos socialistas utópicos, mas também a dos proudhonianos, dos fabianos, dos lassalleanos e outros setores pré-marxistas. Marx já criticava literalmente o termo “social-democracia”, no 18 de Brumário, em 1851, como correspondendo exatamente ao grupo político da pequena burguesia que tentava resolver as mazelas sociais por meio do Estado democrático burguês. A pequena-burguesia, por estar entre as classes fundamentais (burguesia e proletariado), busca uma ciência social para atender, de cima, o “povo” (visto sempre, ressalta Marx, como “a classe mais sofredora”), e diminuir as violências, as contradições, por meio de políticas pacificadoras. Assim, ela distingue no Estado burguês os serviços que seriam “dignos” (saúde, educação, atendimento popular em geral), a serem mantidos e ampliados, e os que seriam “indignos” (a violência policial, por exemplo), a serem diminuídos, restringidos ou destruídos.
Não nos parece à toa, portanto, que todos os que defendem que é preciso distinguir instituições boas de instituições más recaem no programa social-democrata. São em geral os mesmos que defendem “educação pública para todos”, “saúde pública universal”, “imposto progressivo”, “auditoria da dívida”, “democratização da polícia” ou formas imaginárias variantes — medidas que Marx criticou (quando não ridicularizou) após a Comuna de Paris (por exemplo, nos prefácios ao Manifesto Comunista após a Comuna, ou na Crítica ao Programa de Gotha).
O marxismo destroi as instituições burguesas não as tomando por dentro, mas criando um poder paralelo a elas, paralelo ao poder oficial. É o chamado poder dual, que tem como lastro fundamental as organizações do proletariado, sobretudo as ocupações de fábrica, os comitês de fábrica e os Conselhos (sovietes).
A forma de se criar o exército do proletariado está clara em O Programa de Transição, de Trotsky, o criador do Exército Vermelho, que combateu ao mesmo tempo (e venceu), durante a Guerra Civil, mais de dez exércitos de potências capitalistas mundiais. Para defender o poder paralelo dos ataques da repressão oficial, cria-se as milícias operárias. Os núcleos das milícias operárias são os piquetes de greve e de ocupação de fábrica. A junção de piquetes cria os destacamentos de autodefesa do proletariado. A junção de destacamentos cria propriamente as milícias. A junção de milícias cria os batalhões. Por fim, a junção dos batalhões cria o Exército do proletariado. Não há nada, no marxismo, parecido com uma guerrilha urbana — pequenos grupos de indivíduos armados, como as ideias defendidas por Marighella, no Brasil. Tais ideias, individualistas, românticas, correspondem às posições da pequena-burguesia; são estranhas ao marxismo e completamente impotentes diante do aparato repressor burguês. O marxismo arma o proletariado como classe, como força social.
Não é estratégico para o marxismo a atuação dentro do corpo policial ou do exército. O que é estratégico é a inserção de militantes marxistas nas principais fábricas do país, para criar o poder dual da classe operária. Todavia, isso não significa que trabalhos internos à categoria policial ou a setores do exército devem ser desprezados. O marxismo deve se valer de todas as formas — internas e externas — para paralisar e quebrar os aparatos de repressão da burguesia. Quanto melhor isso for feito, maiores serão as condições de vitória do exército do proletariado.
Aliás, a burguesia não confia na polícia nem no exército oficiais, justamente porque são compostos de proletários. É por isso que ela, nos momentos agudos de luta de classes, cria bandos fascistas, dentro e fora da polícia e do exército oficiais, com apoio de outras classes sociais. Sobretudo em países atrasados, onde há com grande expressão numérica outras classes intermediárias — não apenas a burguesia e o proletariado — isso é mais fácil. Assim, na Itália de Mussolini, os bandos fascistas foram recrutados entre os setores altos do campesinato. Na Alemanha nazista também. Mesmo durante a revolução russa de 1917, a ala do Exército czarista mais fiel ao governo provisório era a dos Cossacos — um povo camponês privilegiado durante séculos pelo Czar, para ser seu grupo mais estreito de defesa.
A burguesia não confia nas polícias e nos exércitos porque, por serem proletários, podem facilmente se dividir entre baixo e alto escalão. A forma que os marxistas devem agir para dividí-los é exortando as camadas mais baixas contra as mais altas. Isso se dá pelas condições econômicas precárias das camadas mais baixas, pelos problemas de salário, justamente pelo que define esses trabalhadores enquanto proletários. Exorta-se tais trabalhadores, em conjunturas específicas, a se rebelarem contra o comando; a elegerem seus superiores, etc. Coloca-se, assim, uma cunha que separa e racha os braços armados da repressão capitalista. Isso facilita a tomada do poder pelo poder operário.
Após a tomada do poder, na reconstrução socialista da sociedade, o poder proletário se vale de tudo o que o capitalismo criou de mais avançado. Aí está o interessante da “destruição” operada pelos marxistas sobre as instituições capitalistas — é uma destruição que, relativamente, mantém o que está sendo destruído. Pensa-se sempre na ideia de superação. Opera-se um poder paralelo, que se contrapõe ao poder oficial, o derruba e, em seguida, se aproveita de tudo o que o poder oficial continha, para criar uma nova sociedade. Assim como as empresas têm de ser mantidas para a reconstrução socialista da economia, também as instituições de repressão têm de ser recriadas para a reorganização política socialista. Tão logo se tomou o poder, em 1917, foi necessário reprimir, com a guarda policial vermelha, uma série de assaltos promovidos pela marginalidade e pelo lumpen-proletariado, diversos casos de alcoolismo, bem como setores da burguesia remanescentes. Assim, todas as instituições — escolas, universidades, exército, polícia — têm de ser relativamente mantidas, para melhor serem recriadas (em novas bases), visando à reconstrução socialista e à expansão da revolução para mais países. Deve-se tomar o equipamento das polícias e dos exércitos (para se preparar para a Guerra Civil), assim como se toma fábricas ou laboratórios das universidades.
O caso soviético, nisso, é muito interessante, e mostra como o caráter de classe é o crivo fundamental. Trotsky, como inclusive fala Lenin, “tirou o Exército Vermelho do nada”. A mágica de Trotsky consistiu em não apenas usar o corpo do exército que se tornou revolucionário em 1917, o baixo oficialato, mas também, nos anos seguintes, de Guerra Civil (até 1921), o corpo de altos oficiais do antigo exército czarista. Trotsky colocou para trabalhar no Exército Vermelho, sempre acompanhados/vigiados por comissários comunistas competentes, os mais avançados estrategistas militares do antigo exército czarista. Isso só foi possível porque alguns deles tinham também, ainda que fossem melhor remunerados, certa origem proletária (a maioria, todavia, era de camponeses ricos). Da mesma forma, na reconstrução socialista da economia soviética, foram usados técnicos, engenheiros, membros do alto escalão das antigas empresas capitalistas, gerentes, etc., que foram absolutamente necessários para superar o caos dos anos iniciais. Isso só foi possível porque, em grande medida, muitos desses técnicos, engenheiros e administradores estavam traçados, também eles, por certa origem proletária.
Tais problemas, ora analisados, devem ser pensados à luz dos textos clássicos do marxismo revolucionário, e não com base em pequenos recortes de trechos de um ou outro autor, tirados de contexto.